Hélio Schwartsman*
Deu na "Ilustrada" que uma novela da Globo vai
discutir a reencarnação. Não entendo nada de novelas, mas a ideia de
reencarnação já fez algumas aparições na história da filosofia, com o
mais elegante nome de metempsicose (termo grego que designa a
"transmigração da alma"), o que dá ensejo a um par de reflexões.
A ideia de que existe uma alma que sobrevive ao corpo e sai por aí
animando outros seres só ganhou algum destaque na filosofia porque foi
encampada por Platão. Não dá para discutir aqui os motivos que o levaram
a aceitar essa tese (há até quem debata se aceitou mesmo), mas vale
registrar que ela resolve um problema e cria uma infinidade de outros.
A grande vantagem é que ela permite postular um mundo mais estável, no
qual o número de almas teria sido estabelecido no início dos tempos.
Assim fica mais fácil extrair um propósito para as coisas. Uma das
dificuldades para as doutrinas religiosas que não aceitam a reencarnação
é encontrar um sentido para a morte de bebês e embriões, por exemplo.
Por que diabos Deus criaria uma alma e a destruiria logo em seguida?
As complicações da metempsicose não são, entretanto, menores. A mais
óbvia é empírica. Se todas as almas já existem desde sempre, como
chegamos a 7 bilhões de seres humanos? Onde estavam todos antes?
Talvez mais grave seja o fato de que, para funcionar, a doutrina da
reencarnação depende do esquecimento das vidas passadas. Ora, hoje
podemos afirmar com alguma segurança que é a memória que constitui a
identidade de um indivíduo. Sem ela não sobra muita coisa, como o
atestam as demências severas.
E tudo fica mais complicado se trouxermos outros achados recentes para a
discussão, como as evidências de que a própria consciência é resultado
de múltiplas sensações corporais ligadas em paralelo. Será que ainda
resta um lugar para a alma? Suspeito que não.
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* Colunista da Folha. Escritor. Filósofo.
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