domingo, 8 de setembro de 2013

Tome a posição mais confortável. Então, comece.

Milu Leite*

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Italo Calvino faria 90 anos. Em outubro, dedique pelo menos uma de suas leituras a ele. Afivele-se na poltrona ou aceite o risco de ser levado para um lugar onde nada é definitivamente definido.
 
Ele te olha espantado e pergunta:

“Por que você está chorando?”

“É que acabo de ler o livro.”

Perplexo, ele tenta extrair o impossível:

“Mas, afinal, o que acontece nele pra te fazer ficar assim?”

“Nada. Quer dizer, muitas coisas. É que...”

Ele continua te olhando, mas agora você nota uma fagulha de deboche quando ele insiste:

“Quer dizer que você não sabe dizer do que se trata a história. Muito menos por que tá chorando...”

E você desiste de explicar qualquer coisa neste diálogo. Sai da cama, liga o computador e começa a escrever:

"Se um viajante numa noite de inverno", livro lançado por Italo Calvino na Italia em 1979, me dá vontade de gritar. Também me dá vontade de chorar. A minha opção por chorar, entretanto, se sobrepõe, porque não quero assustar ninguém. As pessoas são capazes de entender que um livro as faça chorar. Antes de gritar, a vontade foi outra. Tive enjoo. Uma contração na boca do estômago somou-se a um ritmo cardíaco galopante e ambos me trouxeram uma sensação inédita, que eu só defino aqui como enjoo porque é o que consigo dizer, é a palavra que seleciono num emaranhado de intensidades. Podia ser também amor. Ou inveja. Ou a descoberta de um demônio.

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O que aconteceu na história foi nada e foram muitas coisas. Muitas coisas dentro de mim. Quando te disse isso na cama, acertei. Vamos ver se as palavras me explicam. O livro é composto de dez histórias que se interrompem logo que o leitor começa a ser fisgado por elas. Entre uma história e outra, existem o Leitor e a Leitora, cujas histórias se entrelaçam na busca pela continuidade das histórias interrompidas. Cada uma dessas histórias interrompidas é narrada por um “eu”, e elas se passam em países diferentes e envolvem personagens sempre às voltas com alguma busca ou espera. Esses “eus” vão falar sobre coisas que o farão refletir sobre a vida, a representação, a ficção, a mentira. A literatura, você será obrigado a reconhecer, é o protagonista oculto de todas essas histórias. A maneira de fazê-lo refletir sobre isso vai mudar e dar voltas sobre si mesma incontáveis vezes, levando-o a crer que a ideia de finitude jamais poderá ser aplicada às narrativas. Você vai lembrar das Mil e uma noites e, estranhamente, pela primeira vez, você vai achar que aquilo é pouco, porque o livro de Italo Calvino é feito de camadas, é verdade, mas também de uma mistura entre elas e os pontos de vista que é possível ter quando escolhemos ficar (melhor dizer “mergulhar”) em uma delas.

“Se um viajante numa noite de inverno” é um espanto. Um escândalo. Um topázio. Um sonho. Um castelo isolado no topo de uma montanha, cuja porta está aberta. Sobre ele, o céu corre atrás de nuvens que mudam constantemente de forma. Gostaria de acreditar que algum dia voltarei a ler um livro como este. Essa dúvida, percebo agora, me faz chorar.

Italo Calvino faria 90 anos em outubro deste ano. Morreu aos 60 anos, para azar da humanidade. Nascido em Cuba durante uma viagem de seus pais, viveu na Itália e chegou a lutar na guerra, na Resistência Italiana, contra o exército nazista. Na juventude, trabalhou como jornalista no periódico comunista L’Unità.

Escreveu, a partir de 1950, obras totalmente inovadoras, como “O visconde partido ao meio” (1952), “O barão nas árvores” (1957), “O cavaleiro inexistente” (1959), “As cidades invisíveis”. Seu último livro de ficção foi “Palomar” (1983).
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Alguns comentários sobre o autor e sua obra:

“O escritor italiano tece a sua narrativa privilegiando a combinatória, a ordem, as simetrias (mesmo que sejam simetrias entre contrastes), sem preocupar-se em definir as suas obras, pois ela supera qualquer categoria, em tramas que podem muito bem misturar eventos históricos – comprováveis – com intrigas criadas pelo próprio escritor.” Bruna Fontes Ferraz, em Zunái – Revista de Poesia e Debates.

“Na narrativa de Calvino descobrem-se a cada movimento outras vozes, citações e referências a outros textos e estilos, desdobramentos de uns nos outros, numa rede crescente de narrativas que poderia ser desenvolvida e desdobrada infinitamente. Se um viajante poderia ser pensado, assim, como uma espécie de enciclopédia sobre o literário, como um livro no qual os saberes sobre a literatura são reunidos e colocados em diálogo, num movimento que pretende não a totalidade do conhecimento, mas a produção de saber a partir do diálogo entre as mais diversas informações e reflexões sobre a literatura.” Maria Elisa Rodrigues Moreira, em Revista Eutomia.
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* Escritora.
Fonte:  http://lounge.obviousmag.org/parabolicando/2013/09/

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