Mãe Stella de Oxóssi tomou posse da Cadeira nº
33 da Academia de Letras da Bahia. Publicamos a seguir a íntegra do
discurso de posse, que foi divulgado pelo Instituto Mídia Étnica, e reproduzido pelo CorreioNagô, 13-09-2013.
Eis o discurso.
Gostaria muito de iniciar meu discurso de posse nesta essa venerável Academia de Letras,
dirigindo-me a todos, indistintamente, chamando-os de amigos.
Entretanto, fui educada por uma religião que tem na hierarquia a sua
base de resistência, o que coincide com a tradicionalidade desta
Academia. Sendo assim, inicio este discurso saudando as autoridades
presentes ou representadas, sentindo que estou saudando a todos que aqui
vieram para engrandecer esta cerimônia.
Em 1910, Mãe Aninha fundou, em Salvador, na Bahia, o terreiro de candomblé Ilé Àÿç Opo Afonjá,
hoje mundialmente conhecido e respeitado. Mulher com a cabeça muito
além de seu tempo, ela costumava dizer que queria ver seus filhos com
anel no dedo servindo a ßàngó: oríÿa para quem consagrou sua cabeça e
patrono da Casa de Culto aos Oríÿa que criou, mas que deixou de herança
para todos nós, seus descendentes espirituais.
A reportagem foi postada pelo Instituto Mídia Étnica, e reproduzida pelo CorreioNagô, 13-09-2013.
Se a cabeça de Mãe Aninha foi consagrada; sua língua
ganhou axé, ganhou força. Sua fala é uma sentença que seus filhos
espirituais procuram obedecer e cumprir, como manda a sabedoria
ancestral. Foi isso que também eu fiz, tanto que hoje me encontro aqui,
na ilustre Academia de Letras da Bahia para ser
empossada na cadeira 33. A sentença de mãe Aninha é mais profunda do que
normalmente se costuma interpretar: receber um anel é símbolo de
aceitação de um compromisso. A vanguardista senhora desejava que seus
descendentes se comprometessem com as causas sociais e espirituais.
Desejo de Mãe Aninha que se tornou de todas as iyáloríÿa
que a sucederam. Esse também é meu desejo: comprometer-me com tudo que
assumo, seja no âmbito social, seja no âmbito espiritual.
Quando fui iniciada para o oríÿa Õÿösi, pelas mãos de Mãe Senhora, uma das filhas diletas de Mãe Aninha,
eu tinha apenas catorze anos de idade. Em 1939, uma pessoa com essa
idade era uma criança, que apenas obedecia a ordens, sem questionar o
que lhe mandavam fazer. Se minha cabeça física sentia tudo aquilo como
uma grande brincadeira, minha cabeça espiritual entendia que eu estava
me comprometendo com algo muito sério. Ao ser iniciada, consagrei-me a Õÿösi. Tinha, então, compromisso com essa divindade, com minha mãe de santo, de saudosa memória, e com toda família Opo Afonjá.
Meu compromisso não foi selado com um anel. Ele foi selado com
correntes fininhas, que simbolizam elos de uma grande corrente que une o
Àiyé e o Õrun, os homens e os deuses,
o profano e o sagrado. Eu carregava elos de todas as cores: um
arco-íris, uma ponte que me fazia transitar, ir e vir, da Terra ao Céu e
do Céu à Terra. Em minha inocência, eu não entendia que aquelas
correntes fininhas comunicavam aos deuses que eu era ainda um elo
frágil, que precisava de energia, de àÿç, para me tornar um elo forte, capaz de segurar muitos outros elos.
Foi assim que aos 51 anos de idade fui escolhida pelos búzios, consequentemente, pelos deuses, para ser iyáloríÿa – mãe de oríÿa,
aquela que dá nascimento à essência sagrada de algumas pessoas. Minhas
guias fininhas foram substituídas por grossas, grossíssimas guias. Eu já
não tinha a inocência dos catorze anos e pude compreender que eu
passava a ser um forte elo, sobre o qual se esperava que fosse capaz de
segurar e apoiar todos aqueles que buscassem força para atingir degraus
mais elevados na existência humana. Uma mãe, no colo de quem muitos
buscam conforto, consolo e encantamentos, porque não dizer feitiços,
para facilitar a caminhada por este planeta. Ninguém é empossada iyáloríÿa
antes de sentar na cadeira especialmente preparada para este mister.
Corrente e cadeira, objetos de grande valor simbólico tanto para a
religião que pratico – o candomblé, quanto para a Academia de letras na
qual agora sou empossada.
