Entrevista especial com Thomas Guarino
Depois de Nietzsche e Heidegger,
não podemos simplesmente “retornar” à fé religiosa, observa Thomas
Guarino refletindo sobre a obra do filósofo turinense. É preciso surgir
algo novo considerando a ênfase filosófica contemporânea na
historicidade e provisoriedade
“As pretensões de verdade absoluta devem ser enfraquecidas, de forma que se possa construir um etos contemporâneo
baseado na caridade e na tolerância da pluralidade. Na verdade, Vattimo
nos diz que devemos nos libertar de nossa última idolatria, a ‘adoração
da verdade como nosso Deus’”. A afirmação é do teólogo norte-americano Thomas Guarino, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
Por outro lado, o pensador turinense sustenta que “não podemos
simplesmente ‘retornar’ à fé religiosa, como se nossos olhos não
tivessem sido abertos por Heidegger e Nietzsche”.
Não há na obra vattimiana um interesse em “recuperar a fé religiosa
ortodoxa. Na verdade, ele acredita que, se a fé religiosa insistir na
ortodoxia tradicional, arriscar-se-á a afundar numa senescência
cultural. Ele acha, pelo contrário, que algo novo deve surgir dada a
ênfase filosófica contemporânea na historicidade e na provisoriedade”.
E completa: “Penso que a ênfase de Vattimo no pluralismo e na tolerância deveria ser aplaudida. Nesse sentido, pode-se de fato acolher a secularização.
Entretanto, o perigo de sua posição é que ela, em última análise,
degenera em niilismo, ou seja, a afirmação de que qualquer ênfase na
verdade fixa, estável e objetiva é opressiva e restritiva, e, portanto,
inimiga da liberdade humana. Para Vattimo, unicamente o niilismo — entendido como o fim de todas as estruturas fixas e verdades objetivas — é emancipação”.
Thomas Guarino é graduado em Teologia pela Seton Hall University, em New Jersey,
Estados Unidos, mestre em Teologia Sistemática pela Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma e doutor em Teologia Sistemática pela Catholic University of America. É professor de Teologia na Seton Hall University, em South Orange,
New Jersey, nos Estados Unidos. Suas pesquisas se concentram na
fronteira entre Teologia e Filosofia e é autor de, entre outros, Foundations of Systematic Theology (London: T & T Clark International, 2005) e Vincent of Lerins and the Development of Christian Doctrine (Grand Rapids: Baker Academic, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que aspectos a obra de Gianni Vattimo estabelece nexos entre teologia e filosofia?
Thomas Guarino - Gianni Vattimo é
um pensador criativo que, ao longo dos anos, tem dado maior atenção a
questões teológicas. Esta atenção tem se dado de diferentes formas: 1) ele aplicou sua ideia característica, a do “pensamento fraco” (pensiero debole),
a todas as ideologias, questionando, desse modo, o tipo de racionalismo
agressivo que não encontra espaço para a religião na vida pública (isto
é, o chamado “novo ateísmo” de Dawkins , Hitchens e outros); 2) reinterpretou a noção cristã clássica de kenosis (o esvaziamento de Deus na encarnação) para desenvolver a ideia de uma renúncia ao poder e à autoridade por parte de Deus; 3) entendeu o conceito tradicional de caritas
(amor ou caridade) com o sentido primordial de tolerância para com toda
posição intelectual e moral (excluindo as posições violentas); 4) usou a compreensão do “sagrado natural” (desenvolvida por René Girard ) para criticar a noção de direito natural tradicionalmente empregada no ensino moral católico; e 5) sustentou que a “secularização” é a consequência natural da caridade cristã.
Desse modo, Vattimo estabeleceu criativamente
relações entre a filosofia contemporânea e a teologia. A meu ver,
deve-se admirar este autor por buscar um caminho entre as opções do
iluminismo típico da Aufklärung, por um lado, e do
fundamentalismo religioso, por outro. Não obstante, permanecem questões
significativas e ainda não resolvidas a respeito da adequação da
filosofia de Vattimo para o cristianismo contemporâneo, questões que levanto em Vattimo and Theology (London: T & T Clark International, 2009).
