sábado, 31 de julho de 2010

Procuram-se criativos

A criatividade se tornou a qualidade
mais desejada no mercado de trabalho.
O que fazer para aumentar a sua


Lembre-se da última boa ideia que lhe ocorreu. Ela pareceu vir do nada, durante o banho? Você deixou que ela escorresse pelo ralo e não pensou mais nela? Ou anotou, contou aos amigos e imaginou como aplicá-la em sua vida? Se você é alguém que tem ideias originais, do tipo que assustam um pouco sua família, e gosta de tentar colocá-las em prática, chegou sua hora: esses pensamentos borbulhando em sua cachola podem valer um emprego novo, um aumento ou mais negócios. Se você não se acha dos mais criativos, ânimo. Nas próximas páginas, vamos lhe dar boas razões para acender as lâmpadas aí dentro e mostrar como fazer isso. O motivo vem de pesquisas recentes feitas com os maiores contratadores do mundo.

Uma dessas pesquisas, feita pela prestadora de serviços tecnológicos IBM com os principais executivos de 1.500 empresas, de vários países, revelou que eles consideram a criatividade o fator crucial para o sucesso atualmente. Para que suas empresas consigam driblar as dificuldades e aproveitar as oportunidades, precisam de gente com ideias novas. Outra pesquisa, feita pela consultoria de administração de pessoal Korn/Ferry, com 365 dirigentes de grandes empresas só na América Latina, chegou à mesma conclusão: a habilidade de criar o novo e o diferente é a mais desejada por mais da metade dos dirigentes (56%). Ficou à frente de capacidades fundamentais, como saber tomar decisões complexas e conduzir equipes rumo a resultados. A essa altura, seria razoável perguntar por que as companhias simplesmente não treinam seus funcionários e fornecedores para ser mais criativos ou não saem por aí oferecendo aos criativos mais dinheiro. A resposta: elas tentam, mas chegaram à conclusão de que treinar ou encontrar gente criativa não é tão simples.

Os dirigentes entrevistados pela Korn/Ferry consideram a criatividade a habilidade mais rara de encontrar e também a mais dura de ensinar dentro dos ambientes de trabalho tradicionais (embora seja possível aumentar essa capacidade com o ambiente e os métodos certos, como veremos adiante). Além disso, há indícios de que as pessoas altamente criativas estejam ficando mais raras. Uma pesquisa nos Estados Unidos mostrou que, ao contrário dos quocientes populacionais de inteligência (Q.I.), que crescem a cada geração, a criatividade vem caindo. O fenômeno foi observado pelo pesquisador Kyung Hee Kim, do College of William & Mary (uma importante universidade pública nos EUA). Ele avaliou testes de criatividade feitos desde 1958 e aplicou um deles há dois meses a 300 mil americanos, adultos e crianças. Segundo o cientista, as notas vinham subindo até 1990. De lá para cá caíram, especialmente entre crianças pequenas.

Ser criativo não é só ter ideias originais
– é pensar em como torná-las realidade

Se você acha que já tem o perfil ou quer passar a se encaixar nele, ainda há um ponto que precisa saber antes de começar a ajeitar o currículo. “Criar”, tanto para os altos executivos entrevistados quanto para os cientistas que estudam o funcionamento do cérebro, é um conceito mais profundo do que “ter ideias diferentes”. Está mais para “ter ideias diferentes e utilizáveis, e ter o impulso de realizá-las”. “Criativo”, por essa visão, não é aquele sujeito maluquinho, cheio de pensamentos vibrantes e caóticos, mas pouco prático. O verdadeiro criativo trabalha. Ele pensa em como implementar as ideias e conhece os limites do mundo real, como escassez de material, dinheiro ou tempo – mesmo que seja para chutá-los para o alto.

Outras qualidades profissionais seguem em alta: ética, comunicação fluida, capacidade de análise, poder de inspirar equipes. Por que a criatividade se tornou mais desejada que todas? Nos países ricos, há o cenário do momento: uma crise que ameaça destruir as empresas menos espertas e pouco flexíveis. Pensando no planeta, incluindo o Brasil, sabemos que o mundo ficou, a um só tempo, menos previsível para quem vende e mais generoso para quem compra. Há abundância de oferta de produtos e serviços, que tendem a se tornar mais baratos. Mais empresas competem com maior eficiência por consumidores mais exigentes. As companhias precisam cortar custos e oferecer novidades de forma acelerada. O jeito velho de trabalhar não produz novidades na velocidade desejada. Vai se destacar quem conseguir criar mais e criar bem.