Hoje, aos oitenta e oito anos de idade, estou eu recebendo, outra
vez, uma corrente, que segura uma linda medalha, e também mais uma
cadeira. A medalha me faz lembrar o quão honrosa devo procurar fazer
minha caminhada; a corrente, o sustentáculo desta medalha, demonstra o
pacto agora firmado com os objetivos da Academia de Letras da Bahia;
a cadeira deixa de ser apenas um lugar de assento, para se transformar
em um trono simbólico, onde ilustres cidadãos se imortalizaram. Sou
agora mais um elo dessa corrente que me liga aos outros elos, meus
confrades e confreiras, estejam eles presentes em vida ou em obra.
Analisando a palavra cadeira, descubro que esta vem do latim “cathedra”,
significando cadeira de braços que confere uma imponência a quem nela
se senta. Dessa palavra também deriva o termo catedral, local onde se
encontra instalada uma autoridade religiosa. Quando se diz que alguém
conhece um assunto “de cathedra”, sobre este se deseja afirmar que ele
tem um domínio sobre o tema em voga.
Não sou uma literata “de cathedra”, não conheço com profundidade as nuanças da língua portuguesa. O que conheço da nobre língua vem dos estudos escolares e do hábito prazeroso de ler. Sou uma literata por necessidade. Tenho uma mente formada pela língua portuguesa e pela língua yorubá. Sou bisneta do povo lusitano e do povo africano. Não sou branca, não sou negra. Sou marrom. Carrego em mim todas as cores.
Não sou uma literata “de cathedra”, não conheço com profundidade as nuanças da língua portuguesa. O que conheço da nobre língua vem dos estudos escolares e do hábito prazeroso de ler. Sou uma literata por necessidade. Tenho uma mente formada pela língua portuguesa e pela língua yorubá. Sou bisneta do povo lusitano e do povo africano. Não sou branca, não sou negra. Sou marrom. Carrego em mim todas as cores.
Sou brasileira. Sou baiana. A sabedoria ancestral do povo africano,
que a mim foi transmitida pelos "meus mais velhos" de maneira oral, não
pode ser perdida, precisa ser registrada. Não me canso de repetir: o que
não se registra o tempo leva. É por isso e para isso que escrevo.
Compromisso continua sendo a palavra de ordem. Ela foi sentenciada por Mãe Aninha
e eu a acato com devoção. Em um dos artigos que escrevi, eu digo:
Comprometer-se é obrigar-se a cumprir um pacto feito, tenha sido ele
escrito ou não. O verbo obrigar, que tem origem no latim obligare,
significa unir. Portanto, quando dizemos um “muito obrigado”, estamos
sugerindo a alguém que nos fez um favor que a ele estaremos ligados, em
virtude do favor que nos foi prestado.Obrigação é uma das palavras
chaves do candomblé: aquela que abre muitas portas. Fazer uma obrigação
ou a obrigação, fica sendo, então, uma forma de estar cada vez mais
unido aos oríÿa.
Se minha parte branca estuda as origens latinas da língua portuguesa,
minha parte negra estuda a língua africana de que fazemos uso no candomblé: o yorubá arcaico. Nessa língua, comprometer-se é wulewu, palavra que tem a seguinte análise: a raiz wù (agradar),
a mesma que forma a palavra wúlò, que significa útil; e lé, que é
traduzida como seguir em frente, procurando não ser mais um na multidão.
Para o povo yorubá e, consequentemente, para os
brasileiros que se guiam pela religião nagô, uma pessoa comprometida é
aquela que é útil, pois cumpre a função que lhe foi destinada, e por
isto pode seguir em frente, distinguindo-se da massa uniforme; uma
pessoa comprometida é especial, pois já encontrou sua especificidade,
tornando-se, assim, imortal.
É considerado imortal todo aquele que fez ou faz de sua vida uma obra a ser lida, a ser internalizada. É objetivo da Academia de Letras da Bahia
manter viva, na memória de todos, a contribuição que ilustres homens e
mulheres deram, no sentido de colaborar para o aperfeiçoamento da
sociedade e da humanidade. Se um dia, no Ilé Àÿç Opo Afonjá, eu recebi grossas correntes que simbolizam elos de união com os oríÿa,
com meus ancestrais e meus descendentes espirituais; hoje recebo uma
corrente que me une a todos que um dia pertenceram e os que ainda
pertencem a esta nobre instituição. Honrada estou por ter sido escolhida
para sentar na cadeira 33, que tem como patrono um ser tão especial
quanto Castro Alves e que foi ocupada pelos imortais: Francisco Xavier Ferreira Marques, Heitor Praguer Fróes, Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araújo.
Se meu discurso tem como base o comprometimento, sigo rememorando os primeiros acadêmicos que ocuparam a cadeira 33.
