Luís Augusto Fischer*
"Ao longo do dito mês farroupilha, tão bombardeado pela propaganda que chega a me parecer
piada de mau gosto, talvez o mundo adquira um sentido profundo e as
coisas da vida cotidiana se alinhem numa hierarquia compreensível e
nítida, trazendo alivio para as durezas que o mundo moderno impõe."
Esses tempos ouvi alguém começar uma frase assim:
“Professor, o senhor que é contra o gauchismo...”. Em outras
oportunidades, já ouvi frases diferentes: “O senhor, que é contra os
paulistas”, ou “O senhor, que é contra o Modernismo”. Demora um tempo
para eu desfazer a simplificação que vai nesses juízos sumários.
Não sou contra o gauchismo, o paulista ou o Modernismo em si, e preciso postular isso como preliminar. Depois tento avançar para dizer que, sobre esses temas, assim como sobre outros, procuro exercer a prerrogativa da crítica, que não é igual a falar mal, porque a crítica, quando praticada em altura conveniente, significa pensar, tomar um objeto de análise e tentar entender sua formação e suas implicações.
Nem mesmo gosto da simplificação que condena o gauchismo como “tradição inventada”. Não porque não tenha sido inventado: sim, foi; mas no fim toda tradição é inventada. Essa da “invenção das tradições” é expressão popularizada num belo livro, organizado por Eric Hobsbawn e Terence Ranger, com esse preciso nome, A Invenção das Tradições (Paz e Terra, 1984). Não estamos aqui num debate conceitual rigoroso, mas valeria a pena diferenciar um costume (tomar infusão de erva-mate num porongo, bater três vezes na madeira para espantar o azar, jogar futebol sábado de tarde com o pessoal da firma) e uma tradição formulada como regra, que pode se prestar à manipulação ideológica.
Cito um exemplo: “Há um lugar no planeta, no extremo Ocidente, onde vive um povo muito interessante, que há cerca de 600 anos se achava inteiramente desprovido de cultura sofisticada. Ela havia perdido sua sabedoria ancestral ao cabo de inumeráveis invasões de bárbaros, de sucessivas catástrofes, pestes, secas, o diabo. A partir de certo momento, esse povo começou a se reinventar, criando uma cultura artificial: começaram a imitar uma arquitetura de que só conheciam ruínas, faziam traduções de textos de línguas mortas a partir de traduções de outras línguas, tiravam conclusões delirantes, inventaram tradições esotéricas perdidas...”
Que história é essa? Que estranha invenção é essa? É o Renascimento europeu. “Os europeus – mistura étnica confusa de germânicos e celtas, itálicos e eslavos, que falam língua híbridas, muitas vezes pouco mais que um latim mal falado, crivado de barbarismos, praticando uma religião semita filtrada por uns conceitos gregos e latinos – descobrem a literatura e a filosofia via os árabes. Refiguram o mundo greco-romano a partir de fantasias e projeções de seu presente. Erguem templos, casas, palácios imitativos, escrevem uma literatura que se refere privilegiadamente a esse mundo, etc.”
Estou citando o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que está se referindo ao também antropologo norte-americano Marshall Sahlins (Eduardo Viveiros de Castro: Encontros, editora Azougue, 2008). Os dois convergem numa constatação que eu subscrevo: quando se trata dos europeus, chamamos a esse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros, chamamos de invenção da tradição.
Não sou contra o gauchismo, o paulista ou o Modernismo em si, e preciso postular isso como preliminar. Depois tento avançar para dizer que, sobre esses temas, assim como sobre outros, procuro exercer a prerrogativa da crítica, que não é igual a falar mal, porque a crítica, quando praticada em altura conveniente, significa pensar, tomar um objeto de análise e tentar entender sua formação e suas implicações.