Um exemplo é a arquiteta Sarah Torquato, mineira de 25 anos. Em quatro anos, ela passou de estagiária a coordenadora de lançamentos na construtora MRV. Desde que começou a estagiar, Sarah depositou no banco de ideias da empresa 40 sugestões de como substituir materiais de construção por alternativas mais baratas, das quais 15 foram adotadas. Ninguém contribuiu tanto. Suas recompensas pelas ideias chegaram a R$ 40 mil, dinheiro com que deu entrada num apartamento aos 24 anos. Como uma pessoa tão jovem pode ser tão produtiva? Sarah diz que muitas vezes acordava de madrugada com uma inspiração, anotava a ideia num caderninho e voltava a dormir (leia dicas para aumentar a criatividade). “Fico ligada em tudo, o tempo todo”, diz. Alguns amigos a criticaram pela quantidade de sugestões. “Muita gente dizia: pare de dar ideias, a MRV já está rica.” A empresa diz ter distribuído R$ 1 milhão em prêmios para os funcionários por ideias que lhe economizaram R$ 80 milhões. Há ingredientes parecidos nas histórias do engenheiro químico Marcos Aurélio Detilio, que ofereceu sugestões de economia de energia aos clientes da empresa de engenharia e tecnologia Chemtech, em que trabalha, e conseguiu três promoções em quatro anos; ou de Arnaldo Gunzi, de 31 anos, que adaptou modelos matemáticos para melhorar o deslocamento de técnicos de telefonia no Recife e ganhou a oportunidade de trabalhar na Austrália; ou da chefe de cozinha Carole Crema, de 37 anos, uma das responsáveis por iniciar no Brasil a moda dos cup cakes, os bolinhos confeitados feitos em formas individuais. Criatividade é essa capacidade de ver possibilidades que os outros não enxergam e contribuir com algo original e útil.


CAMINHO NOVO
O empresário e DJ Renato Ratier em sua casa noturna,
a D-Edge, em São Paulo.
Se seguisse o roteiro familiar, ele seria pecuarista
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Por Francine Lima, Nelito Fernandes e Anna Carolina Lementy
Fonte: Revista ÉPOCA (Ed. da Semana) 30/07/2010

De onde vem a nossa alma?

Em uma mistura de ensaio e ficção,
Eduardo Giannetti relata os avanços da ciência para explicar nossa consciência
- e o dilema filosófico que eles trazem

David Cohen

ESPECULAÇÃO
O economista e escritor Eduardo Giannetti, em sua casa em São Paulo.
 Seu livro investiga a relação entre cérebro e mente

Um professor de literatura especializado em Machado de Assis sofre de esquecimentos, dores de cabeça, sensações de calor repentinas e, após alguns exames, descobre que tem um tumor no cérebro. A cirurgia transcorre bem, com apenas uma sequela: ele fica surdo de um ouvido. A partir daí, sua vida muda. Aposentado precocemente, o professor se torna um recluso obcecado por desvendar os segredos da relação entre o cérebro e a mente. Seria a consciência apenas o produto de reações químicas no cérebro? Livre do tumor físico, ele passa a crer que sofre de um tumor da alma, uma crença que ameaça seu senso de identidade e propósito. Com essa trama ficcional, o economista Eduardo Giannetti criou A ilusão da alma – Biografia de uma ideia fixa (Companhia das Letras), em que destila sua erudição, como fez em livros como Autoengano e O mercado das crenças. Desta vez, é uma erudição a serviço de explicar uma angústia existencial. Se não controlamos nossos pensamentos, o que somos?

Trecho - A ilusão da alma, capítulo 35

Do relâmpago ao voo da libélula, tudo o que acontece no mundo físico é passível de explicação mediante a explicita­ção de leis e princípios físicos. O conhecimento científico da natureza mostrou que não é necessário recorrer a nenhuma variável extrafísica – como espíritos, forças ocul­tas, vontades, entes psíquicos, demônios ou intervenções do além – para compreender os fenômenos do mundo natu­ral. O mundo físico é autossuficiente, ou seja, ele abriga no interior de si tudo aquilo que é necessário e suficiente para entender e explicar o que sucede nele. Il mondo va da se.

Pois bem: é difícil conceber, para dizer o mínimo, que o ser humano de carne e osso, fruto da união de dois gametas, não pertença integralmente a este mundo. A natureza não dá saltos. Mas, se tudo o que tem lugar no mundo físico, do qual nosso organismo é parte e onde nossa vida trans­corre, pode ser plenamente entendido e explicado mediante variáveis físicas, então por que seria diferente conosco?

O cérebro humano é um órgão de extraordinária complexi­dade – o mais intrincado e intrigante de que se tem re­gistro –, no entanto isso não faz dele uma milagrosa “cai­xa‑preta”: um órgão extranatural, regido por princípios estranhos a tudo que sabemos sobre o mundo, e que teria de algum modo ficado isento das leis naturais de causa e efeito ou das relações de tempo e espaço que se verificam no resto da natureza.

Mas se os nossos corpos e organismos (cérebro incluso) são entes físicos que nascem, crescem e se movimentam no espaço físico, como acontece com todo ser vivo do planeta, então não é necessário recorrer a nenhuma va­riável extrafísica, como nossos pensamentos, desejos e vontade consciente, para dar conta da nossa existência e ações no mundo.

