Arnaldo Jabor*
Meu Deus do céu! Estou revendo as provas de meu próximo
livro de artigos. Vai sair pela Editora Objetiva. Rever textos é duro;
todos os deslizes da vaidade aparecem ali, na cara. O desejo de bancar o
inteligente, de parecer mais culto, a vontade do roubo, do plágio,
ficam visíveis, em flor. E os adjetivos? "Belo, inominável,
contemporâneo." E os "portantos", os "outrossins" e os "menos que..."?
Devia haver uma polícia retórica. E as repetições da mesma ideia, por
medo de não ser entendido? E a vontade de se esconder atrás das
palavras? Quantas metáforas nos ocultam... E a esperança de atingir uma
"essência", ou pelo barroco ou pelo seco? (Eu já ia escrever: ou por
Gongora ou por Graciliano, numa sórdida tentação de parecer erudito.) E o
desejo de ser amado? E a vontade de influir? De mudar o mundo? E o
Messias que há em nós? E o S. Francisco de Assis? E, pior, os erros de
português: o "o" ou "lhe", e o "infinitivo flexionado" (é esse o nome?)
Ahh, mãe... "Fazer pirâmides e não biscoitos", como queria Rosa? (Nelson
Rodrigues, que odiava Guimarães Rosa, dizia que ele fazia "pirâmides
como bolos de confeitaria".) Ou então "Biscoitos finos para a massa",
como queria o Oswald? Ou o "Seja burro!", como queria o Nelson? Ser o
quê? (Tem circunflexo?) "Por que, porque ou por quê"? Escrever é uma
barra.
"O estilo é o homem", disse o célebre Buffon (quem terá sido ele?) ou
"o Homem é o estilo", como disse Lacan, que eu estudei um pouco, mas...
quão pouco sei... Lembro que Rubem Braga dizia que despediria o redator
que escrevesse: "Tirante, é óbvio…" ou que "o trem ficou reduzido a um
montão de ferros retorcidos…". Eu serei um deles?
E os desejos inconfessáveis? E a vontade de ser sempre
"progressista", de jamais ser chamado de "reacionário"? E o desejo de
enganar, mentir, roubar o leitor, "meu semelhante e irmão", como dizia
Baudelaire, em almanaques para falsos chutadores.
E a busca do elogio? Às vezes, quebro a cara, com o elogio rancoroso:
"Você escreve melhor do que filma". E o contrário: "Você devia era
filmar e parar de dizer bobagem no jornal...". E o elogio terrível e
burro: "Rapaz, você pra mim é o melhor escritor, depois do fulano de tal
(uma besta, claro...)". Ou o elogio errado: "Cara, aquele artigo que
você fez a favor do neoliberalismo foi ótimo!".
E os inimigos? Sempre de olho em meus erros. E como eu escrevo na
navalha fina entre o sim e o não, entre o bem e o mal (viram como eu
tento uma complexidade não maniqueísta?) ou melhor dizendo, como eu
tento uma distância brechtiana do mundo, um "verfremdung effect" (viram?
Alemão...) diante dos fatos ou, como eu tento fugir de definições
fechadas, sou alvo de ataques de imbecis que querem subir na vida pelo
"aplique" de uma "negatividade lucrativa" (upa!...) ou seja, como eu
acho que a verdade está entre a cruz e a caldeirinha, sou bom alvo para
as minhocas fascistas, principalmente as que se chamam de "esquerdistas"
ou até de nazistinhas mesmo, que me acham "criptocomuna".
Rever um livro é "vê-lo com os olhos dos outros". (ohhh...) Que vão
dizer? Meu Deus, já pensou o Luiz Ruffato ler isso? E o Antonio Candido?
Se ele pega esta... E o conspícuo João Ubaldo, o grande romancista que
eu lancei na Revista da UNE em 1963, com o antológico conto Josefina?
Que vai dizer? Rever provas de livro é feito arrumar a casa, como minha
mãe dizia: "Não reparem..., a casa não está arrumada ainda...". Em suma,
como ser humilde e maravilhoso? Como arranjar um título que englobe
minha "complexa alma"? Que seja simples, discreto, e "profundamente
inteligente"? Terei sido suficientemente indecifrável para ser
contemporâneo e genial como David Foster Wallace ou para evitar a farsa
de gente como Murakami? E o Bolaño? Conseguirei o inexplicável sucesso,
como em Detetives Selvagens? Terei lido a Review of Contemporary Fiction
com afinco? Como escrever sem esperança de sentido? Tenho de caprichar
bastante para ser "distópico". (Viram, como tento me atualizar?)
E aí lembrei de Nelson quando diziam que seu texto era coloquial e
pobre: "Só eu sei o trabalho que me dá empobrecer meus textos" ou de
João Cabral: "Não perfumar a flor..." ou do Eça-narrador querendo
impressionar o Fradique Mendes: "A forma de V. Exa. é um mármore divino
com estremecimentos humanos" ou Mallarmé ("La chair est triste, hélas,
et j'ai lu tous les livres" ou "Definir é matar; sugerir é criar!".
(Profusas citações... viram?)
Em seguida, mostrarei alguns vexames que eu tirei do original (ohh,
como ele é autocrítico e sincero!): "Mede-se esta ideia pela eficiência
de uma práxis" ou "Michelangelo fez Pietà arrastado pelo amor de atingir
o gesto humano no mármore". Eu escrevi isto? Escreveu sim, seu idiota.
Ou isto: "Tudo não passa de indignação transida de esperança, remota
oscilação na escala Richter da alma". Ou ainda: "Já começou o tempo de
se tecer uma nova fome de utopias". E, os espantosos: "Há algo de
sodomia purificadora naquele ritual sem Deus" e "nauseados, lamentamos o
estar no mundo". Pode, uma coisa dessas? Já os arranquei do texto. E o
que me escapou e que meus inimigos verão com a "maligna lupa do rancor"?
(Opa!...)
Outra coisa angustiante é rever seus próprios truques. Movemo-nos
entre quatro ou cinco categorias, meia dúzia de conceitos, somos muito
mais falados pelas palavras do que as falamos (oh, truísmo!...). Rever
provas é se rever num espelho cruel (anúncio de cosmético?). Então o que
resta de mim nisto tudo? O espaço entre as palavras? Não sei, mas
publicar um livro é morrer um pouco... (Coelho Neto?), publicar um livro
é padecer num paraíso (quem?), publicar um livro é fugir da morte
(Nietzsche?), publicar um livro é sublimar uma sexualidade perversa
(Freud?), publicar um livro é o espírito querendo se libertar da
finitude (Hegel?). É o que, afinal?
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* Cineasta. Escritor. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 24/09/2013
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