IHU On-Line - Em que medida as ideias de Vattimo apresentam novos desafios para o pensamento cristão?
Thomas Guarino - A filosofia de Vattimo
visa questionar o cristianismo e, na verdade, toda e qualquer forma de
pensamento que sustente que certos princípios são verdadeiros. O que
quero dizer com isso? Como já mencionei, uma das ideias características
da filosofia de Vattimo é a do pensamento fraco ou pensiero debole. Por
meio desse termo ele quer dizer que a razão deve ser reconstruída de uma
forma pós-moderna, ou seja, precisamos evitar afirmações agressivas
sobre o “certamente verdadeiro”, o “realmente real” e a “objetividade
absoluta”.
Vattimo sustenta que “prova” e “garantia” não deixam
de ser conceitos problemáticos e não estão prontamente disponíveis para
resolver toda e qualquer questão. Pelo contrário, lembra-nos de que o
mundo não é simplesmente “dado” a nós como um mundo puro, como uma
realidade não interpretada. Em consequência, ele desafia a todos —
teólogos cristãos, cientistas ou os novos ateus — a examinar suas
pressuposições fundamentais: será que todo o mundo está tão certo assim
da verdade de suas respectivas premissas? Ou será que a verdade somente é
mediada através de uma variedade de pressuposições socioculturais e
históricas? Em certo sentido, Vattimo busca nos alertar
a respeito de concepções sustentadas dogmaticamente que podem beirar
uma espécie de totalitarismo arrogante, de ausência de caridade para com
outras pessoas.
IHU On-Line - Por que a análise de Vattimo sobre o niilismo nietzschiano possibilita um diálogo com a teologia contemporânea?
Thomas Guarino - Via de regra, Nietzsche
não tem sido considerado um parceiro de diálogo valioso para a
teologia, ou para o pensamento religioso em geral. Porém, creio que a
devoção de Vattimo ao niilismo nietzschiano tem uma contribuição a dar à teologia cristã.
Em primeiro lugar, deveríamos lembrar que a teologia
tem um longo histórico de diálogo com os mais diversos pontos de vista,
mesmo com aqueles que se opõem especificamente à fé cristã. Por
exemplo, Orígenes , um cristão de Alexandria que viveu no século III, disse o seguinte sobre o escritor antigo Celso,
que era um inimigo resoluto da fé cristã: “Somos cuidadosos para não
levantarmos objeções a quaisquer bons ensinamentos, mesmo que seus
autores estejam situados fora da fé, nem para procurarmos ocasião para
uma disputa com eles, tampouco para encontrarmos uma forma de derrubar
afirmações que sejam sólidas” [Contra Celso, VII, 46]. Orígenes
(e teólogos posteriores a ele) justifica esta assimilação cuidadosa de
todos os pensadores ao se basear (simbolicamente) no relato bíblico que
se encontra no livro do Êxodo: os filhos de Israel tomaram “despojos dos
egípcios” (12,35-36). E usaram esses “despojos” para finalidades
relacionadas ao serviço de Deus.
Em segundo lugar, a obra de Nietzsche (assim como a de Vattimo) nos lembra da complexidade da verdade. Como mencionei acima, Vattimo
contesta pretensões fortes e agressivas em relação à objetividade,
perguntando se a “verdade” e as garantias ou provas que a apoiam são
conceitos não problemáticos. A internet oferece um exemplo atual daquilo
a que tanto Nietzsche quanto Vattimo
se referem. Podemos fazer uma série de perguntas à internet: O que é a
vida boa? Qual é a natureza da humanidade? Existe um Deus? Sabemos
alguma coisa sobre ele? A essas perguntas receberemos um número infinito
de respostas, uma variedade extraordinária de interpretações. É
precisamente isso que Nietzsche queria dizer quando disse: Não há fatos,
somente interpretações!
