Paulo Ghiraldelli*
Marx
e Nietzsche deram muito ao século XX e têm ainda uma boa mensagem para o
século XXI. É que há neles algo que transcende o tempo e que talvez
nunca deixe de valer. Marx capta a sensação de que a sociedade é alguma
coisa que deu errado. Nietzsche capta a sensação de que errado foi a
produção do homem. Ora, há dias que levantamos de manhã com essa
sensação e há noites que dormimos com ela. Haveria como não ser assim?
Temos a capacidade de entrar em um tempo em que nunca mais teríamos, em
nenhum dia ou noite, essa sensação?
Não temos que saltar para fora do homem,
como Nietzsche disse que Zarathustra anunciaria, ou saltar para fora da
sociedade, como Marx disse que a Toupeira anunciaria. Não há razão para
dar tanta trela para Zarathustra ou para a Toupeira. Talvez esses dois
personagens – um profeta de uma religião perdida e um animal cego –
nunca tenham sido escolhidos senão como claras ficções, exatamente para
que os leitores não deixassem de notá-los esquisitos. O leitor esperado
seria aquele que, vendo-os do modo que são, pudessem se interrogar sobre
a função deles na narrativa. Personagens fictícios em tramas históricas
são enfiados, não raro, para promover uma espécie de metanarrativa no
contexto da própria narrativa, uma forma de autoironia.
Zarathustra pode querer anunciar o
Übermench. Mas para que vamos apostar no Übermench se o próprio
Zarathustra é alguém de um passado persa, ou seja, algo desde sempre
envolto no nosso folclore popular? A Toupeira anunciaria o comunismo.
Ora, mas por que teríamos de ouvir um bicho? Um bicho cego!
Como que não percebemos, em mais de um
século, a função praticamente cômica dessas figuras escolhidas pelos
dois mestres do ensaio filosófico e sociológico?
Nesse século XXI a leitura de Marx e
Nietzsche pode começar a ser uma boa leitura se pegarmos os seus
escritos como quem lê livro na praia ou em uma casa nas montanhas, em
férias. Não tivemos a oportunidade de fazer isso no século XX. Não
tiramos férias naquele século. Foi um século em que o próprio paradigma
sob o qual Marx e Nietzsche escreveram não permitia muitas férias. Nossa
referência e vida estavam na “sociedade do trabalho”. Ela imperou de
tal maneira que nem deu para ir à praia. Os que foram, aliás, devem ter
ido a trabalho, pois poluíram tudo onde pisaram e nadaram. Mas no século
XXI, nas primeiras férias que tivermos, podemos fazer diferente.
Podemos realmente passar as férias como férias, e lermos de modo a
curtir o entretenimento. Livros de filosofia não são para serem levados a
sério. Ao menos não com a seriedade vinda do modo de vida do século XX.
Richard Rorty foi o filósofo que
procurou de toda maneira dizer isso para nós todos: não se levem tão a
sério a ponto de acreditar que Nietzsche os levaria a sério.
Peter Slotedijk é o filósofo que, na
atualidade, por outras vias e estilo, também tem dito algo semelhante.
Não se levem tão a sério a ponto de acreditar que Marx os queria como
sisudos.
São filósofos irônicos, ambos. Rorty e
Sloterdijk. Ora, Marx e Nietzsche também não o seriam? Afinal, que
fundamentos forneceram Marx e Nietzsche? Fundamentos metafísicos? De
modo algum. A metafísica aprendida por Marx foi a de Hegel, que ele
tratou de dizer que estava de ponta cabeça. A metafísica lida por
Nietzsche foi a de Schopenhauer, que ele usou exatamente para pensar
contra o próprio, buscando escapar do pessimismo.
É difícil hoje, após Rorty e Sloterdijk,
levarmos a sério, a não ser Platão, e isso porque ele é o da cadeira
número 1, qualquer filósofo que queira elaborar um projeto grave,
sisudo, capaz de dar fundamentos para teorias científicas ou de outro
caráter.
Filósofos ironistas contam as coisas
como Zarathustra ou a Toupeira, mas sem a solenidade tola que, por obra
do “paradigma do mundo do trabalho”, atribuímos a tais personagens.
Aliás, olhando hoje para uma a Toupeira e para o Zarathustra, como não
perceber que tais personagens poderiam ter vivido em Patópolis?
Zarathustra e a Toupeira falam de modo
solene. Um mago persa e um animal cego falando solenemente sobre futuros
fantásticos! Por si só isso não é para rir? É como se tivéssemos de
assistir um hipopótamo dançando tango. Ora, por obra de sermos crianças
metidas no trabalho muito cedo, não tivemos imaginação para ver que
aquilo era uma grande narrativa de Disney. Não! Tomamos aquilo quase
como quem faz o curso de física e leva Newton a sério.
Marx e Nietzsche quiseram nos fazer rir
em um século em que tudo parecia ser só trabalho, trabalho e trabalho.
Mas por tudo ser trabalho, trabalho e trabalho, não pudemos rir. Afinal
de contas, se um sacerdote persa do passado nos conta algo como o “além
do homem”, isso em si já não é uma pândega? Ora, se alguém vai anunciar
uma sociedade comunista, isso é engraçado por si só, imagine então se
esse alguém é uma Toupeira! Meu Deus, como que pudemos ler isso para
além de histórias de entretenimento nas férias?
Claro que voltar de férias tendo lido
coisas interessantes mudam nossas vidas às vezes. Mas, se saímos de
férias e lemos lá na praia tudo que queríamos como se tivéssemos levado
trabalho para fazer em casa, seriamente, eis que vamos voltar para o
trabalho mais tensos e carregados, mais irritados do que quando saímos. E
então, no trabalho, vamos estar nervosos e cometeremos erros e mais
erros por conta da cobrança de rigor quando não é o rigor que pode nos
dar frutos, mas a inteligência.
Esperamos mais de um século para termos
filósofos ironistas que pudessem nos dizer que Marx e Nietzsche eram
ironistas. Ah, antes tarde que nunca. Vamos nos divertir agora.
Sei que é duro convencer os filósofos
atuais de que desde Platão a filosofia é engraçada. Os filósofos têm
senso de humor, mas raramente são inteligentes para terem senso de humor
de modo quanto à filosofia. Mas isso pode mudar. Pode ser que, longe de
uma sociedade exclusivamente envolvida com o trabalho, possamos curtir
nossa infância e sermos mais leves para rir.
Essa esperança minha pode ser ela
própria uma tolice. Afinal, ontem na quadra de esportes do meu prédio
notei que as crianças brincavam de skate, de futebol e de basquete sem
rir. Nem as meninas pré-adolescentes riam.
-------------------------------
* Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/como-ler-marx-e-nietzsche-tendo-uma-segunda-chance/
Nenhum comentário:
Postar um comentário