domingo, 15 de setembro de 2013

Brumas e espumas

 Rubem Alves*
Mestre Benjamin já estava velho, muito embora se parecesse com uma criança. A longa barba branca, o andar vacilante, a visão curta, a surdez. Ele percebeu que chegara a hora de suas últimas palavras. Reuniu os adultos e as crianças, serviu-lhes bolo de frutas, vinho, suco de uva e começou a falar:

“Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos,
Se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o sino que retine.

Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios; e ainda que eu tenha tanta fé a ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei.

E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará.

O amor tem paciência.
Deseja o bem.
Não queima em ciúmes.
Não manipula a pessoa amada.
Não se julga superior.
Não se gaba.
Não humilha os outros.
Não busca os seus próprios interesses.
Não faz contabilidade do mal.
Não se alegra com a injustiça
Mas regozija-se com a verdade.
O amor aceita sofrer,
Aposta na bondade,
Não perde a esperança,
E fica firme.
Profecias acabarão.
Línguas estranhas cessarão.
A ciência envelhecerá.
Mas o amor é sempre jovem. Nunca acabará.
Agora o que vemos é como uma imagem embaçada
refletida num espelho mal polido. Tudo é confuso.
Mas chegará um dia em que veremos a verdade face a face.
Agora, o que temos são
A confiança,
A esperança e
O amor.
Mas desses três o maior é o amor.”

“Amemo-nos uns aos outros porque o amor procede de Deus. Todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus.
Aquele que não ama não conhece a Deus porque
Deus é amor.

Ninguém jamais viu a Deus. Se nos amarmos uns aos outros
Deus fará morada em nossos corpos e nossas almas.
Então não mais teremos medo.
Porque o perfeito amor lança fora o medo." (1ª Carta de João)


Mestre Benjamin parou, olhou para seus amigos queridos. Por muitos anos ele lhes havia contado estórias. Várias das crianças que lá estavam poderiam ser suas bisnetas. Todos estavam com os olhos úmidos. Sentiam que Mestre Benjamin estava dizendo adeus. Ele então retomou a sua fala num ritmo mais pausado de voz, e falou como se estivesse cantando.

“Brumas e espumas.

Tudo são brumas e espumas...
Para tudo há um tempo determinado.
Há o tempo de nascer e o tempo de morrer.
O tempo de plantar e o tempo de arrancar o que se plantou.
O tempo de construir e o tempo de demolir.
O tempo de chorar e o tempo de rir.
O tempo de amar e o tempo de enfadar-se com o amor.
O tempo de guerra e o tempo de paz.
Para todas as coisas há um tempo certo.
Mas Deus colocou o coração do homem para além do tempo, na eternidade.

Nada há de melhor para o homem do que alegrar-se e levar uma vida prazerosa. E isso é presente de Deus, que o homem possa comer, beber e desfrutar do seu trabalho.

O que é, já foi. E o que vai ser também já foi. Mas Deus fará voltar o que já passou.
Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias e cheguem os anos em que dirás: Não tenho neles prazer.

Antes que se escureçam o sol, a lua e as estrelas, luzes da tua vida, e tornem a vir as nuvens depois do aguaceiro;

No dia em que os teus braços, guarda da tua casa, tremerem,
E as tuas pernas outrora fortes se curvarem,
E os moedores da tua boca cessarem de moer, por já serem poucos,
E os teus olhos, janelas da tua casa se cerrarem,
E os teus lábios se fecharem: o dia em que não puderes falar em voz alta,
E te levantares ao canto das aves, e não mais ouvires o som da música.
Quando tiveres medo do que é alto,
E te espantares no caminho,
E o teu cabelo ficar branco,
E um simples gafanhoto for muito peso para tuas forças,
E não tiveres mais fome.
Porque vais para a casa eterna
E os pranteadores já estão andando pela praça.
Antes que se rompa o fio de prata,
E se despedace o copo de ouro,
E se quebre o cântaro junto à fonte,
E o pó volte à terra
E o sopro da vida volte a Deus, que o soprou.
Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho. Em todo tempo sejam brancas as tuas roupas e jamais falte óleo na tua cabeça. Goza a vida com quem tu que amas todos os dias da tua vida que logo passa, como passam as brumas e as espumas...”
Brumas e espumas: tudo são brumas e espumas.” (Eclesiastes)

Ditas essas palavras Mestre Benjamin parou, pôs-se a olhar as montanhas que se viam ao longe — tantas vezes ele trilhara os seus caminhos — feliz e cansado com sua longa vida, sorriu, tomou a taça de vinho vermelho e disse: “Bebamos juntos! Como a vida é boa! Eu gostaria de viver mil anos”...

Ditas essas palavras ele fechou os olhos, começou a cantarolar baixinho uma cantiga que sua mãe lhe cantava para dormir. Sua mão se abriu, a taça de cristal caiu e se quebrou numa infinidade de cacos.

Enterraram Mestre Benjamim no alto de uma colina de onde se viam as montanhas no horizonte distante. Ao lado de sua sepultura plantaram uma árvore. Dizem que ainda não parou de crescer. Amarraram balanços nos seus galhos fortes e as crianças e os adultos se divertem brincando de tocar as nuvens com a ponta dos pés.
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* Educador. Teólogo. Escritor. Colunista do Correio Popular
Fonte: Correio Popular on line, 15/09/2013
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