Daí que o entendimento estritamente científico do Homo sapiens, pautado pela busca de resultados claros, inteligí­veis e sujeitos à aferição pública, exclua o recurso a esta­dos mentais de qualquer natureza quando o que está em jogo é a elucidação do que nos faz ser como somos e agir como agimos. A neurociência não foge à regra. Como relata Roger Sperry, falando aqui em nome dos seus cole­gas de profissão, “a convicção da maioria dos estudiosos do cérebro – cerca de 99,9% de nós, segundo creio – é que forças mentais conscientes podem seguramente ser des­consideradas no que diz respeito ao estudo científico obje­tivo do cérebro”.

Note bem. Em nenhum momento se nega a realidade da consciência ou dos eventos mentais: o que se descarta é sua utilização como princípios válidos de explicação. Em nenhum momento se subestimam as lacunas que ainda per­sistem no estudo científico da relação mente‑cérebro. Quem quer que procure inteirar‑se dos resultados alcançados há de concordar com o bioquímico americano Julius Axelrod quando ele afirma que “a linguagem eletroquímica do cére­bro é tão rica e sutil como a de Shakespeare – e estamos apenas começando a aprender o nosso abc”.

Existe um hiato inexplicado, seria descabido negar, entre a alma vista de fora para dentro (os fenômenos fisiológicos do cérebro), de um lado, e a alma vista de dentro para fora (os fenômenos subjetivos na mente), de outro. A descoberta da chave que decifra esse hieróglifo e franqueia a exata tradução do código de uma alma no alfabeto da outra é o santo graal da neurociência.

Seja qual for a resposta, porém, a questão crucial perma­nece: qual é a direção de causalidade entre o universo mental e a neurofisiologia do cérebro? A cada uma de nos­sas experiências mentais, conscientes ou não, corresponde uma configuração definida e particular do cérebro. Quem pilota quem? Existe, afinal, “um piloto”?

Que alterações da anatomia e da química cerebrais afetam os nossos estados de consciência é algo por demais evi­dente: ninguém precisa extirpar o hipocampo ou tomar LSD para constatar isso, basta um cafezinho ou um analgésico.

E na direção contrária? Como seria partir de um estado men­tal – uma sensação subjetiva como, por exemplo, “estou com fome” – para daí entender como isso afeta o cérebro e as ações decorrentes? Como um evento mental – algo de que me torno ciente ao pensar no que me vai pela cons­ciência – poderia direcionar ou afetar objetivamente a ativi­dade dos neurônios, as sinapses e os fluxos eletroquímicos observáveis e passíveis de mensuração em meu cérebro?

Procure imaginar. Primeiro, como surgiu a sensação? Obvia­mente, não veio do nada; o mais provável é que a fome subjetiva reflita uma condição de carência do tecido celular que se fez transmitir ao sistema nervoso e por fim subiu a rampa da consciência (“tenho fome”). E depois? À sensa­ção de fome seguem‑se, na ordem natural das coisas, outro estado mental, que é a intenção de comer (“preciso almo­çar”), e a ação prática da natureza esfaimada a caminho de uma bem‑vinda repleção (o almoço). O que estaria se passando aqui?

Um mentalista dirá: os eventos mentais, neste caso a sensa­ção de fome e a intenção de comer, produzirão de cima para baixo os processos fisiológicos do cérebro e ordena­rão ao córtex motor que acione os músculos voluntários do corpo visando agir e saciar a fome.

Repare: o que se tem aqui são entes psíquicos imateriais sacudindo neurônios e disparando sinapses para cá e para lá, em inescrutável balé, até que o disparo dos pulsos ele­troquímicos agite as fibras nervosas ramificadas pelo corpo e anime os músculos a dançar. Coreografia de rara e inefá­vel sutileza.

Por mais boa vontade que se tenha, a noção de que algo semelhante possa estar de fato acontecendo chega a ser tão obscura e alheia a tudo que se conhece sobre as leis natu­rais que regem o mundo, além de exigir um contorcionismo intelectual de tal monta daqueles que se dispõem a con­cebê‑la, que o único remédio é recorrer à máxima de Tertu­liano, teólogo e Pai da Igreja, diante dos mistérios da fé: Credo quia absurdum est (“Creio porque é absurdo”). Não deve andar longe o tempo em que o credo mentalista será visto como o criacionismo é encarado hoje em dia.

Um fisicalista, diante do mesmo desafio, dirá: apesar de vedado à nossa introspecção (tal como ocorre, aliás, com o funcionamento do aparelho digestivo), tudo o que nos vai pela mente – a cornucópia da vida subjetiva – tem cau­sas objetivas concretas e resulta de processos neurofisioló­gicos passíveis de observação e análise.

Nossos estados subjetivos coexistem com as mudanças objetivas no cérebro, mas isso não implica que possuam um real papel na sua explicação. É ilusão tomar como causa aquilo que sobe à consciência como um ato de von­tade, fruto da intenção de agir. A experiência subjetiva é o sopro derradeiro na cadeia de eventos neurais que a pre­cede, como o rumor produzido pelo ruflar de uma revoada de pássaros – o farfalho é o reverberar do voo. Os even­tos mentais que embalam a nossa vida consciente e incons­ciente (como os sonhos, por exemplo) são efeitos a serem explicados, porém desprovidos de eficácia causal.