Francisco Xavier Ferreira Marques foi a pedra fundamental da cadeira 33. Imortal também pela Academia Brasileira de Letras, onde foi o segundo ocupante da cadeira 21. No prefácio de sua obra O Feiticeiro, é citada uma fala do advogado sergipano Jackson Figueredo, através da qual se pode sentir a imortalidade desse homem da política, que era autodidata em literatura: “Xavier Marques
merecerá o amor de todo o povo brasileiro, na proporção em que for
crescendo a nossa consciência nacional. Tê-lo-á todo, quando levarmos
não só à pompa dos programas, mas as escolas, o culto do nosso passado.
Quando os nossos homens públicos se derem a esta obra, com menos frases e
mais seriedade, os livros de Xavier Marques irão parar às mãos da infância e educá-la para a formação da alma brasileira”. Xavier Marques
foi um jornalista e político que nasceu em 3 de dezembro de 1861, na
prazerosa Ilha de Itaparica, o que contribuiu para que sua literatura
encontrasse nos temas praieiros uma fonte de inspiração. Escrever era
sua grande paixão. Poeta, romancista e ensaísta, foi com a novela Jana e Joel que a crítica o consagrou.
A imortalidade de uma pessoa pode estar em sua vida, em sua obra, em sua descendência. Xavier Marques partiu do planeta em que vivemos em 30 de outubro de 1942, mas aqui deixou seu neto, o músico Celso Xavier Marques,
hoje com 71 anos, o qual vem dedicando grande parte de sua vida e de
sua obra musical a memória do avô, a quem chama carinhosamente de "meu
velho escritor itaparicano".
O neto não teve o prazer e a alegria de conhecer o avô na vida
física, o que não impediu que entre eles fosse firmada uma bonita
ligação espiritual. Foi, provavelmente, essa ligação que inspirou o neto
de Xavier Marques a escrever um hino em tributo a seu avô, o qual se constitui uma verdadeira biografia sobre o mesmo. A arte musical de Celso Xavier Marques contribui, assim, para tornar a obra de Francisco Xavier Ferreira Marques ainda mais imortal. Celso Xavier Marques traz na letra um elenco dos títulos dos livros publicados por Francisco Xavier Ferreira Marques,
os quais são seus trabalhos mais conhecidos, lidos e apreciados: A
cidade encantada, A arte de escrever, As voltas da estrada, Jana e Joel,
O feiticeiro, Holocausto, Os praieiros, Mar azul, A boa madrasta, Maria
Rosa, O arpoador, Sargento Pedro, Insulares, Terras mortas, Pindorama,
Terra das palmeiras. Onde estiver, o grande político e escritor baiano
há de escutar seu neto cantar: "Deus criou, tão sublime, a sua pena
magistral. Fez Xavier Marques, imortal".
O imortal Xavier Marques deixou sua cadeira para ser ocupada por Heitor Praguer Fróes. Filho da histórica e cultural cidade de Cachoeira, nascido no dia 25 de setembro de 1900. Praguer Fróes
foi poeta, tradutor, médico e professor. Foi membro não apenas da
Academia de Letras da Bahia, mas também de inúmeras outras instituições
científicas e culturais, como a Academia de Medicina da Bahia.
Praguer Fróes escrevia com sacrifício. Eu faço uso
dessa palavra não no sentido comum que ela possui, como sinônimo de
dificuldade, mas em seu sentido original. Escrever para Praguer Fróes
era um ofício sagrado, sobre o qual ele dizia: “Quem escreve um livro e
o revê e publica passa pelo paraíso e pelo inferno: Pelo paraíso,
quando compõe; pelo purgatório, quando retoca; pelo inferno, quando
imprime. Pelo paraíso, quando compõe, porque nada é mais agradável do
que criar; pelo purgatório, quando retoca, porque nada é tão fastidioso
quanto modificar; pelo inferno, quando imprime, porque nada é mais
enervante que estar interminavelmente a corrigir”. E foi, pensando e
sentindo assim, que Praguer Fróes somou em sua biografia livros de
poemas, contos, contrafábulas e inúmeras obras científicas. Sacralizar
um ofício é um comportamento típico de quem se preocupa e se ocupa com a
humanidade. Tanto que Praguer Fróes chegou a abdicar
dos direitos autorais de seu livro Lições de Medicina Tropical, em
benefício do então futuro Hospital das Clínicas. Praguer Fróes era um humanista nato, pois herdou de seus pais a consciência cidadã.
Não se pode nem se deve falar de Heitor Praguer Fróes, sem falar de sua família. Pai, mãe e filho, todos eles médicos que dedicaram a vida a salvar vidas. Sua mãe, Francisca Praguer Fróes,
foi uma das primeiras mulheres formadas em Medicina, pioneira em todas
as áreas em que atuou, principalmente na defesa dos direitos femininos.