O aspecto que quero destacar é o seguinte: o niilismo nietzschiano
desafia a teologia — e, de fato, todas as formas de pensamento — a ser
cuidadosa quanto à complexidade da verdade. A teologia não concorda, e
não pode concordar, com a opinião de Nietzsche de que a
verdade é que não há nenhuma verdade. Mas a teologia certamente pode
ter respeito pela complexidade da verdade e pela importância de se
evitar uma espécie de literalismo ou fundamentalismo.
IHU On-Line - Por outro lado, como as ideias do pensador
italiano contribuem para pensarmos em uma cultura da tolerância no
século XXI?
Thomas Guarino - Um dos pontos fortes da filosofia de Vattimo
é seu desejo de desenvolver uma cultura de tolerância entre todos os
povos. É claro que isso está diretamente relacionado com sua noção de pensiero debole
ou pensamento fraco. As pretensões de verdade absoluta devem ser
enfraquecidas, de forma que se possa construir um etos contemporâneo
baseado na caridade e na tolerância da pluralidade. Na verdade, Vattimo
nos diz que devemos nos libertar de nossa última idolatria, a “adoração
da verdade como nosso Deus”. É por isso que ele gostaria de reverter o
axioma tradicional: Amicus Plato sed magis amica veritas (Platão é
amigo, mas a verdade é mais amiga). Na medida em que a verdade é
efêmera e epifânica, dissolvida em interpretações policêntricas, é
compreensível que Vattimo preferisse dizer: Amica veritas sed magis amicus Plato (A verdade é amiga, mas Platão é mais amigo).
Como um exemplo da ênfase atual na caridade (em lugar da verdade), Vattimo cita as visitas dos papas a diferentes cidades ao redor do mundo. Por exemplo, os meios de comunicação relataram que o Papa Francisco concluiu sua recente visita ao Rio de Janeiro com uma missa onde estiveram presentes um número enorme de fiéis, talvez 3 milhões de pessoas. Vattimo diz que não deveríamos nos enganar com essas grandes multidões. Ninguém acredita que todos os integrantes da multidão de pessoas de boa vontade concordem com o pontífice a respeito de questões morais e doutrinais. As multidões estão lá para, primordialmente, aplaudir a conclamação do Papa à amizade universal, a um entendimento comum entre os povos e à caridade para com todos os homens e mulheres. De novo, o mais importante é a caritas, e não a veritas.
Como um exemplo da ênfase atual na caridade (em lugar da verdade), Vattimo cita as visitas dos papas a diferentes cidades ao redor do mundo. Por exemplo, os meios de comunicação relataram que o Papa Francisco concluiu sua recente visita ao Rio de Janeiro com uma missa onde estiveram presentes um número enorme de fiéis, talvez 3 milhões de pessoas. Vattimo diz que não deveríamos nos enganar com essas grandes multidões. Ninguém acredita que todos os integrantes da multidão de pessoas de boa vontade concordem com o pontífice a respeito de questões morais e doutrinais. As multidões estão lá para, primordialmente, aplaudir a conclamação do Papa à amizade universal, a um entendimento comum entre os povos e à caridade para com todos os homens e mulheres. De novo, o mais importante é a caritas, e não a veritas.
Imagem e semelhança
Em termos de suas contribuições, Vattimo destaca com
razão que o homem e a mulher contemporâneos estão cansados dos
paroxismos de violência decorrentes de identidades étnicas e religiosas
agressivas. A humanidade busca criar sociedades onde a paixão pela
verdade não produza intolerância, e sim onde reine um profundo respeito
pela dignidade e pela liberdade humana. É claro que a questão duradoura é
esta: como garantimos o desejo contemporâneo de dignidade e liberdade
humana? É pelo pensiero debole? Ou seria aderindo, de maneira
cada vez mais vigorosa, à crença de que todas as pessoas são criadas,
como ensina o livro de Gênesis, à imagem e semelhança de Deus?