Um estado mental (“preciso almoçar”) nunca é realmente produzido por outro estado mental (“estou com fome”); todos são produzidos por estados do cérebro. Quando um pensamento parece suscitar outro por associação, não é na verdade um pensamento que puxa ou atrai outro pensa­mento – a associação não se dá entre os dois pensamen­tos, mas sim entre os dois estados do cérebro ou dos ner­vos subjacentes a esses pensamentos.

Um desses estados do cérebro gera o outro, fazendo‑se acompanhar, em sua passagem, do estado mental particular que ele produz. A execução do ato pelos músculos do corpo (“garfo à boca”) e a digestão regida pelo hipotálamo coroam o processo. O intermediário mental, em suma, é um redundante fenômeno de superfície – epifenômeno – em relação ao funcionamento do organismo físico.

O quebra‑cabeça da relação mente‑cérebro não está com­pleto – há peças importantes faltando. Mas o contorno geral da figura que se desenha e o teor das descobertas que vêm se multiplicando, em especial nos últimos 20 anos, deixam pouca margem à dúvida. Todas as flechas da pesquisa científica voam afinadas para o mesmo alvo.

Quanto mais se aprofunda o conhecimento dos segredos da “caixa‑preta”, mais incontornável se torna a “hipótese espantosa” (Francis Crick) e mais se confirma a conclusão desconcertante de que os nossos estados mentais estão para o nosso cérebro assim como o apitar de uma panela de pressão está para o seu mecanismo de funcionamento. Ao contrário do que a nossa psicologia intuitiva nos acostu­mou a pensar, não é o apito que faz a água ferver; mas é porque ela ferve que o apito começa a tocar, como vai mostrando de maneira cada vez mais precisa e detalhada a pesquisa em neurociência e áreas afins.

A experiência mental que nos absorve e embala desde que nos tomamos por gente não passa, portanto, de um subpro­duto caprichoso e intrigante de processos físicos – daí o termo fisicalismo em vez do tradicional, porém inexato, materialismo – que ocorrem de modo autônomo e autossu­ficiente no organismo; um subproduto dotado de inesgotá­vel riqueza e fascínio, é inegável, mas inteiramente inócuo e desprovido de poder causal sobre o mundo físico obje­tivo a que pertence.

O cérebro humano é um órgão que responde sozinho por todas as nossas ações; por todas as nossas crenças e senti­mentos mais íntimos; por tudo que acreditamos. É ele que nos faz escolher uma profissão e nos faz sentir mais atraí­dos ou menos atraídos por alguém; é ele que nos leva a agir ou não de acordo com as normas de convivência vigentes; é ele que responde pelas nossas ideias políticas e religiosas. Embora tenhamos uma sensação de controle sobre o nosso pensamento e nossas ações, essa sensação não passa, também ela, de um subproduto do nosso cére­bro; ela é uma ilusão remanescente do ambiente arcaico no qual prevalecia a crença de que tudo que se mexe na natureza tem alma.

O fisicalismo subverte a nossa psicologia intuitiva e lança uma luz perturbadora sobre tudo que nela repousa. Não foi à toa que La Mettrie, médico e filósofo, autor de L’homme machine, o grande e corajoso manifesto fisicalista do século XVIII, alcançou o feito inusitado de unir contra ele todas as religiões da Europa, mesmo as que viviam em guerra entre si. É sintomático que nem o intrépido Diderot, ghost‑writer de diversas passagens do Système de la nature do barão D’Holbach – “a bíblia dos ateus”, como foi cha­mada, mas na verdade um compêndio prolixo e burocrá­tico da obra‑prima de La Mettrie –, ousasse referir‑se aber­tamente a ele, não obstante a clara influência, temeroso da onda de censura e perseguição que a simples menção do seu nome desencadearia.

A ideia é tremenda, mas basta um silogismo para resumi‑la. As leis e regularidades que regem o mundo são indepen­dentes da minha vontade (premissa maior); a minha von­tade é fruto das mesmas leis e regularidades que regem o mundo (premissa menor); logo, a minha vontade é indepen­dente da minha vontade (conclusão). Se as premissas são verdadeiras, então a conclusão é incoercível.

Trecho - A ilusão da Alma - Capítulo 7

termos inteligíveis a natureza do alerta que o meu cérebro tenta me enviar. Que tipo de anomalia estaria por detrás da fumaceira que escancarou a vastidão da minha ignorância
sobre mim? Tudo isso, é claro, supondo que o médico esteja na pista certa. E se os exames não revelarem nada — haveria outros a serem feitos? E se eu estiver simplesmente enlouquecendo?