Nem mesmo gosto da simplificação que condena o gauchismo como “tradição inventada”. Não porque não tenha sido inventado: sim, foi; mas no fim toda tradição é inventada. Essa da “invenção das tradições” é expressão popularizada num belo livro, organizado por Eric Hobsbawn e Terence Ranger, com esse preciso nome, A Invenção das Tradições (Paz e Terra, 1984). Não estamos aqui num debate conceitual rigoroso, mas valeria a pena diferenciar um costume (tomar infusão de erva-mate num porongo, bater três vezes na madeira para espantar o azar, jogar futebol sábado de tarde com o pessoal da firma) e uma tradição formulada como regra, que pode se prestar à manipulação ideológica.
Cito um exemplo: “Há um lugar no planeta, no extremo Ocidente, onde vive um povo muito interessante, que há cerca de 600 anos se achava inteiramente desprovido de cultura sofisticada. Ela havia perdido sua sabedoria ancestral ao cabo de inumeráveis invasões de bárbaros, de sucessivas catástrofes, pestes, secas, o diabo. A partir de certo momento, esse povo começou a se reinventar, criando uma cultura artificial: começaram a imitar uma arquitetura de que só conheciam ruínas, faziam traduções de textos de línguas mortas a partir de traduções de outras línguas, tiravam conclusões delirantes, inventaram tradições esotéricas perdidas...”
Que história é essa? Que estranha invenção é essa? É o Renascimento europeu. “Os europeus – mistura étnica confusa de germânicos e celtas, itálicos e eslavos, que falam língua híbridas, muitas vezes pouco mais que um latim mal falado, crivado de barbarismos, praticando uma religião semita filtrada por uns conceitos gregos e latinos – descobrem a literatura e a filosofia via os árabes. Refiguram o mundo greco-romano a partir de fantasias e projeções de seu presente. Erguem templos, casas, palácios imitativos, escrevem uma literatura que se refere privilegiadamente a esse mundo, etc.”
Estou citando o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que está se referindo ao também antropologo norte-americano Marshall Sahlins (Eduardo Viveiros de Castro: Encontros, editora Azougue, 2008). Os dois convergem numa constatação que eu subscrevo: quando se trata dos europeus, chamamos a esse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros, chamamos de invenção da tradição.
Acampando
Dito isso, é claro que o pensamento crítico, que desejo praticar
sempre, não deve livrar liminarmente a cara de nenhuma tradição, seja a
do gauchismo organizado, seja a do próprio exercício acadêmico da
crítica. Estou de acordo com aqueles que observam, contra a euforia de
boa parte do movimento tradicionalista, que a estrutura de suas
organizações esconde conflitos, de etnia, de gênero, de interesses. Há
uma tendência generalizada a projetar como mundo ideal, no presente, uma
sociedade patriarcal satisfeita com as diferenças de classe, que perdem
nitidez ou são sonegadas nas representações oficiais.
Mas é preciso dar outra volta no parafuso para não jogar fora coisa valiosa a título de evitar a ortodoxia tradicionalista gauchesca e o conservadorismo mental que ela pode trazer consigo. Citando um grande e pouco conhecido pensador sul-rio-grandense, o deslocamento do gaúcho tradicional no mundo moderno é desses eventos históricos que geram “estados de alma interessantíssimos”, capazes de virar matéria-prima para a arte. O nome do pensador é João Pinto da Silva, reeditado agora pelo Instituto Estadual do Livro, em sua História Literária do Rio Grande do Sul (primeira edição em 1924, segunda em 1930, tendo sido o atual volume coordenado por Carlos Alexandre Baumgarten).
Basta uma ida ao Acampamento Farroupilha para ter acesso a um mundo que não se esgota no que está dito nos parágrafos acima. E lá fui eu, como gosto de fazer desde que o acampamento existe.
Logo me lembrei da expressão do Cláudio Knierim, “favelão gaudério”, em referência aos cuidados que deveria haver na organização do acampamento, expressão que tanta polêmica causou. Algumas partes do acampamento de fato, ao menos no dia em que lá estive (um sábado à tarde), dão um ar de favela, construções vazias com ar de abandono, espaços estreitíssimos entre as casas de material simples, com jeito desolador, mais ainda pelo contraste com a efusão das músicas que boiavam no ar e pela promessa de festa vinda do cheiro generalizado de churrasco.
