sábado, 14 de setembro de 2013

Tentar entender não quer dizer perdoar

PAULO GLEICH* 
 Criança vítima de abuso: superproteção da infância atual pode mascarar sua falta de lugar na sociedade contemporânea

Psicanalista responde a artigo sobre riscos à infância publicado em agosto

A frase que dá título a este texto, extraída do filme Hannah Arendt, ocorreu-me ao ler A Infância Está Sempre em Risco, publicado no Cultura do último dia 10 de agosto, em resposta a meu artigo Nunca Fomos Anjos, de 27 de julho. Perdoem-me a ousadia da comparação, mas senti-me como a filósofa quando publicou Eichmann em Jerusalém: tive a impressão de que a paixão suscitada pelo tema havia obnubilado a leitura de meu texto. A resposta, assinada por Luiza Moura, não se dirigia tanto às palavras ou às teses por mim colocadas, mas era uma apologia à defesa – ao custo do pensamento, diria Arendt – de uma infância frágil e supostamente ameaçada por onde quer que se olhe. Não concordo com essa posição, que considero ingênua, e tentarei explicar por quê. Mas o artigo me levou a pensar outra questão muito importante, que precisa ser discutida: qual o lugar da infância na atualidade?

Em meu texto, interroguei, a partir do filme A Caça, por que o tema do abuso sexual de crianças desperta uma reação coletiva tão feroz a ponto de levar suspeita e certeza a serem igualadas, tornando aceitável o linchamento público. Teci uma consideração a partir da sexualidade infantil, cujas fantasias em relação aos adultos facilmente colocam estes como abusadores para poderem chegar à consciência. Admitir-se autor de um desejo proibido, mesmo que fantasioso, ameaça a estrutura de um sujeito, ainda mais de um que está começando a se estabelecer. A grande virada de Freud – e da psicanálise – foi justamente essa: a descoberta do caráter traumático da fantasia, que mesmo apenas imaginada tem poder de levar à neurose. Isso segue atual: é com a narrativa construída sobre os acontecimentos que lidamos na clínica, não com o que de fato aconteceu ou não – até porque um fato é inacessível à percepção de forma unívoca, como pretende a ingênua ideia de objetividade.

A proteção à infância pode ser relativamente recente, mas está fortemente enraizada no discurso social contemporâneo. Como brincou Jô Soares com um padre midiático que levou a seu programa uma camiseta que dizia “Todos contra a Pedofilia”: e por acaso alguém é a favor? Parece-me muito mais interessante pensar por que, apesar das conquistas de direitos e lugares em relação à infância, segue-se levantando essa bandeira como se a fragilidade estivesse colocada apenas na infância. Situar de um lado uns como vítimas a serem protegidas e outros como algozes a serem execrados é valer-se de uma lógica demasiado pobre para a investigação da complexidade da condição humana, toda ela sempre frágil, como nos mostra de sobra a História.

Se o passado pode dar suporte à ideia de uma criança-dejeto negligenciada, abusada e esquecida (condição que segue existindo para muitas crianças), o discurso atual a situa em outro extremo: é idealizada, exaltada, fetichizada. Reserva-se à infância nada menos do que o direito e o dever à felicidade absoluta, qualquer imposição de autoridade é tomada como autoritarismo, qualquer forma de sofrimento deve ser evitada, negando-se o fato de que algo de sofrimento é condição para tornar-se humano. A exaltação de uma ideia de infância, que erige a criança como fetiche, escamoteia o lugar de dejeto em que as crianças ficam situadas, impossibilitadas de carregar o narcisismo dos adultos. Segue-se, com isso, a lógica binária do bom-ruim, certo-errado, que seduz por evitar a via mais trabalhosa de encarar a complexidade da existência e a insustentabilidade das respostas maniqueístas. “A infância” em si não tem essência, ela é produto do que se faz e se fala dela, e isso nunca é algo simples e unívoco.

Um psicanalista precisa dar ouvidos aos efeitos dos discursos que circulam na coletividade sobre a subjetividade de uma época, é esse seu trabalho. A clínica de hoje nos revela, entre os sintomas mais comuns das crianças, os efeitos nocivos de uma superproteção que aposta na vigilância constante e na evitação das frustrações como garantia de uma infância tranquila. Em nome da proteção da infância, a própria psicologia cometeu falhas graves, ao conferir efeitos traumáticos a proibições e frustrações, deixando pais de mãos atadas diante de pequenos cada vez mais tiranos por não terem encontrado nos adultos contenção para suas paixões.

Não deixa de ser paradoxal que, em tempos nos quais tanto se defendem as crianças, tão pouco lugar de fato se dê ao que se convencionou chamar de infância. Fala-se muito das crianças, mas o que se faz com elas de fato? Agendas lotadas de atividades tomam espaço ao ócio necessário à fantasia e ao brincar criativo; sintomas de sofrimento psíquico – especialmente os que incomodam – são tomados como patologias a serem corrigidas com medicamentos; pais têm dificuldades para abrir mão de suas atividades individuais para estar com os filhos. É constante a queixa da “falta de limites”, que esquece que vivemos em tempos nos quais não se toleram muito bem os limites: quer-se gozar sempre e a qualquer custo, a frustração não é bem recebida não apenas pelas crianças. Basta ver a reação infantil de consumidores quando não têm seus desejos atendidos na hora e da forma que querem.

Tentar entender por que nos mobiliza tanto a fantasia em torno da pedofilia não é justificar, acusar ou defender o ato do pedófilo. Tentar entender é buscar a raiz das paixões inconscientes que nos movem, a despeito dos discursos que construímos para tentar conferir um verniz mais brilhoso às contradições que nos constituem. Algo que desperta grandes paixões, nos ensina a psicanálise, diz sempre algo de nós mesmos do qual não queremos saber. Por isso analisá-las é doloroso: abala nosso narcisismo, que procuramos manter intacto a qualquer preço, inclusive o da ignorância.

Hannah Arendt passou a vida tentando entender o mal, e o julgamento de Eichmann a deparou com uma descoberta assustadora: um dos maiores responsáveis pelo genocídio nazista era um burocrata que havia renunciado ao pensar, comprazendo-se em ser um instrumento da máquina. Talvez esteja aí um dos maiores perigos que sempre ameaçam a humanidade, inclusive as criancinhas: a tentação a deixar-se levar pelas paixões acéfalas, furtando-se ao exercício, humano por excelência, do pensamento.
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* JORNALISTA E PSICANALISTA
Fonte: ZH on line, 14/09/2013
 

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