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Delírio inaugural, racionalizações, novos delírios, consulta, bateria de exames, diagnóstico: o circuito foi tortuoso, mas a mensagem cifrada do meu cérebro finalmente alcançou a consciência do destinatário — e veio clara e contundente como um torpedo. “O resultado da ressonância é inequívoco”, sentenciou o dr. Jordão, “a sequência de transtornos e alucinações hipnagógicas que o vêm atormentando ultimamente resulta de um pequeno tumor alojado no lobo temporal direito do seu cérebro.”
Fiquei petrificado. “O quadro é potencialmente grave, exige uma pronta resposta, mas não é o caso de desesperar”, prosseguiu o médico, “tudo vai depender da biópsiaque revelará o tipo e a agressividade do tumor. Recomendo fortemente que você faça uma cirurgia, o mais depressa

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possível, a fim de extirpa‑lo; felizmente, pelo tamanho e localização do neoplasma, a operação em si não representa maior risco.” Em seguida, ele abriu a pasta com os meus exames e indicou com o dedo o ponto exato onde era possível visualizar o tumor. “Aqui está: é próximo à área do cérebro ligada ao sistema auditivo cortical primário; não há um minuto a perder”, emendou. “E, se você aceita uma sugestão, o dr. Tardelli, estamos juntos na clínica há muitos anos, é um cirurgião perfeitamente qualificado, tem vasta experiência em cirurgias desse tipo e com certeza vai deixa‑lo novo em folha. Minha secretária, se você quiser, pode agendar agora mesmo uma consulta com ele.”
No caminho de volta para casa, aturdido pelo golpe inesperado, fui tragado por um turbilhão de pensamentos.
“Logo comigo!”
A ideia de que o fim podia estar próximo, de que a minha vida, então, tinha sido aquilo, só aquilo e nada além daquilo, pareceu‑me insuportavelmente sombria e macabra, como o riso de hienas num funeral.
“Não vai acontecer comigo, não pode ser!” Procurei me consolar imaginando cenários ainda piores que o meu: podia ter sido atropelado; podia ter sido convocado para uma guerra; podia estar em coma, na uti, vítima de um derrame ou de uma bala perdida...
Logo a seguir me veio à mente o caso de Dostoiévski, absolvido da pena de morte a que fora injustamente condenado por um delito político, jovem ainda, graças a um indulto do czar Nicolau i recebido minutos antes do fuzilamento, quando tudo parecia terminado para ele. Recordei

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ter lido e me animado a copiar em algum lugar — onde estaria? — a impressionante carta que ele escreveu ao irmão mais velho, Mikhail se não me engano, sob o impacto do trauma, antes de partir para o presídio na Sibéria — a “casa dos mortos” — onde haveria de cumprir a pena de exílio e trabalhos forçados a que fora condenado. (Dostoiévski e seus companheiros de paredão nunca souberam, nem eu tinha noção quando li sobre o caso na faculdade, mas o drama da execução e do perdão providencial não passava de uma elaborada farsa: uma encenação montada pelo regime czarista com o propósito de quebrar o ânimo e aterrar o espírito dos jovens agitadores.)

Preciso achar e reler essa carta, anotei na memória, e foi precisamente o que me pus a fazer assim que cheguei em casa e subi correndo as escadas rumo ao escritório. E lá estava ela, copiada à mão na contracapa de um antigo caderno de estudo: Não me sinto abatido, não perdi a coragem, meu irmão. A vida está em toda parte, a vida reside em nós e não no mundo que nos rodeia. Perto de mim haverá homens, e ser um homem entre homens, e se‑lo sempre, em quaisquer circunstâncias, sem desfalecer nem tombar, eis o que é a vida, o verdadeiro sentido da vida. “Isso é grandeza, isso é coragem!”, repeti comigo, buscando tonificar o ânimo. Em nenhuma hipótese posso me deixar abater, fraquejar o espírito, perder a fibra; se tiver mesmo de morrer, pois bem, que seja! — morro de pé, sem lamúrias, sem refecer o brio, morro como um guerreiro.
O fato, porém, é que no fundo da alma, apesar de tudo, eu não me sentia pendurado à vida por um fio. Por algum

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motivo obscuro, simples desejo cego e irrefreável talvez, eu pressentia que aquele não seria ainda o meu fim; alguma coisa aconteceria e me salvaria do pesadelo, só podia ser isso, por mais que o meu intelecto frio teimasse em contrapor, sem dó ou comiseração, que aos trinta e poucos anos, com um tumor alojado no cérebro, a sombria verdade era só uma: o prognóstico era péssimo. O intervalo entre a descoberta do tumor e a cirurgia foi misericordiosamente curto. Pedi licença da universidade, avisei parentes e amigos, todos impecáveis na expressão de choque e solidariedade, e cumpri os exames pre‑operatorios. O dr. Nelson Tardelli, de quem vim a me tornar amigo, inspirava minha total confiança; logo que nos vimos, na primeira consulta, percebemos que já nos conhecíamos de vista, pois ele era o irmão mais velho de um ex‑colega de ginásio. A expectativa da operação exacerbou a minha veia supersticiosa; passei a detectar sinais e presságios do meu futuro em toda parte, quase sem pensar no que fazia. O reencontro de um rosto familiar naquela hora crítica não tardou a se encaixar no esquema e foi prontamente assimilado, sabe‑se lá por quê, como ótimo augúrio.
Da cirurgia em si, mais de oito horas na mesa, só recordo as preliminares: a cabeça sendo raspada e a agulha do anestésico intravenoso picando a dobra do antebraço.
Era minha primeira viagem desse tipo: um mergulho no breu. Um sono de outra ordem e potência, se é que a palavra sono é cabível: absoluta supressão do tempo e do fluxo da consciência — um sono de ninguém. Haveria prévia