Ela dizia: "Eu sou feminista por herança e convicção"; "A inferioridade
da mulher não é fisiológica, nem psicológica; ela é social. Sua
escravidão sexual determina sua dependência econômica". O pai de Heitor Praguer Fróes, João Américo Garcez Fróes,
foi tão "singular figura humana" que quando precisava interferir no
comportamento de um estudante de Medicina, de modo a impedir que este
fizesse o doente sofrer desnecessariamente, delicadamente dizia em
latim: "Non vi, sed arte!” ("Não pela força, sim pela arte!").
O que nosso confrade o jornalista Jorge Calmon diz sobre o pai de Heitor Praguer Fróes
é o princípio que faz de um membro da Academia de Letras da Bahia um
imortal; é o principio que faz de qualquer pessoa, letrada ou não, um
imortal. Ele diz: "Efetivamente, há homens que se tornam instituições.
São Poucos. Constituem exceções. A regra geral é o bitolamento medíocre
dos inumeráveis componentes do rebanho humano, que a lei da vida vai
tangendo, em marcha entre o nascimento e a morte. Nessa indistinta
mediania, as inteligências não brilham, o esforço não avulta, o caráter
não logra atingir forma, consistência. É a grande planície dos homens
comuns. Vez por outra, desse solo rasteiro sobressai uma eminência. O
talento, a virtude, o mérito rompem a vulgaridade e projetam de entre a
massa os indivíduos bem dotados, ou que a si mesmo se dotam, e cuja
ascensão proclama as faculdades superiores da pessoa humana. Foi Garcez Fróes um desses raros indivíduos".
Em 25 de outubro de 1987, Heitor Praguer Fróes
seguiu seu caminho rumo ao reino divinal, para encontrar esta linda
família que deixou para todos nós um exemplo de vida registrado em
livros.
Seguindo a lei da vida, Heitor Praguer Fróes deixou sua cadeira para ser ocupada por Waldemar Magalhães Mattos,
que nasceu na cidade de Entre Rios, em 13 de setembro de 1917, e viveu
na Terra por 86 anos. Era homem de números e letras. Bacharel em
Ciências Contábeis, ingressou na carreira literária em 1940 pelo caminho
jornalístico. O conjunto de sua obra é de um valor histórico
imprescindível para a compreensão da Bahia e, consequentemente, do
Brasil do século XIX. Tanto que em 2011, século XXI, portanto, dois de
seus livros foram reeditados: Panorama Econômico da Bahia e O Palácio da
Associação Comercial da Bahia, no qual Waldemar Mattos
narra o baile que comemorou, em 1911, o centenário da Associação
Comercial da Bahia, fundada em 15 de Julho de 1811: “Suntuoso no seu
deslumbramento inexcedível, cheio de encantadora poesia e fulgurante
pompa. Sem contestação, foi uma cerimônia de destaque excepcional, cujas
impressões os anais das crônicas baianas guardarão para sempre".
Waldemar Mattos também escreveu o livro A Bahia de Castro Alves e foi na sede da Associação Comercial da Bahia que o conclamado Poeta dos Escravos, na verdade poeta dos fracos e oprimidos, fez sua última declamação pública. Na tarde do dia 10 de fevereiro de 1871, apenas cinco meses antes de deixar esta vida, Castro Alves recitou o poema No meeting du Comité du Pain durante uma reunião filantrópica promovida pela colônia francesa em benefício das crianças desvalidas da Guerra Franco-Prussiana.
Waldemar Mattos também escreveu o livro A Bahia de Castro Alves e foi na sede da Associação Comercial da Bahia que o conclamado Poeta dos Escravos, na verdade poeta dos fracos e oprimidos, fez sua última declamação pública. Na tarde do dia 10 de fevereiro de 1871, apenas cinco meses antes de deixar esta vida, Castro Alves recitou o poema No meeting du Comité du Pain durante uma reunião filantrópica promovida pela colônia francesa em benefício das crianças desvalidas da Guerra Franco-Prussiana.
Waldemar Mattos ligou-se ao patrono da cadeira 33 ao escrever o livro A Bahia de Castro Alves.
E ligou-se a mim, atual ocupante desta honrosa cadeira, por ter ele
escrito sobre Dona Francisca de Sande, a primeira enfermeira do Brasil.
Afinal, eu hoje sou Mãe Stella, uma iyáloríÿa que orienta as pessoas no sentido de cuidarem do espírito, mas um dia fui Maria Stella de Azevedo Santos, uma enfermeira que orientava sobre os cuidados com o corpo físico.
