talvez o problema com o filósofo conservador não esteja exclusivamente nele, mas na maneira que o escutamos ou lemos
Só uma girafa com neurônios avariados diria que não vale a
pena tentar mudar o mundo. Não precisamos ir onde Judas perdeu as botas
para ficarmos insatisfeitos com o que alguns ainda chamam de “status
quo vigente”. Três manchetes jornalísticas desse final de setembro,
daqui mesmo do Brasil, podem funcionar como elementos motivadores para
reafirmar que mudanças são bem-vindas: analfabetismo volta a crescer,
cai a renda da mulher diante do homem, cessa de diminuir a distância
entre ricos e pobres. Caso isso ainda não seja convincente, posso jogar
na mesa mais uma manchete, do dia 26: Lei Maria da Penha não alterou a
violência contra a mulher. São 15 mulheres mortas por dia no Brasil por
causa da violência doméstica. Parece que precisamos de mudanças mais
profundas, e não aquelas restritas às trocas de nomes no governo.
Não sou uma girafa com neurônios avariados. Não consigo
sair por aí gritando “eis aqui eu, um filósofo conservador, eu não quero
mudar nada porque tudo vai bem”. É claro que não vou fazer isso. No
entanto, sei muito bem que há quem seja conservador e filósofo. Sei
também que uma figura desse tipo não diz encontrar a tal girafa no
espelho. Ao contrário, não raro os conservadores se descrevem como
“corajosos”, “inteligentes” e, mais recentemente, “democratas”. Ora,
quem lê um filósofo que se autodenomina um conservador, por exemplo, o
britânico Roger Scruton, pode não saber se ele é corajoso, mas não tem
como negar que ele é inteligente e que defende sinceramente algum tipo
de democracia liberal. Mas, diante disso, não temos como não nos
perguntar: como uma pessoa inteligente, olhando para esse mundo aqui que
vivemos, pode simplesmente acreditar que a disposição para mudar o
mundo é nociva, ou quando menos, simplesmente inútil?
Talvez o problema com o filósofo conservador não esteja exclusivamente nele, mas na maneira que o escutamos ou lemos.
Não raro, um filósofo conservador é bastante
verborrágico. Ele tem uma necessidade de estar em todo lugar, fazendo
propaganda de seus ideais políticos, mesmo quando diz não gostar de
política e de não querer conversar de política. Ele sabe também que
entre os não conservadores há os que são profissionais da mudança do
mundo, e estes se levam muito a sério. Não é difícil tais profissionais
se acreditarem predestinados, com uma missão na Terra. Desse modo, o
filósofo conservador não poupa seu discurso de frases de efeito,
exageros retóricos e farpas que realmente atingem os mudancistas ou
melhoristas ou reformistas ou progressistas ou revolucionários. Ora,
essa é a parte pior do conservador, e pode realmente ser deixada de
lado, até porque é aquilo que se repete e logo se torna entediante. Em
alguns conservadores, chega até a nos fazer crer que ele está se
candidatando ao posto da girafa.
Quando nos livramos dessa retórica de disco de vinil riscado do filósofo conservador, aí encontramos o que ler e aproveitar.
Dois filósofos não conservadores, um americano e outro
alemão, podem nos ensinar a fazer essa limpeza de terreno: o meu amigo
já falecido Richard Rorty e o ativo e interessante Peter Sloterdijk.
Eles leem o conservador Francis Fukuyama, em seu “O fim da história”
(1992), de uma maneira que não há como não acabar apreciando.
Como se sabe, o livro de Fukuyama é uma análise do
chamado “fim do comunismo” por obra do desaparecimento da União
Soviética e da reordenação do Leste Europeu, bem como uma dissertação do
que seria a situação pós-comunista.
Rorty toma Fukuyama para ironizar os críticos dele. Os
críticos vindos da esquerda insistiram em dizer que a história não havia
acabado e que seria tolice dizer que o capitalismo tinha vencido e
ponto final. Rorty então relê Fukuyama para dizer algo que é mais ou
menos o seguinte: caso você ainda esteja junto do projeto da “revolução
pelo totalmente outro”, o que Fukuyama está lhe dizendo é que “os
eventos de 1989 mostram que você está com falta de sorte”. Ora, quando
me veem à mente aquele tipo de esquerdista dogmático, que sempre esteve
pronto para dizer a todos nós que a história acabaria por lhe dar razão,
não há como não rir desse aproveitamento de Fukuyama por Rorty. Aliás,
quando eu li isso, lá no início dos anos de 1990, eu realmente
gargalhei.
Sloterdijk toma Fukuyama de um modo mais teórico. Ele
nota no livro um dado interessante. Fukuyama disserta sobre a situação
pós-comunista como uma situação em que a impessoalidade típica do relato
sociológico, que fala em classes e estruturas sociais, cede espaço para
narrativas que não podem deixar de notar aspectos “timóticos”, ou seja,
aspectos que vem do thymós, aquela parte intermediária da alma
platônica, entre o campo da razão e o dos apetites. Essa parte é a
responsável pela identidade, em geral embasada na coragem, no orgulho e,
portanto, na capacidade de fúria e vingança - a capacidade de ira.
Desse modo, Sloterdijk escreve um livro inteiro - “Ira e tempo” (Estação
Liberdade, 2012) - segundo uma visão que nota esses sentimentos nem
sempre nobres. Ele faz uma história intelectual levando em consideração a
inveja e a vingança como motores históricos. Como ele próprio diz,
trata-se de uma história antes timótica que erótica. Uma história que vê
as motivações humanas como em busca antes de reconhecimento que de
prazer ou qualquer outra coisa.
Muitos leram Fukuyama apenas para dizer que se tratava de
um conservador a mais. Seria apenas um aproveitador tripudiando sobre o
“fim do comunismo” e falando, como um neoarauto da direitista Seleções
do Reader´s Digest, que teríamos enfim terminado nossa epopeia na Terra
na adoção acrítica do american way of life. Por não verem em Fukuyama
uma girafa de neurônios avariados, Rorty e Sloterdijk (1) puderam lê-lo,
ainda que criticamente, de modo produtivo para eles próprios e, enfim,
para a nossa literatura filosófica.
É assim que temos de ler todo conservador? Não! Mas um
conservador filósofo, talvez sim. Não há razão para colocar olhos
naquelas partes que qualquer um que não quisesse ser chamado de ranheta e
caduco, não insistiria em repetir. Penso que há boas razões para ler um
filósofo conservador sem dar muita bola para o que ele fala segundo
gostos políticos, e assim ficar mais livre para averiguar o que diz no
âmbito propriamente filosófico. Em outras palavras: um filósofo
conservador vale ser lido antes como filósofo que como conservador.
Desde o colégio, quando o professor de história nos fazia ler
Tocqueville, isso já era uma verdade que, depois, na universidade, eu
muitos colegas deixamos de lado, para logo em seguida ter de retomar.
Caso não tivéssemos retomado, nós é que teríamos nos transformado em
girafas com neurônios avariados.
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***Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
(1) Tenho utilizado já há algum tempo, para o meu próprio
filosofar, esses dois filósofos. Um dos livros mais recentes em que
eles me dão apoio é “A nova filosofia da educação” (Ed. Manole, 2013),
junto com a filósofa Susana de Castro, professora na UFRJ.
Na foto: Foto: Francis Fukuyama
Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-09-28/para-que-serve-um-filosofo-conservador.html
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