Com 118 artigos, o Estatuto do Idoso sempre foi considerado peça
sócio-jurídica indispensável na defesa dos direitos da população idosa. A
dinâmica demográfica brasileira foi apenas uma das justificativas para a
lei 10.741/2003. O país vive um envelhecimento populacional em ritmo
acelerado. Em 2001, as pessoas com 60 anos ou mais representavam 9% do
total da população. Em 2011, o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) constatou um salto para 12,1%, que, em números
absolutos, significa aumento de 15,5 milhões para 23,5 milhões de idosos
em uma década. As projeções apontam para uma proporção, em 2030,
superior a 14% - parâmetro usado pela ONU para definir uma sociedade
como envelhecida.
No Disque 100, criado para receber denúncias, os casos de abandono de idosos respondem por 70% dos telefonemas
A necessidade de legislação específica surgiu na onda de uma
tendência global de usar a idade cronológica para a concepção de
políticas públicas (assim como de direitos e deveres). E ficou
estabelecido que, sim, a idade importa - a despeito de comportamentos
contemporâneos suscitados por um envelhecimento mais saudável. Outra
motivação para a lei, e talvez a principal, foi a incapacidade da
sociedade brasileira de cumprir a contento a Constituição de 1988, o que
amplia o déficit no atendimento aos direitos da pessoa idosa,
distanciando o país da adequação à orientação do Plano de Ação para o
Envelhecimento, instituído pela ONU em 2002, do qual o Brasil é
signatário. O Estatuto foi um desdobramento da orientação internacional,
provocou a instituição da lei do Plano Nacional do Idoso (8.842/1994), e
o estabelecimento de diretrizes para a sociedade. No entanto, até
agora, os artigos mais lembrados do Estatuto são os contestados. Pouco
se fala de artigos amplamente ignorados. "Há um descaso absoluto, mas o
maior problema, o porquê de não funcionar, é que tudo no texto é
genérico, não tem o como. É uma legislação feita só para apagar incêndio
e ainda reforça uma imagem negativa da pessoa idosa", critica a
geriatra Karla Cristina Giacomin, presidente do Conselho Nacional dos
Direitos do Idoso (CNDI) entre 2010 e 2012.
Entre os inúmeros artigos desconhecidos, e desrespeitados, do
Estatuto está o de número 15, que prevê a capacitação e a reciclagem de
geriatras. Se levado a sério, provavelmente seria um ponto a mais na
polêmica do programa Mais Médicos, se atendida a exigência de um
especialista em todos os postos de unidade básica de saúde. No parágrafo
3º, a lei proíbe aos planos de saúde "a discriminação do idoso pela
cobrança de valores diferenciados em razão da idade". O artigo 24 obriga
"os meios de comunicação a criar e manter espaços ou horários especiais
voltados aos idosos, com a finalidade informativa, educacional,
artística e cultural sobre o processo de envelhecimento". O artigo 22
inclui o tema nos currículos escolares "em todos os níveis" e o 25 prevê
a criação de material didático especial para o idoso que queira
estudar. Outros artigos foram aplicados e transformados até em leis
específicas, como a prioridade na restituição do imposto de renda, e
alguns são observados de forma desigual, conforme o lugar do país.
De acordo com Karla Cristina, um dos maiores problemas para a
materialização do que manda o Estatuto é o fato de o poder público
dificultar a implementação dos instrumentos de controle da execução da
política orçamentária, papel designado pela lei 8.842/1994 (Política
Nacional do Idoso) aos Conselhos (federal, estaduais e municipais) dos
Direitos do Idoso. Até agora, segundo ela, existem conselhos em menos de
20% dos municípios brasileiros. O número do governo é de 51,5%,
percentual alcançado neste ano.
A quantidade talvez seja menos importante. O problema é a qualidade
da atuação desses conselhos. "Eles atuam em condição quase pro-forma:
não possuem recursos próprios, para administração autônoma, não
deliberam sobre orçamento nem são consultados (como prevê o artigo 8º da
lei que instituiu a Política Nacional do Idoso) sobre decisões no
setor", diz Karla Cristina. Ela também cita a constante troca de
jurisdição na burocracia federal. Em dez anos, a política do idoso
passou por cinco ministérios. Ou seja, um novo ministério a cada dois
anos. De 1994 a 2003, a coordenação dessa política era do Ministério da
Previdência e Assistência Social; de 2003 a 2008, esteve com o da
Assistência Social; de 2008 a 2009, com o do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome; em 2009, passou para o Ministério da Justiça; em 2010,
foi para a Secretaria de Direitos Humanos (que tem status de
ministério). "Cada mudança compromete a continuidade e o CNDI é
gravemente atingido." Detalhe: no decreto de criação da Secretaria de
Direitos Humanos (7.256/2010), a política do idoso não aparece entre as
atribuições da pasta. O conselho não possui espaço físico ou corpo
técnico, conta apenas com um auxiliar administrativo (cedido pela
Secretaria) e a coordenação é feita, na prática, por um funcionário em
cargo de confiança. "Como garantir que a orientação da presidência do
conselho prevalecerá se o cargo é comissionado e, portanto, de confiança
do gestor da pasta?"