Mas como negar a estranha alegria estampada no rosto de muitos dos frequentadores, especialmente os mais humildes, dentro das casas e nas ruelas, pilchados ou não? Não falo daqueles que, com ar de funcionários bem remunerados, manejavam espetos de carne de primeira qualidade e bebiam como se estivessem num camping, apenas vestindo alguma peça de roupa relativa ao mundo gauchesco. Me refiro àqueles que evidentemente encontram, no acampamento e, espero, nos CTGs, alguma compensação por velhas e persistentes humilhações cotidianas. Gente vivamente não urbana, de origem rural, talvez mesmo ex-peões, que ali se vestem de gala, capricham no recorte do bigode e se expõem, para verem e serem vistos, como qualquer mortal.
Mas é preciso dar outra volta no parafuso para não jogar fora coisa valiosa a título de evitar a ortodoxia tradicionalista gauchesca e o conservadorismo mental que ela pode trazer consigo. Citando um grande e pouco conhecido pensador sul-rio-grandense, o deslocamento do gaúcho tradicional no mundo moderno é desses eventos históricos que geram “estados de alma interessantíssimos”, capazes de virar matéria-prima para a arte. O nome do pensador é João Pinto da Silva, reeditado agora pelo Instituto Estadual do Livro, em sua História Literária do Rio Grande do Sul (primeira edição em 1924, segunda em 1930, tendo sido o atual volume coordenado por Carlos Alexandre Baumgarten).
Basta uma ida ao Acampamento Farroupilha para ter acesso a um mundo que não se esgota no que está dito nos parágrafos acima. E lá fui eu, como gosto de fazer desde que o acampamento existe.
Logo me lembrei da expressão do Cláudio Knierim, “favelão gaudério”, em referência aos cuidados que deveria haver na organização do acampamento, expressão que tanta polêmica causou. Algumas partes do acampamento de fato, ao menos no dia em que lá estive (um sábado à tarde), dão um ar de favela, construções vazias com ar de abandono, espaços estreitíssimos entre as casas de material simples, com jeito desolador, mais ainda pelo contraste com a efusão das músicas que boiavam no ar e pela promessa de festa vinda do cheiro generalizado de churrasco.
Mas como negar a estranha alegria estampada no rosto de muitos dos frequentadores, especialmente os mais humildes, dentro das casas e nas ruelas, pilchados ou não? Não falo daqueles que, com ar de funcionários bem remunerados, manejavam espetos de carne de primeira qualidade e bebiam como se estivessem num camping, apenas vestindo alguma peça de roupa relativa ao mundo gauchesco. Me refiro àqueles que evidentemente encontram, no acampamento e, espero, nos CTGs, alguma compensação por velhas e persistentes humilhações cotidianas. Gente vivamente não urbana, de origem rural, talvez mesmo ex-peões, que ali se vestem de gala, capricham no recorte do bigode e se expõem, para verem e serem vistos, como qualquer mortal.
Religião e diversão
Tenho a impressão de que essa alegria é análoga às festas da colônia,
alemã ou italiana, polaca ou judaica, nas quais se celebra o reencontro
com um mundo perdido ou de acesso não mais cotidiano. Na minha memória
afetiva há momentos assim, em regra associados à prática religiosa –
entre os colonos originais e seus filhos e netos, o mundo rural, a
família, o trabalho duro e a religião rimavam perfeitamente entre si.
Não tenho como considerar esses reencontros como coisa equivocada,
embora ao mesmo tempo não me pareça que a estética e ética implicadas
nessas evocações devam ser codificadas e enrijecidas.