Deixei para falar por último sobre meu antecessor, Ubiratan Castro de Araújo – Bira Gordo – e sobre o patrono da cadeira que hora ocupo Castro Alves
– O Poeta dos Escravos –, pelos laços que nos unem. Cada um de nós
lutando por honrar e glorificar um povo que, mesmo chegando escravizado
ao Brasil, soube fazer história, ajudando na formação de nosso país em
todas as áreas. Cada um de nós lutando por esse ideal de acordo com a
época em que viveu e com os dons que recebeu do Deus Supremo: A alma
poética de Castro Alves gritou clamando pela liberdade
física dos negros; Bira Gordo, com sua capacidade única de contar a
história e estórias, tudo fez para mostrar a contribuição indiscutível
deste povo; eu, como cultuadora de divindades, rogando sempre para que o
orgulho que agora estou sentindo não faça com que minha jornada
espiritual seja maculada, sigo esforçando-me no sentido de fazer com que
a religião trazida pelo povo africano para o Brasil seja melhor
compreendida e, assim, mais respeitada.
Em um discurso tão longo, tudo fiz para não cansar os ouvintes. Não
sei se estou conseguindo, mas em respeito a meu grande amigo e
antecessor na cadeira 33, o historiador Ubiratan Castro de Araújo,
tentei alcançar este feito procurando construir meu discurso de posse
narrando fatos de modo histórico, mas com a leveza de uma contadora de
"causos". Como disse anteriormente, Bira Gordo foi um grande contador da
história e de estórias. Nascido em Salvador, em 22 de dezembro de 1948,
o Professor Doutor Ubiratan Castro de Araújo foi
graduado em História, pela Universidade Católica do Salvador e em
Direito pela Universidade Federal da Bahia. Um estudioso por natureza,
fez mestrado em História na Université de Paris X, Nanterre, e doutorado
em História na Universite de Paris IV (Paris-Sorbonne). O fato de ter
recebido o Troféu Clementina de Jesus da União dos Negros pela Igualdade e a Medalha Zumbi dos Palmares
da Câmara Municipal de Salvador mostra o reconhecimento pelo empenho de
Bira Gordo contra a discriminação racial. Foram inúmeras as vezes que
nos encontramos em seminários, e outros encontros de ordem semelhante,
para reafirmar a grandeza histórica do povo negro e sua sabedoria
ancestral, que é capaz de orientar qualquer um que dela se aposse.
Afinal, sabedoria não tem cor e não pertence a nenhuma raça específica.
A frágil saúde de Bira Gordo, como gostava de ser
chamado, não o impediu de dar uma grande contribuição ao mundo
intelectual e de transmitir alegria por onde passava e para todos com
quem convivia. Sua prestabilidade era incontestável! Nunca se negava a
participar de nenhum evento para o qual fosse convidado a contribuir com
sua forma única de estoriar a história. Intelectual cinco estrelas;
contador de "causos" de estrelas incontáveis. Bira registrou pouco seus
vastos conhecimentos.
Foram apenas três os livros por ele escritos: A Guerra da Bahia,
Salvador Era Assim - Memórias da Cidade e Sete Histórias de Negro.
Editou pouco, mas falou muito, muito, muito... E era uma fala deliciosa
de ser ouvida. Em seu único livro de ficção, Sete Histórias de Negro,
ele conseguiu reunir muito do que era, sabia e lutava. Para dizer o que Bira
era, sabia e lutava, tomarei emprestado o que seu amigo, o jornalista e
escritor, Emiliano Queiroz, disse sobre ele: "Quando a barra pesava,
quando algum problema o atormentava, Bira punha-se a cantarolar como a
se convencer de que os orixás pudessem socorrê-lo ou simplesmente como
uma maneira de afastar os maus olhados e buscar socorro na poesia, que
ela sempre ajuda - quanto mais quando a alma não é pequena, e a dele era
do tamanho do mundo". Concordo, por experiência própria, com a opinião
de Emiliano Queiroz sobre Bira: "O mestre que compartilhava sua erudição como quem contasse histórias à beira da fogueira".
Um exemplo claro dessa capacidade que tinha Ubiratan Castro,
um intelectual do povo, é a última história escrita em seu livro Sete
Histórias de Negro. Intitulada "O Protesto do Poeta", a referida
história é muito adequada para este discurso, uma vez que narra uma
conversa que acontece em uma sessão espírita entre Castro Alves e um grupo de pessoas. Como bom piadista que era, não escapou da mente criativa de Bira Gordo nem o patrono da cadeira que ocupava na Academia de Letras da Bahia. Para Bira, a vida parecia ser uma piada e a piada uma coisa muito séria. Condensada de maneira irônica no "causo" do protesto do poeta, Bira
conta a trajetória da libertação dos escravos no Brasil ocorrida no
passado, alertando para a necessidade constante por uma luta pela
liberdade, pois as correntes de ferro, antes visíveis, são, no presente,
correntes imperceptíveis, que marginalizam e excluem.