Karla Cristina também critica a influência política nos conselhos,
nos quais os "representantes" da sociedade civil são indicados por
prefeitos, governadores ou secretários. Muitos gestores públicos ocupam a
presidência indefinidamente, o que acontece também com os mandatos de
conselheiros. "Se as decisões dos conselhos são ignoradas e não resultam
em mudanças para os idosos, isso desmobiliza a sociedade civil", afirma
Karla Cristina, que representa no CNDI a Sociedade Brasileira de
Geriatria e Gerontologia.
Outro testemunho, na mesma linha crítica, é do advogado e promotor
Alexandre de Oliveira Alcântara, representante da Associação Nacional
dos Membros do Ministério Público no CNDI: "Pude constatar uma espécie
de receio ou desconfiança dos poderes executivos em relação à
contribuição dos conselhos. Há conselhos sem sede, sem telefone, sem
endereço eletrônico institucional".
No decreto que criou a Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência, a política do idoso não aparece entre
as
atribuições da pasta
A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário
(PT-RS), aceita parte das críticas e reconhece dificuldades em atender a
todas as demandas da Política do Idoso. "O balanço de dez anos é muito
positivo em termos de afirmação da lei, de reconhecimento da importância
fundamental do idoso e o Estatuto é o instrumento mais importante para
as políticas públicas diante do envelhecimento da população brasileira",
afirma. Seu maior desafio, ela mesma aponta, é assegurar qualidade de
atendimento ao idoso nos serviços públicos de saúde e assistência social
e a superação do abandono e da violência. "Precisamos ter a mesma
excelência da previdência social pública e, principalmente, da
assistência social, que garante um benefício específico ao idoso sem
renda. Isso é uma distinção singular do Brasil. A questão do idoso
brasileiro não é renda, tem um lastro de seguridade social. O problema é
a qualidade dos serviços."
Diante das críticas da ex-presidente do CNDI, a ministra disse ao Valor:
"Não conseguimos superar os limites orçamentários. Nosso desafio é
grande nesse sentido, ainda que o ministério tenha concentrado esforços
no seus desempenho, mas reconheço que a estrutura do CNDI é pequena. É
preciso melhorar, para garantir qualidade técnica".
Maria do Rosário lembra que a decisão orçamentária "é mais ampla,
depende de outros ministérios", da área econômica sobretudo, e a pasta
foi pressionada para reduzir gastos, ainda que numa situação de demanda
crescente de serviços. A ministra cita os dados do serviço "Disque 100",
que atende às denúncias ou reivindicações da população idosa. Em 2011,
primeiro ano de funcionamento, foram 7.160 atendimentos. Em 2012, o
número triplicou, para 21.404. As denúncias de abandono de idosos
respondem por 70% dos telefonemas e os abusos financeiros, por 40%.
Resta o problema, não equacionado, de dar consequência aos telefonemas.
Maria do Rosário afirma que a secretaria está empenhada em formar
promotores, defensores e delegados especializados em questões de
interesse do idoso, para encaminhar as denúncias e aparelhar as
delegacias do idoso no país.
A contenção de gastos vem adiando a criação da subsecretaria dedicada
ao idoso. No organograma da secretaria existem três subsecretarias:
Pessoa com Deficiência, Criança e Defesa e Promoção dos Direitos
Humanos. A Política Nacional do Idoso está nesta última. No entanto,
como a ministra também reconhece, a inexistência de uma subsecretaria
específica dificulta a articulação supraministerial dos temas
relacionados ao idoso, que são, em sua maioria, interdisciplinares. Em
quase todos os países com população envelhecida, principalmente os
europeus, há um ministério para o tema. Nesses países, o maior dos
desafios é a questão da formação de cuidadores profissionais. O assunto
já fez surgir até uma nova área de estudo na França e nos Estados
Unidos: a economia do cuidado ("economy of care"), expressão criada pela
socióloga Viviana Zelizer, da Princeton University. Nos Estados Unidos,
segundo o instituto de pesquisa IBIS World, esse setor movimenta US$
120,6 bilhões, e cresce 3,6% ao ano, muito em decorrência dos 5 milhões
de americanos com Alzheimer, o mesmo número que, calcula-se, deverá ser
encontrado no Brasil em 2050.
Até 2008, o assunto dos cuidadores estava com o Ministério da Saúde. A
pasta lançou o Programa Nacional de Formação de Cuidadores de Idosos
por meio das 36 escolas técnicas do Sistema Único de Saúde (SUS). A meta
anunciada pelo governo era ambiciosa: certificar 65 mil cuidadores até
2011. Em outubro daquele ano, o número de certificados era inferior a
1.500. O governo federal havia transferido o programa para o âmbito
municipal. No entanto, os prefeitos protelam a criação de cursos em suas
cidades, pois temem que o segundo passo deva ser a abertura de
concursos para contratar esses profissionais qualificados, o que
sobrecarregaria a folha de pagamento do funcionalismo.
