sábado, 21 de setembro de 2013

MULHERES NA GUERRA DOS FARRAPOS

 Hilda H. Flores*
Muito se tem escrito sobre a Guerra dos Farrapos. Exaltam-se seus feitos, combates viram batalhas, que não as houve, e combatentes são guindados a heróis. Cantam-se façanhas enquanto agruras são apagadas da memória. Nesse processo, as grande ausentes são as mulheres.

Afora Anita, alçada a heroína de dois mundos, que sabemos da atuação feminina na guerra? Como viveram nos 10 anos de saques, incêndios e mortes? Pesquisas em arquivos e em jornais da época apontam para grupos femininos distintos, não raro acumulando atividades, como escravas hábeis em costura e bordado; fazendeiras substituindo o administrador tombado, liberando gado mediante recibo ou vendo o rebanho espoliado. Vivandeiras acompanhavam seu homem na retaguarda, acudindo feridos em combate. Imigrantes alemãs afirmaram o minifúndio como sistema econômico produtivo, enquanto barqueiras comandavam frágeis embarcações com produtos agrícolas para o mercado de Porto Alegre. A Santa Casa de Misericórdia tornou-se estabelecimento patronal ao gerir a equipe de mulheres (gerente, porteira, madrinhas, amas de leite, criadeiras) encarregadas da criação de infantes abandonados na roda dos expostos por conta da penúria da guerra civil.

A imprensa, desde 1828, debateu ideias conservadoras versus iluminismo europeu. Também publicou anúncios de “aulas” nas quais mestras ensinavam tradicionais “prendas domésticas” e matérias humanistas. Maria Josefa Pereira Pinto reuniu as duas tarefas: entre seus alunos teve o mais tarde famoso gramático Antônio Álvares Coruja, e em 1833 foi a primeira mulher proprietária de jornal, o semanário Belona, no qual atirava “sátiras incisivas e eruditas” para ridicularizar os “pretensiosos políticos” .

Em 1838, os farroupilhas decretaram a universalização do ensino na República Rio-Grandense, medida louvável que a penúria da guerra não permitiu concretizar. Em 1842, Caxias convocou um exército de 12 mil homens e, para prover esses homens de uniformes, apelou para as mulheres da província que soubessem costurar – tarefa gigante, costura a mão, pois a máquina Singer ainda estava por ser inventada.

A guerra deu ensejo à intelectualidade de um punhado de mulheres, que responderam cada uma à sua maneira, criticando os líderes. A cega Delfina Benigna da Cunha fulminou, em glosa, o chefe farroupilha:

“Maldições te sejam dadas
Bento infeliz desvairado
No Brasil e em toda a parte
Seja teu nome odiado”.

Nísia Floresta, nordestina vinda ao Sul em 1833, cantou a beleza e a fartura das chácaras-cinturão verde de Porto Alegre: frutos europeus, vinhas, pêssegos aveludados, saborosos damascos, rubra maçã, roxa cereja e linda amora – fartura que, até 1835, garantiu “tudo quanto o homem pode desejar sobre a terra, paz, abundância, simpleza e a doce influência de um clima sadio”. Para combater a submissão feminina ao mantenedor, traduziu ousada obra feminista, Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. Nela sobressaem duas reivindicações basilares para a História de Gênero: o direito ao estudo e a um trabalho remunerado, que capacitem a mulher a gerir sua vida, pois ela é potencialmente capaz de advogar, de ministrar justiça, de exercer ensino universitário. A imprensa silenciou, como forma de minimizar os efeitos da ousadia.

Ana de Barandas, porto-alegrense solidária na busca por mais direitos, questiona os homens conservadores: “Tendo nós os mesmos sentidos e igualmente uma alma espiritual, por que não fazer uso desse admirável presente recebido do Criador?”. Seu inconformismo e suas denúncias tiveram eco no esforço pela formação de um pioneiro Partido Político Feminino, movimento liderado por mulheres da elite, como Maria Josefa Fontoura Palmeiro, com trânsito em ambas as facções políticas em luta. Por fazer propaganda pela causa farroupilha, foi presa, interrogada e expulsa de Porto Alegre. Essas mulheres endossavam o partido dos maridos, embora Ana de Barandas, em seu livro O Ramalhete (1845), argumente que a mulher deva ter vontade própria para abraçar a causa que ache mais vantajosa.

Ana é vibrante ao denunciar saques e mortes. O sítio natal, “outrora morada do prazer”, converteu-se “em perfeito esqueleto”, destruídos “os bosques, pomar e habitações e exilados seus habitantes”. Por tanto sofrimento, ela acusa as lideranças. Os políticos, afirma, “douram a pílula e fazem-na ao paladar dos gulosos que, sentindo o doce, são capazes de engolir o maior veneno (...) Os maliciosos, servem-se do lindo manto do patriotismo para cobrirem seus malignos projetos”. O sofrimento de Ana espelha o do universo feminino, e ela o resume numa frase tristemente atual, embora decorridos 170 anos:

“O político tem a alma danada. Em vez da verdade, diz lindas coisas para embalar o povo incauto”.
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* HILDA HÜBNER FLORES | HistoriadoraFonte: ZH on line, 21/09/2013

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