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mais completa e definitiva do que o apos‑a‑morte e o pre‑nascimento, eternidades fora do tempo, por tudo quesabemos, podem representar? Para todos os efeitos, podia ter empacotado ali mesmo. O retorno ao reino dos vivos foi gradual. Ao recuperar uma nesga de consciência, senti os membros do corpo paquidérmicos e doloridos, como se tivesse sido espancado a pauladas; depois adormeci de novo, despertei melhor, e fui me acostumando. O clímax do dia — momento mágico e inesquecível — foi quando o dr. Jordão entrou de repenteno quarto, cumprimentou a enfermeira, esboçou um sorriso, e disse ter ótimas notícias. “Você tem muita sorte.” A operação tinha sido bem‑sucedida, e, melhor, o tumor era não só de baixa malignidade — um tipo de câncer chamado oligodendroglioma (dou o nome completo, preciso manter boas relações com ele) — como de reduzida probabilidade de reincidência. “O próximo passo”, avisou antes de se retirar, “é a radioterapia, coisa de um a dois meses no máximo, dosagem mínima; terminado o tratamento, você poderá ter uma vida normal.” Exultei. Depois de tantas notícias ruins, aquela me fazia ressurgir das trevas. Sentenciado e salvo pelo giro da roleta molecular, sobrevivi. Desvairada alegria. Tive ímpetos de sair saltando de felicidade e golpeando o ar pelo quarto, como quem acaba de marcar o gol da vitória na final do campeonato, como se um megaton de sombra e terror tivesse se despregado do peito, como um súbito transbordar da alma (perdoe a efusão, mas era a minha vida no patíbulo). Inebriante alívio.

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Fonte: Revista ÉPOCA (Ed.da semana) online, 30/07/2010

A inquisição sem fogueira, à bico de pena...

Teólogo homossexual é demitido de universidade romana


Expulsão com debate teológico. Ou talvez com pequena espionagem nos bares gays de Colônia, na Alemanha. David Berger (foto) é um jovem teólogo conservador alemão. Um emergente, muito estimado. Tem 42 anos. Como primeira atividade, ensina no Villa-Gymnasium de Erftstadt, escreve, até pouco tempo atrás dirigiu uma revista e, atividade de grande prestígio, desde setembro de 2003, é professor da Pontifícia Academia São Tomás de Aquino em Roma. Perdão, era.

A reportagem é de Danilo Taino, publicada no jornal Corriere della Sera, 29-07-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O presidente da Academia, Mons. Lluis Clavell, afiliado da Opus Dei, nos últimos dias, exonerou-o do magistério. Foi licenciado porque é homossexual declarado. O que torna tudo mais interessante é o fato de que, nestas horas, na Alemanha, abriu-se uma discussão: Berger é homossexual só como orientação, e por isso não licenciável, ou também nos comportamentos concretos, e por isso pecador?

No clima criado pelos abusos sexuais descobertos nos últimos meses na Alemanha, Berger decidiu, em abril, escrever um artigo para o jornal Frankfurter Rundschau. "Não podia mais me calar", explicou, ouvindo alguns prelados relacionando as violências com a homossexualidade de quem as havia cometido. Depois de ter assistido a um debate televisivo particularmente áspero, decidiu agir. Renunciou a seu cargo de diretor da revista conservadora Theologisches e, em um artigo, disse abertamente que era gay. Acrescentou que as posições da Igreja Católica sobre a homossexualidade eram "hipócritas e beatas" e que, "no catolicismo, há um aumento das tendências homofóbicas".


O ponto levantado por Berger poderia abrir
um debate teórico interessante,
diferenciando entre sentimento e prática.
Neste momento, porém,
a discussão está menos refinada.

 
Três meses depois, Mons. Clavell lhe informou que não poderá mais ensinar na Academia São Tomás. O prelado disse ter sabido da admissão de Berger com "profunda dor e horror", e que a sua posição "em um ponto do magistério da Igreja" não lhe permite permanecer na Academia. O jovem teólogo defende, pelo contrário, que o Catecismo de 1992 veta estritamente todo ato de homossexualidade, mas acrescenta que as pessoas homossexuais devem "ser aceitas com respeito, compaixão e sensibilidade" e não devem ser tratadas injustamente. Porém, ninguém – conclui – lhe perguntou se ele praticava a sua sexualidade.