IHU On-Line - Qual é a contribuição da análise de Vattimo
para compreendermos o niilismo e os desafios e oportunidades que são
colocados à religião na pós-modernidade?
Thomas Guarino - Inicialmente, devo dizer que Vattimo
não se sente inteiramente à vontade com o termo “pós-moderno”, pois
este pode dar a impressão de que ele — e a filosofia contemporânea de
modo geral — não reconhece as conquistas da modernidade. Vattimo insiste que não podemos simplesmente superar (Überwindung) a época moderna que nos precedeu. Ele prefere o termo Verwindung, uma palavra que tem suas raízes no pensamento de Martin Heidegger
e indica uma cura que é, ao mesmo tempo, uma torção e uma alteração. O
aspecto central é o seguinte: não podemos simplesmente rejeitar qualquer
época que tenha nos precedido; precisamos “recebê-la” e repensá-la em
nossos próprios termos.
Lembrando-nos desse esclarecimento, podemos falar de Vattimo
como filósofo pós-moderno. E, de fato, a pós-modernidade oferece
oportunidades para o pensamento religioso. Como isso pode ser verdade?
Um dos pontos fracos da modernidade foi sua tendência ao racionalismo
agressivo, a tentativa do iluminismo de limitar a racionalidade aos
cânones do empirismo e do positivismo, reduzindo, assim, a verdade à
metodologia associada com a investigação científica. A religião foi
afastada da vida pública sob a alegação de que ela fomenta
necessariamente o dogmatismo e a intolerância.
Racionalidade iluminista
Entretanto, Vattimo e a pós-modernidade sustentam
que essa atitude imperiosa do pensamento moderno foi entrementes
desmascarada como sendo profundamente deficiente. A própria modernidade
tem, às vezes, fornecido um pensamento forte e intolerante, que
desvaloriza a verdade mediada pelas artes, pela tradição e cultura,
assim como pela religião. Essas deficiências da racionalidade iluminista
têm sido fortemente criticadas em nossa era contemporânea, abrindo, com
isso, a porta para se reconhecer o valor legítimo da teologia e da
crença religiosa. A religião, na medida em que é uma interpretação entre
outras do mundo, não tem menos valor do que a interpretação do mundo
feita pela ciência. As duas tentam compreender e dar sentido à vida.
IHU On-Line - A partir dessa análise, o que poderíamos compreender por fé pós-moderna?
Thomas Guarino - Ah, esta é a pergunta essencial: que tipo de fé religiosa é permitido na visão de Vattimo
a respeito da pós-modernidade? Se a modernidade racionalista não pode
mais ser autoconfiante em suas pretensões para com a verdade, então, diz
Vattimo, tampouco o pode a religião. Exatamente aqui é onde devemos lembrar a ênfase do pensador turinense no pensamento fraco.
Vattimo sustenta que não podemos simplesmente “retornar” à fé religiosa, como se nossos olhos não tivessem sido abertos por Heidegger e Nietzsche.
Esses dois filósofos nos mostraram que a “verdade” está profundamente
emaranhada dentro da história. Portanto, a verdade não pode ser
entendida como sólida e imutável, mas sim como epifânica —
intrinsecamente ligada à temporalidade. Em consequência, qualquer
redescoberta contemporânea da fé religiosa não pode acarretar a doutrina
e moralidade tradicional. Pelo contrário, as afirmações religiosas
dogmáticas, com sua insistência na “certeza” e “caráter definitivo”,
são, de modo preeminente, representativas do pensamento forte,
agressivo. Tais afirmações não conseguem compreender o caráter
provisório e contingente que envolve e satura todos os aspectos da vida
humana.