Bira Gordo nos deixou a pouco tempo, em 3 de janeiro
do ano em curso. Se hoje ainda estivesse conosco, digo fisicamente, é
provável que buscasse na poesia de Castro Alves a força
que precisamos para continuar enaltecendo um povo guerreiro, ao mesmo
tempo pacífico e afetuoso, que soube amar e amamentar quem os
escravizou.
Muitas pessoas, no passado e no presente, lutaram para que hoje eu pudesse, de maneira natural, fazer parte desta Academia. Uma delas foi o patrono da cadeira onde me firmo. Antônio Frederico de Castro Alves entoou gritos poéticos na tentativa de despertar a sociedade brasileira para a mais cruel de todas as atitudes humanas: a privação da liberdade. Em 1868, através de seu poema "Vozes d'África", ele clamou:
Muitas pessoas, no passado e no presente, lutaram para que hoje eu pudesse, de maneira natural, fazer parte desta Academia. Uma delas foi o patrono da cadeira onde me firmo. Antônio Frederico de Castro Alves entoou gritos poéticos na tentativa de despertar a sociedade brasileira para a mais cruel de todas as atitudes humanas: a privação da liberdade. Em 1868, através de seu poema "Vozes d'África", ele clamou:
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
- Infinito: galé! ...
Por abutre - me deste o sol candente,
E a terra de Suez - foi a corrente Que me ligaste ao pé...
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
- Infinito: galé! ...
Por abutre - me deste o sol candente,
E a terra de Suez - foi a corrente Que me ligaste ao pé...
Se minha bisavó chegou ao Brasil presa a muitos outros negros
africanos, amarrada por correntes que lhe tiraram o maior de todos os
bens que pode ter qualquer ser vivo – a liberdade, hoje aqui me encontro
acorrentada por um adorno que me une a todos os baianos, brasileiros,
humanos, letrados ou não letrados. O Poeta dos Escravos desejava ver
todos os homens tratados com igualdade de condições; queria ver
desacorrentados os negros escravizados. Por isso, Castro Alves escreveu um dos mais conhecidos poemas da literatura brasileira, "O Navio Negreiro", no qual denunciava as atrocidades sofridas pelos africanos na travessia oceânica que foram obrigados a se submeterem:
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
O baiano Castro Alves nasceu em 14 de março de 1847 na fazenda Cabaceiras, antiga freguesia de Muritiba, que é hoje a cidade de Castro Alves.
Era dotado de uma constituição física frágil, mas de uma forte alma
humanizada, que contestava as barbaridades típicas da época em que viveu
– o século XIX. Foi corajoso o suficiente para que, com apenas 21 anos
de idade, obrigasse os fazendeiros donos de escravos a escutá-lo recitar
"O Navio Negreiro", pois estando todos em uma comemoração cívica não seria politicamente correto retirar-se do recinto.
A poesia de caráter social de Castro Alves era
típica da terceira geração do Romantismo brasileiro, chamada Condoreira,
pois o condor é uma ave símbolo de liberdade. Representante da
burguesia liberal, Castro Alves foi o último grande
poeta da geração Condoreira que, por meio da literatura, instigava o
povo para exigir a abolição da escravidão e a proclamação da república,
aproximando, assim, o Romantismo do gênero literário seguinte – o
Realismo.
Se as causas sociais eram o ideal de Castro Alves, o amor era sua fonte de inspiração. E como são lindos seus poemas de amor. Escutemos com a alma seu poema "As Duas Flores", que na Escola Nossa Senhora Auxiliadora, de propriedade da professora Anfrísia Santiago, eu costumava recitar para minhas colegas no horário de recreio:
São duas flores unidas
São duas rosas nascidas
Talvez do mesmo arrebol,
Vivendo, no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
São duas rosas nascidas
Talvez do mesmo arrebol,
Vivendo, no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
Intensamente viveu Castro Alves a sua curta vida de
24 anos. Em 6 de julho de 1871 ele não pode mais sentir na carne os
prazeres do amor. Também não pôde ver os escravos desacorrentados, não
pôde assistir a seu ideal concretizado. Mas sua curta vida é longa.
Estamos hoje, aqui, nos deleitando com seus versos. Uma senhora de 96
anos, falando sobre seu primo Castro Alves, um dia me disse: "Por amor ele viveu, por amor ele morreu. Mas quem morre por amor não morre: torna-se imortal."