O ponto levantado por Berger poderia abrir um debate teórico interessante, diferenciando entre sentimento e prática. Neste momento, porém, a discussão está menos refinada. O site de direita Kreuz.net entrou em campo com o objetivo de demonstrar "a vida dupla como homossexual" de Berger. O site pergunta se o jovem teólogo preferia que Clavell "contratasse um investigador privado". Acrescenta que "Berger vive com um homem em um apartamento de Colônia", que tem muitos amigos homossexuais no Facebook e que ele "está se afundando em um ambiente gay".

Final mais político: o Kreuz.net pergunta ao arcebispo de Colônia, cardeal Joachim Meisner, como ele pode continuar suportando na sua diocese um professor de religião homossexual. Subentendido: se um teólogo católico é gay, não pode trabalhar.
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Fonte: IHU online, 30/07/2010

''Ter o coração puro é ver o outro enquanto outro''

“As Bem-aventuranças, todas juntas, são o amor.
E o amor cristão é um paradoxo completo.
É o impossível por excelência e, ao mesmo tempo, como diz Freud,
é a única resposta que está na altura
da violência humana.”

A opinião é do filósofo francês Jean-Luc Nancy,
em entrevista a Élodie Maurot,
publicada no jornal La Croix, 23-07-2010.
A tradução é de Benno Dischinger.

Eis a entrevista.

Como soa, para você, de imediato, o texto das Bem-aventuranças?
Não é um texto que eu tenha o hábito de freqüentar. Digamos que o entendo principalmente como uma promessa de felicidade, mas que sempre contém o risco de ser uma falsa promessa. É certamente o texto bíblico para o qual me ponho imediatamente numa perspectiva crítica e desconfiada, porque as Bem-aventuranças tem todas aquelas características daquela palavra que dá alívio, que lapida as arestas, que elimina os obstáculos. Concentram, a meu ver, quanto há de difícil e de que suspeitar na mensagem cristã. Vê-se nas mesmas demasiado facilmente uma “boa vontade”, cheia de boas intenções que ficam longe daquilo que, com Kant, se pode definir uma “vontade boa”. As Bem-aventuranças colocam-nos sempre diante de um dilema: ou se trata de um pacote de boas intenções adocicadas, deveras edulcoradas, que procuram seduzir os leitores e os ouvintes com uma espécie de entorpecimento de sua vigilância, como um ópio dos povos particularmente poderoso, ou então se trata de algo radicalmente diverso...

O senhor trabalhou muito sobre a linguagem. É sensível à forma deste texto?
A grande característica do Evangelho é de ser um livro religioso que não contém muita doutrina. Um livro no qual a “doutrina” é inteiramente oferecida com palavras pronunciadas em certas situações. As Bem-aventuranças levam este paradoxo ao máximo. Estamos no cume do relato evangélico, no momento em que se poderia esperar um desenvolvimento doutrinal, mas, ao invés, a doutrina não chega. E Cristo pronuncia as Bem-aventuranças. Isso me faz pensar em Nietzsche que diz: “Se Cristo tivesse vivido mais tempo, teria abolido sua doutrina”. Nietzsche manifesta nisto suja profunda compreensão do cristianismo. Entendeu muito bem que o coração do cristianismo não consistia numa doutrina, mas numa vida. Este núcleo duro, ético, caso se queira (se esta palavra não for demasiado desgastada), não se deixa absorver pelas montagens teóricas, teológicas ou eclesiásticas. É um cerne muito resistente, enquanto a forma que assume é aparentemente frágil, narrativa, em vez de ser doutrinal, e seu conteúdo se situa inteiramente na doçura.

Isto permite entender de modo diverso este texto, do qual o senhor sublinhava agora a ambivalência?
As Bem-aventuranças, todas juntas, são o amor. E o amor cristão é um paradoxo completo. É o impossível por excelência e, ao mesmo tempo, como diz Freud, é a única resposta que está na altura da violência humana. Freud escreve isto logo após a Primeira Guerra Mundial, quando a violência se havia desencadeado sob seus olhos. Ali está todo o paradoxo: é uma resposta impraticável e, ao mesmo tempo, só aquilo resiste! As Bem-aventuranças levantam o problema do amor cristão e o amor põe imediatamente o problema de seu caráter “feliz”.

Como entende este “bem-aventurados”, “felizes”, que articula as bem-aventuranças?
O “felizes” ou “bem-aventurados” do Evangelho ressoa numa sociedade em estado de profunda desorientação. O mundo no qual nasce o cristianismo é um mundo que desmorona, que perde suas seguranças, que perde sentido, que é colocado diante de uma perdas geral dos seus pontos de referência. Um historiador da antiguidade, que Freud cita no seu Moisés, escreve a propósito daquela época: “Parece que uma grande melancolia se tenha apossado de todos os povos do Mediterrâneo”. Esta frase, tão surpreendente para um historiador, diz uma grande verdade. O mundo politeísta que desaparece é, de fato, um mundo no qual os deuses, também os maus, também os ameaçadores, estavam presentes por toda parte. Era um mundo no qual a gente se podia encontrar e orientar. Ao invés, a época da Roma imperial é um período de grande angústia e de grande abandono. O estoicismo e o epicurismo que se desenvolvem naquela época são, de resto, tentativas de responder a esta desorientação. Estóicos e epicureus são indivíduos atormentados que procuram desenvolver toda uma série de exercícios para preservar-se daquela desorientação, embora se resignando.