É óbvio, portanto, que Vattimo não está interessado
em recuperar a fé religiosa ortodoxa. Na verdade, ele acredita que, se a
fé religiosa insistir na ortodoxia tradicional, arriscar-se-á a afundar
numa senescência cultural. Ele acha, pelo contrário, que algo novo deve
surgir dada a ênfase filosófica contemporânea na historicidade e na
provisoriedade. Essa é uma razão por que Joaquim de Fiore, um pensador profético e esotérico do século XII, ocupa uma posição proeminente no pensamento religioso de Vattimo.
IHU On-Line - Qual é a pertinência do pensamento fraco ante essa fé pós-moderna?
IHU On-Line - Qual é a pertinência do pensamento fraco ante essa fé pós-moderna?
Thomas Guarino - Do ponto de vista de Vattimo,
a fé religiosa pós-moderna deve reconhecer que suas pretensões para com
a verdade são “fracas”, isto é, deveria propor a si mesma como
simplesmente uma interpretação do mundo entre outras, não como a
interpretação última ou “objetiva”.
De novo, precisamos nos lembrar de que a fé pós-moderna não é uma
recuperação da crença tradicional. Embora a pós-modernidade sancione o
discurso religioso, este mesmo discurso é, agora, profundamente
reinterpretado. Por exemplo, a palavra caritas, no discurso cristão tradicional, designa o amor sobrenatural derramado por Deus nos corações dos crentes. Entretanto, para Vattimo
a “caridade” é melhor compreendia como tolerância de um vasto
pluralismo, do “pensamento fraco” aplicado a todo e qualquer ponto de
vista. É a tolerância o que constitui a nova mensagem religiosa, e não
qualquer pretensão de se ter a verdade objetiva a respeito de Deus.
Outro exemplo: para os cristãos, kenosis se
refere à encarnação, em que o Filho de Deus eterno se torna homem em
prol da salvação humana. Para Vattimo, no entanto, o evento da kenosis
é simplesmente uma parábola que se refere à dissolução da
transcendência divina. O fim da autoridade divina (e das normas morais e
doutrinais divinamente sancionadas) está unido à renúncia a pretensões
de verdade e objetividade por parte da filosofia contemporânea.
Em última análise, os cristãos irão provavelmente rejeitar várias das
concepções de Vattimo, uma vez que ele parece reduzir o cristianismo a
uma mera fábula sobre a “fraqueza” de Deus, sem qualquer percepção dos
acontecimentos históricos concretos da história da salvação que se
desdobraram no antigo de Israel e em Jesus de Nazaré.
IHU On-Line - Quais são os perigos que você detecta em “Vattimo and theology” sobre o caminho que leva além do secularismo?
Thomas Guarino - Vattimo pensa que
as pessoas religiosas não deveriam se opor à secularização, mas
reconhecê-la como o triunfo da fé cristã. Por quê? De acordo com o
pensador de Turim, a secularização é o desdobramento,
na história, da noção cristã de caritas. Quer dizer, a caridade
(entendida aqui como tolerância) significa que há espaço para todos na
praça pública, não importando sua crença (ou a falta de crença). Assim, a
secularização é a consequência dinâmica da caridade ou do amor cristão
para com as outras pessoas, sendo que a sociedade agora se abre
virtualmente a todos os pontos de vista. Há uma renúncia à objetividade e
à certeza em favor de um vasto e abrangente pluralismo.
Penso que a ênfase de Vattimo no pluralismo e na
tolerância deveria ser aplaudida. Nesse sentido, pode-se de fato acolher
a secularização. Entretanto, o perigo de sua posição é que ela, em
última análise, degenera em niilismo, ou seja, a afirmação de que
qualquer ênfase na verdade fixa, estável e objetiva é opressiva e
restritiva, e, portanto, inimiga da liberdade humana. Para Vattimo, unicamente o niilismo —
entendido como o fim de todas as estruturas fixas e verdades objetivas —
é emancipação. Portanto, uma insistência em qualquer tipo de doutrina
religiosa ou verdade moral se torna o oponente irremediável e ameaçador
da liberdade humana prometeica. É por isso que Vattimo gosta de citar a afirmação de Nietzsche, em Vontade de potência (Rio de Janeiro: Contraponto, 2008), de que a humanidade está inteiramente desenraizada, “rolando do centro em direção a X”.