Eu sou o quinto elo da correte que forma a cadeia de iyáloríÿa do Ilé Àÿç Opo Afonjá.
Eu sou a quinta pessoa a ocupar a cadeira 33 da Academia de Letras da
Bahia. O número cinco é meu guia. Há setenta e quatro anos atrás, nesta
mesma data, eu fui iniciada para o oríÿa caçador – Õÿösi. Hoje é uma quinta-feira, dia consagrado a meu oríÿa. Nada disso foi programado, nada disso é coincidência. É magia e destino!
Na cadeira 33, e em todas as outras que compõem esta nobre
instituição, cabe pessoas de todas as profissões, cores, religiões,
estilos literários... Na cadeira 33, e em todas as outras desta
instituição, só não cabe vaidade, nem modéstia. Não sendo vaidosa, digo
que, com certeza, não fui escolhida para ser uma acadêmica pelo fato de
escrever livros com sofisticação gramatical. Não sendo modesta, tenho a
convicção de que se hoje aqui estou é por escrever minhas experiências
de modo a cumprir meu compromisso sacerdotal. Não se esqueçam que
compromisso e união são as bases em que meu discurso foi fundamentado.
Sentar-me na cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia era meu destino.
O que escreveu meu confrade Paulo Costa Lima, quando
fui escolhida para esta confraria, transmite com perfeição meus
pensamentos sobre esse novo envolvimento em minha vida. Ele assim pensou
e escreveu: "Hoje, 25 de abril, a Academia de Letras da Bahia jogou os
búzios e o nome que apareceu foi o de Mãe Stella de Oxossi, para ocupar a cadeira cujo patrono é Castro Alves, sendo o grande historiador baiano Ubiratan Castro
o último ocupante. A escolhida se fez presente logo após a votação para
o abraço e a manifestação do compromisso. Foi uma bela cena, e muito
rara. Um encontro de erudições da África e da Europa. Na verdade, um
gesto inovador que não pode deixar de ser levado em conta como paradigma
de abertura de horizontes e de convivência das diferenças... na luta de
afirmação da tradição afro-brasileira e, portanto, pelo respeito aos
direitos à alteridade e identidade própria.Diante da contribuição
civilizatória que a África trouxe ao Brasil, alguns preferem calar,
outros reconhecem mas acentuam a natureza oral dos conhecimentos e
saberes.Mãe Stella rompeu essas barreiras (entre tantas), e passou a
defender uma representação mais sintonizada com os novos tempos,
conectando oralidade e manifestações letradas...."
Como já disse, sou bisneta de portugueses e africanos. Essas duas
descendências não são somente minhas. São do Brasil. Quantas e quantas
vezes estamos falando palavras de origem africana, pensando estar
falando em português? Tôrô é chuva, görô é cachaça, gògó é garganta,
todas elas palavras da língua yorubá, que precisam ser preservadas em
sua origem. Talvez muitos tenham estranhado, em alguns momentos do
discurso, ser falado os oríÿa, as iyáloríÿa. Não é erro. É que na língua yorubá
as flexões gramaticais, no que se refere a número, são construídas de
maneira diferente da língua portuguesa. Essa herança faz com que muitas
vezes o povo fale uma mistura de português com yorubá. Sobre os dialetos
africanos, a confreira Ieda Pessoa de Castro conhece o assunto de
cathedra. Escrevo com a intenção maior de salvaguardar a língua e a
sabedoria de meus ancestrais africanos, pois tendo sido este povo
ignorado por séculos, seus conhecimentos correm o risco de serem
esquecidos ou transmitidos de maneira deturpada.
Ser iniciada aos catorze anos de idade, fez com que eu tivesse a
vantagem da inocência. Sem saber da responsabilidade que me esperava, eu
brincava de caçador. Afinal, fui consagrada para o oríÿa Õÿösi
– a divindade caçadora. Na minha mocidade, pude conciliar a profissão
com a religião, cuidando do ser humano como enfermeira sanitarista
durante trinta e cinco anos, quando me aposentei, ao tempo em que servia
também aos deuses.
Curiosamente, alguns mais velhos insistiam em me repassar os
conhecimentos que possuíam sobre os fundamentos do candomblé. Em uma
época em que nossa tradição era transmitida apenas oralmente, Bida de Iyemonjá,
por exemplo, contrariava o costume e de maneira obstinada mandava que
eu anotasse nossas conversas. Muito tímida e respeitosa, não era fácil
fazer o que ela mandava.