Na prática, a formação de cuidadores, atualmente, está entregue às
leis de mercado. O projeto de lei sobre o reconhecimento da profissão
está parado na Câmara dos Deputados. "A formação de cuidadores deve ser
de atribuição do Ministério da Educação", diz Maria do Rosário. "Aliás,
consideramos que já é, pois [aquela pasta] tem a rede, tanto em nível
médio como superior. É o MEC que deve regulamentar os cursos e formar os
profissionais." O MEC informa que há cursos federais em todo o país,
com cerca de 10 mil alunos matriculados. O problema é que sobram vagas e
o número de formados está longe de atender à demanda.
"Há um descaso absoluto, mas o maior problema,
o porquê de não funcionar, é que tudo no texto é genérico,
não tem o como"
Uma das formas de mitigar o descumprimento do Estatuto do Idoso é a
ampliação dos recursos financeiros para aplicação em políticas públicas.
Esses recursos, segundo prevê o PNI há quase 20 anos, deveriam sair do
Fundo Nacional do Idoso, em caráter complementar ao orçamento público.
Em 2012, segundo a ONG Contas Abertas, a União desembolsou pouco mais de
R$ 2 milhões (cerca de 8%) do total de R$ 24,4 milhões de recursos
disponíveis e autorizados para ações relativas aos idosos. Depois de
quase duas décadas para sair do papel, no entanto, o fundo ainda tem
poucos recursos. Suas fontes de receita são o orçamento da União,
contribuições de instituições internacionais, doações de pessoas físicas
e jurídicas, com desconto de imposto de renda, e aplicações de multas
por desrespeito ao Estatuto do Idoso. Em 2012, porém, primeiro ano de
captação, depois de longa tramitação burocrática, o fundo recebeu parcos
R$ 188 mil reais de doações. Este ano, entraram R$ 2,21 milhões de
doações e mais R$ 1,4 milhão do Tesouro Nacional. Boa parte desse
dinheiro servirá para custear o 9º Encontro Nacional dos Direitos da
Pessoa Idosa, em dezembro. A questão dos recursos passa ainda pela
implementação dos fundos estaduais e municipais. O grande problema é que
a eficácia dos gastos é proporcional à independência política dos
conselhos. É comum o CNDI receber denúncias sobre prefeitos que querem
tomar a gestão dos fundos para si, sem interveniência dos conselhos
municipais.
A demora em efetivar a mais importante lei de proteção da pessoa
idosa esbarra, dez anos depois, em uma polêmica sobre o próprio conceito
do sujeito-alvo do legislador. Quando o então deputado Paulo Paim
(PT-RS), hoje senador, apresentou em 1997 o projeto de lei que deu
origem ao Estatuto, o idoso tinha um perfil bastante diferente. A lei
considera idosa a pessoa com mais de 60 anos - de acordo com parâmetro
da ONU para os países pobres (em outros países, o marco é de 65 anos).
Ocorre que, no entendimento de estudiosos do envelhecimento e de alguns
legisladores brasileiros, o Estatuto deveria alterar a idade legal para
65 anos. No Congresso Nacional, há projetos de lei em defesa da mudança,
amplamente combatida pelo CNDI e outras entidades e instituições
ligadas aos idosos.
"Não se justifica a existência de preconceitos,
nem de privilégios para os idosos, pois eles
não vivem isolados na sociedade"
Com um texto dedicado à efeméride, "Estatuto do Idoso: Avanço e
Contradições", a economista Ana Amélia Camarano, do Ipea, uma das
maiores autoridades na pesquisa sobre o tema, surpreendeu o meio
acadêmico e despertou amplo debate ao questionar se a definição de
população idosa estaria ultrapassada. Ela destaca a heterogeneidade da
população idosa (maior do que em todas as outras faixas etárias) e os
critérios biológicos inseridos no conceito de idoso. "Às novas demandas
trazidas pelo processo de envelhecimento somam-se as necessidades
sociais básicas não resolvidas, como educação, saúde e segurança para o
conjunto da população. As políticas para a população idosa devem
promover a solidariedade entre as gerações. Isso significa equilibrar as
prioridades das ações para os idosos com as de outros grupos
populacionais", escreveu.
Embora concorde com a necessidade de leis e políticas específicas
para cada idade, Ana Amélia diz que esse "reconhecimento não justifica a
existência de preconceitos, nem de privilégios para os idosos, pois
eles não vivem isolados na sociedade". A economista aponta contradições
no Estatuto e em outras leis brasileiras em relação à idade. Ora são 60
anos, ora 65. A idade mínima para aposentadoria é de 65 anos para homens
e 60 para mulheres, o benefício assistencial por idade requer 65 anos, o
transporte gratuito idem (quando ela escreveu seu artigo, antes da lei,
recentemente aprovada, que reduziu o piso para 60 anos). "Não existe um
divisor de águas claro entre as várias fases da vida."
Esse debate, que aqui está apenas no começo, ocorre em todos os
países em processo de envelhecimento. O Brasil vem discutindo o tema do
envelhecimento com lentes fiscalistas, centradas obsessivamente na
questão previdenciária, mas, aos poucos, outras questões são suscitadas
pela dinâmica demográfica.
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