Luiz Felipe Pondé*
A Síria estava muito melhor antes desse fetiche da pseudoprimavera pela democracia
O oriente Médio tem uma fábula que é comum para quem lá viveu ou conhece
bem a região: certa feita, um escorpião pediu a uma rã que o deixasse
atravessar o rio nas suas costas. Ela, atenta, disse a ele que não era
idiota e que não o deixaria atravessar o rio nas suas costas, porque ele
a picaria no meio da travessia e ela morreria afogada.
O escorpião respondeu que não se preocupasse, porque se ele a picasse
morreria junto com ela. A resposta pareceu razoável e eles iniciaram a
travessia.
No meio do caminho, o escorpião picou a rã e, enquanto ela afundava, e
ele com ela, ela perguntou desesperada: "Mas por quê? Você vai morrer
comigo". Ele respondeu: "Sinto muito, mas é a minha natureza". É assim
que o Oriente Médio se vê.
É impressionante como a minha classe intelectual se fez ridícula diante
da Primavera Árabe, mais especificamente agora, com a Síria, achando que
ali havia um movimento democrático islandês. Não há isso nem na Síria,
nem no Egito. A democracia ali é tão estranha quanto para nós seria uma
teocracia.
Mas a vida intelectual pública está morta no Brasil, vítima da mania de
ver em toda parte "um processo histórico" em curso, da avenida Paulista
às ruas de Damasco, o mesmo ridículo "frisson" com "um processo
político" em curso, visando a "autonomia popular". Puro fetiche.
Não existe tal coisa como "um processo político histórico". Esses caras
nunca se curaram do "mito da dialética" (expressão usada por Edmund
Wilson, crítico americano, em seu grandioso "Rumo à Estação Finlândia").
Há muito que nós, intelectuais, sobrevivemos de fetiche no debate
político. Esse fetiche chama-se "fetiche da democracia", "fetiche do
povo" ou "fetiche da revolução".
Mais recentemente, e associado aos movimentos nos países árabes e às
baladas de junho, nasceu um novo fetiche, o da revolução causada pelas
redes sociais.
No Oriente Médio, os escorpiões riem desse ridículo, que tem em Obama
"sua baratinha tonta" querida. O Obama pensa que é presidente de um
centro acadêmico de ciências sociais.
Alguns intelectuais europeus, tomados pelo "frisson" de gozarem com seu
próprio fetiche, chegaram a falar em "dois momentos da Primavera Árabe"
(à la Marx) por conta do golpe "secular" do exército egípcio em cima do
governo fundamentalista eleito democraticamente. Por que não paramos de
projetar esquemas metafísicos (do tipo dialética hegeliano-marxista)
sobre o mundo?
Acabamos por acreditar que obscuros cineastas árabes vivendo nos EUA ou
professores de filosofia em capitais árabes (exemplos de "contaminação"
com nosso modelo ocidental, ferramentas de nosso próprio gozo, porque
"pensam como nós") representam a população e a vida nesses países.
Não, a Síria estava muito melhor (veja que não digo perfeita) antes dessa pseudoprimavera pela democracia.
A Síria, como a Jordânia hoje, era um país com razoável liberdade
religiosa e social, com um cotidiano sem muita miséria e violência.
Ela é o palco da disputa entre Arábia Saudita (sunita) e Irã (xiita,
defensora de Assad), que vivem num estado de Guerra Fria. Mas, nem o
Irã, nem os sauditas, nem os EUA, nem Israel querem a queda de Assad,
porque ele, mesmo que não perfeitamente, mantém um equilíbrio na região.
Mas, desde o momento em que a mídia ocidental batizou os movimentos nos
países árabes de "primavera" (ecoando a Primavera de Praga), fetiche
ocidental, estabeleceu-se um programa de interpretação daqueles
fenômenos como se eles fossem réplicas da mitológica Revolução Francesa,
de Maio de 68 (a revolução de queijos e vinhos) e da queda das
ditaduras marxistas no Leste Europeu. Entrevistando "ocidentalizantes"
naqueles países, acabamos por projetar sobre eles uma demanda estranha
àquele universo.
Ao endossar sem crítica os chamados rebeldes sírios, acabamos por
"justificar" a guerra civil síria, para depois ficarmos posando de
Madalenas arrependidas com a violência na Síria.
Em vez disso, deveríamos ouvir a sabedoria do escorpião do deserto e
menos nossos livros escritos sob a tutela de taças de vinhos nas ruas de
Paris.
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* Filósofo. Prof.Universitário. Escritor. ponde.folha@uol.com.br
Fonte: folha on line, 23/09/2013
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