IHU On-Line - Em que sentido se pode falar num retorno da
religião na Europa e que tensionamentos surgem daí frente ao
fundamentalismo ateísta de Dawkins, Dennet, Hitchens e Onfray?
Thomas Guarino - Eu diria que a Europa, junto com o
resto do mundo, descobriu os limites do racionalismo científico. A
modernidade tem muitas realizações, porém a tentativa de impor o
positivismo em todos os quadrantes da experiência humana foi um fracasso
horroroso. Há uma profunda dimensão religiosa na vida humana que é
universal e inegável. O Papa Bento XVI , na conhecida alocução que proferiu em Regensburg,
em 2006, indicou com razão que a religião não pode proceder sem a
razão, mas a razão tampouco pode proceder sem considerar a fé. Na
ausência da conjunção da razão e da religião, as patologias da sociedade
se multiplicam.
A obra de Vattimo é útil porque oferece uma crítica
sólida da modernidade ingenuamente racionalista do iluminismo que, em
nome da “razão”, tirou a religião do espaço público, tentando
desesperadamente reduzir a mais abrangente e fundamental realidade a uma
questão privada e cognitivamente vazia. O pensamento do turinense
deveria ser valorizado por desmascarar a colonização da vida por parte
de uma razão secular imperiosa em nome de uma suposta racionalidade
esclarecida. Os autores que você menciona mostram claramente que alguns
ainda esperam por um recrudescimento da modernidade que exclua a
religião de todos os aspectos da vida pública.
Atração pela transcendência
O pensamento de Vattimo é altamente criativo e
merece um estudo continuado. Trata-se de um filósofo contemporâneo
significativo que está buscando legitimamente alguma via media (meio
termo) humanitária entre um objetivismo rígido e uma anarquia caótica.
Não obstante, eu advertiria quanto ao fato de ele se basear profundamente nas filosofias de Nietzsche e Heidegger. Para Vattimo, assim como para Heidegger,
a verdade é epifânica e evanescente, e não constante e durável. Estamos
“presos”, por assim dizer, no fluxo radical da historicidade. Por
conseguinte, a noção do cristianismo de Vattimo é
altamente não ortodoxa (como ele admite abertamente). Em última análise,
ele dilui e dissolve os acontecimentos reais da história da salvação em
meras parábolas sem solidez histórica. Isso não é outra coisa do que a
clássica suprassunção (Aufhebung) hegeliana da religião pela
filosofia, através da qual as dimensões concretas da fé religiosa são
anuladas e apagadas por uma consciência filosófica mais elevada. Nesse
sentido, Vattimo é muito mais “moderno” do que ele mesmo admite.
A despeito destas importantes restrições em relação à filosofia de Vattimo,
quiçá possamos concluir nossas reflexões observando que, em seu
pensamento, há uma profunda atração pela mensagem bíblica de um Deus
vulnerável e amoroso que se revela na história da encarnação — mesmo que
o turinense não se permita qualquer compromisso “forte” com a
existência real de um Criador. Em última análise, creio que percebemos
na obra de Vattimo algo do famoso comentário de Santo Agostinho nas Confissões, “fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te” (tu nos fizeste para ti e nosso coração permanecerá inquieto até que repouse em ti). Como reconheceu Agostinho, os seres humanos têm corações e mentes que permanecem incessantemente atraídos pela transcendência.
------------------Fonte: IHU on line, 29/09/2013
Foto: http://bit.ly/19MqXc8
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