Não estou sendo original ao sugerir que há, no Acampamento Farroupilha e no desfile, tanto quanto nas festas de colônia e de comunidades, um traço religioso forte. Nuns e noutras, se proporciona um momento de religação com um mundo que, não existindo mais empiricamente, passa a ser acionado simbolicamente para fins de satisfação grupal, em celebração do repertório compartilhado de valores, crenças, fantasias, sonhos. E não faltam, com o tempo, os oficiantes dessa comunhão, nem os cânones escritos, nem os símbolos; não faltam também os proselitistas, que passam a aborrecer quem não se identifica com o mesmo credo.
No meu mundo ideal, é livre a prática religiosa, sempre supondo que a boa-fé das pessoas não pode ser ludibriada. E é proibida a obrigatoriedade de ter religião.
Já as pessoas das classes confortáveis que ali se encontram me parecem ter outro tipo de alegria. O que é? Não sei ao certo. É óbvio que também elas se divertem, bebendo, comendo, socializando, ouvindo música de que gostam. Há muita gente que organiza a vida para fazer suas férias ali, um mês inteiro. Deve ocorrer-lhes também alguma felicidade espiritual profunda, não sei se de tipo religioso no sentido acima evocado. Ao longo do dito mês farroupilha, tão bombardeado pela propaganda que chega a me parecer piada de mau gosto, talvez o mundo adquira um sentido profundo e as coisas da vida cotidiana se alinhem numa hierarquia compreensível e nítida, trazendo alivio para as durezas que o mundo moderno impõe. É por pouco tempo, mas é bom, feito um carnaval antigo.
Não estamos longe, talvez, do significado de Gramado para a mesma classe média. Vai-se lá para admirar o mundo que não é exatamente cotidiano para todo mundo – calçada limpa, carros parando na faixa de pedestres, comércio de coisas bonitas, gente com dinheiro no bolso para gastar. Sem esgoto a céu aberto, sem gente desdentada pedindo esmola, sem escolas precárias nem hospitais sem vaga.
Não estou sendo original ao sugerir que há, no Acampamento Farroupilha e no desfile, tanto quanto nas festas de colônia e de comunidades, um traço religioso forte. Nuns e noutras, se proporciona um momento de religação com um mundo que, não existindo mais empiricamente, passa a ser acionado simbolicamente para fins de satisfação grupal, em celebração do repertório compartilhado de valores, crenças, fantasias, sonhos. E não faltam, com o tempo, os oficiantes dessa comunhão, nem os cânones escritos, nem os símbolos; não faltam também os proselitistas, que passam a aborrecer quem não se identifica com o mesmo credo.
No meu mundo ideal, é livre a prática religiosa, sempre supondo que a boa-fé das pessoas não pode ser ludibriada. E é proibida a obrigatoriedade de ter religião.
Já as pessoas das classes confortáveis que ali se encontram me parecem ter outro tipo de alegria. O que é? Não sei ao certo. É óbvio que também elas se divertem, bebendo, comendo, socializando, ouvindo música de que gostam. Há muita gente que organiza a vida para fazer suas férias ali, um mês inteiro. Deve ocorrer-lhes também alguma felicidade espiritual profunda, não sei se de tipo religioso no sentido acima evocado. Ao longo do dito mês farroupilha, tão bombardeado pela propaganda que chega a me parecer piada de mau gosto, talvez o mundo adquira um sentido profundo e as coisas da vida cotidiana se alinhem numa hierarquia compreensível e nítida, trazendo alivio para as durezas que o mundo moderno impõe. É por pouco tempo, mas é bom, feito um carnaval antigo.
Não estamos longe, talvez, do significado de Gramado para a mesma classe média. Vai-se lá para admirar o mundo que não é exatamente cotidiano para todo mundo – calçada limpa, carros parando na faixa de pedestres, comércio de coisas bonitas, gente com dinheiro no bolso para gastar. Sem esgoto a céu aberto, sem gente desdentada pedindo esmola, sem escolas precárias nem hospitais sem vaga.
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* Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: ZH on line, 21/09/2013
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