Com o passar do tempo, entendi que os mais velhos queriam munir-me de
conhecimentos, pois cada dia eu recebia mais informações. Só em
dezenove de março de mil novecentos e setenta e sete, quando fui
escolhida iyáloríÿa do terreiro de candomblé onde fui iniciada – o Ilé Àÿç Opo Afonjá,
na Bahia –, é que pude enfim compreender o porquê de toda aquela
atenção para comigo. Nos anos que se seguiram, não apenas os mais
velhos, mas também pessoas mais novas me enviavam importantes materiais
de pesquisa sobre a religião que nos foi legada pelos africanos. As
minhas atividades como iyáloríÿa são muitas e nunca me
permitiram organizar tudo que eu recebia por revelação divina ou por
gentileza dos homens, o que muito me preocupava.
Como iniciada que sou, tenho tendência a resguardar os mistérios,
evitando retirar os véus que os encobrem. Por isso, não foi uma decisão
nada fácil fazer uso da tradição escrita para registrar os conhecimentos
que adquiri através da tradição oral. A ousadia veio da necessidade,
mas a coragem veio da permissão dos oríÿa. Diante da
modernidade, essa ficou sendo minha única alternativa para evitar
deturpações da essência de uma religião milenar. Não sou uma escritora!
Sou uma iyáloríÿa que escreve! Sou uma iyáloríÿa
que escreve com o objetivo primeiro de não deixar perder a valiosa
herança de nossos ancestrais. Assim foi que optei por oferecer a todos,
indistintamente, a riqueza da filosofia yorubá, de maneira escrita,
porém respeitosa, evitando expor fundamentos que interessam, apenas, aos
sacerdotes, por serem eles responsáveis pela execução de rituais. A
busca pela ampliação do conhecimento deve ter como interesse principal o
aprimoramento pessoal, visando uma amplificação das capacidades
enquanto ser humano.
Se eu chamo meus colegas de academia de confrades e confreiras, é porque estamos juntos na mesma confraria. No Ilé Àÿç Opo Afonjá,
cumprimentamos uns aos outros chamando-nos de irmãos, estamos em uma
irmandade. Confraria, irmandade, comunidade...elos unidos formando uma
corrente por um objetivo comum. Na Academia de Letras da Bahia, o
objetivo é cultuar para preservar a tradição escrita. No Ilé Àÿç Opo Afonjá, o objetivo é cultuar para preservar a tradição oral. Sou uma acadêmica oriunda da família Opo Afonjá, que tem como Iyá Nlá – a Grande Mãe – Ôba Biyi, Mãe Aninha,
que no início do século XX escreveu um adurá (uma reza), na língua
yorubá, pedindo bênçãos para a construção do Terreiro de Candomblé que
tem como patrono o oríÿa ßàngó: seu élédá, o dono de sua cabeça.
Mãe Aninha assim rezava em yorubá:
Ôba Kawoo
Ôba Kawoo Kabiesile
Kö mö èsi kunlè
Ôba Kawoo
Ôba Kawoo Kabiesile
Çkùn
Ôba Kawoo Kabiesile
Kö mö èsi kunlè
Ôba Kawoo
Ôba Kawoo Kabiesile
Çkùn
Esse adurá, em tradução, quer dizer: "Xangô, Rei Leopardo cuja
decisão e ação ninguém poderá questionar. Dê-me como resposta a
construção completa desta casa". Através dessa reza em forma de cântico,
Mãe Aninha pediu condições para construir o Ilé Àÿç Opo Afonjá.
Ainda hoje, nós, seus descendentes espirituais, continuamos entoando
sua oração, todas as quartas-feiras na "Casa de Candomblé" construída
por ela, pedindo forças para nos mantermos firmes em nossas decisões;
pedindo humildade para mudar as ações que nos sejam questionadas, apenas
quando elas forem justas. Somos descendentes de Mãe Aninha! Somos filhos de ßàngó! Somos filhos da justiça! Somos educados, polidos e firmes. Somos filhos da resistência!
Se Mãe Aninha pediu a seu oríÿa, ßàngó,
forças para construir seu "Terreiro de Candomblé", eu peço a meu oríÿa,
Õÿösi, que dê força, saúde e prosperidade a mim e a todos aqui
presentes, principalmente aqueles cujos corações são puros.
Mãe Stella puxa o cântico em homenagem a seu oríÿa:
Olówo mo npe mi ô iye iye
Ôdç mo pe mi olùbö ai pè
Mo npe mi ô iye iye
Ôdç mo pe mi olùbö ai pè
Mo npe ni ná së ni dé ná
Ôdç mo pe mi olùbö ai pè
Mo npe mi ô iye iye
Ôdç mo pe mi olùbö ai pè
Mo npe ni ná së ni dé ná
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