Qual é a felicidade aqui proposta?
O “bem-aventurados” do Evangelho não quer tanto dar felicidade ou satisfação, quanto indicar um caminho para sair da angústia. As Bem-aventuranças não designam felicidade, mas um comportamento, uma disposição geral da vida humana que foge ao mesmo tempo da angústia e da resignação.

Não é uma resposta que assume a forma de conselhos morais...
De fato, é um pronunciamento um pouco rítmico. É uma arenga, mas não só. É antes uma exclamação e, por conseguinte, uma celebração. “Bem-aventurado” significa aqui “glorioso”, “em glória”. É quase como dizer “santo”... As Bem-aventuranças “colocam em glória” aqueles aos quais elas são dirigidas. São uma celebração daqueles que estão nas disposições descritas. Não são conselhos ou indicações de comportamento deduzidas de princípios, mas é a afirmação que “é assim”. É muito interessante que não esteja no âmbito da exortação moral. Cristo celebra algo e cabe àquele que escuta tirar proveito disso. As Bem-aventuranças não estão ligadas a algum processo, a algum comportamento verdadeiramente prescrito. Dizem antes: há “algo” em vós, “algo” que sois e que deve ser celebrado; este “algo” é o Reino, é a saída da concatenação dos meios e dos fins, dos possuídos e da dominação. Como na parábola dos lírios dos campos.

“Bem-aventurados os puros de coração”, diz uma das Bem-aventuranças: o que significa para o senhor?
O termo grego, traduzido aqui com “puro”, remete ao adjetivo “límpido”. Como se diz da água que é pura ou límpida. Põe o acento na transparência. O texto grego diz, de resto, não “os corações puros”, mas “os puros de coração”. Ser puros “de coração” remete a outro modo de ser puros “de corpo”. Esta diferença impressiona imediatamente, sabendo-se a importância das purificações e dos ritos associados à pureza nas religiões antigas e no judaísmo. É preciso conectar esta Bem-aventurança com toda a tradição profética que critica os ritos e considera que a purificação dos corpos é insuficiente. Celebrar o “coração puro” cria uma diferença em relação à observância ritual.

Que elo vê entre ser um “coração puro” e “ver Deus”?
Nas religiões antigas, a purificação tem a função de libertar o homem dos elementos profanos para permitir-lhe aceder ao sagrado. É o primeiro gesto para dar um passo no espaço sagrado. Ora, aqui, a possibilidade de ver Deus não está ligada à permissão de aceder à ordem do sagrado, do separado, do proibido. Esta Bem-aventurança diz que Deus não é da ordem do sagrado, não se situa “do outro lado” de uma fronteira que seria preciso superar graças ao rito. Aquele que tem o coração puro é aquele que pode, graças à limpeza de seu coração, ver Deus.

"O amor remete àquilo que nós absolutamente não podemos agarrar.
Talvez isto é “ver Deus”. Não vê um ser atrás de outros seres,
mas ver que todo ser é absoluto,
incomensurável."


Como se Deus já estivesse presente, mas não reconhecido?
Quando o coração é purificado, vê Deus. Poder-se-ia dizer que a purificação do coração faz ver, por si mesma. Não faz ver algo que estava escondido, mas algo que antes não se via. É muito diverso. Não estamos aqui num desenvolvimento cultual. A purificação do coração produz sentido por si mesma. Não é o meio para aceder a outro [patamar], mas um modo para ver de maneira diversa. É uma abertura ao interior do “mundo”. O coração puro talvez seja “Deus” mesmo.

No seu ponto de vista, em que consiste a purificação?
As Bem-aventuranças fazem ressoar negativamente a grandeza, a potência, a riqueza, a violência do mundo. A purificação do coração é a purificação de todos os pesadumes, de todos os domínios e, no limite, de todos os significados do mundo. O “coração puro” é aquele que se mantém à distância de toda a máquina do mundo, o que não significa que se mantenha “fora” do mundo. Nem é atraído pela máxima recompensa que poderia consistir neste “ver Deus”, como forma de participação no poder ou no domínio, ligada ao desejo de ser admitido junto a Deus. Não se é “feliz” por uma recompensa, o que continuaria sendo da ordem do “mundo”, mas se é “feliz” de não estar encerrados “dentro”.
Sem dúvida, para compreender o que é um “coração puro” é preciso voltar àquele amor que consiste em ver o outro como outro. Trata-se precisamente de ver, isto é, de estar na relação, sem nada que se possa agarrar. Não se “vê” um objeto, se “vê” uma abertura, uma evasão em direção ao outro. O que requer o amor senão uma purificação do coração? Uma purificação das minhas expectativas, para que eu possa ver o outro como outro. É verdadeiramente através do cristianismo que o amor se torna este reconhecimento da absolutez integral da pessoa. O amor remete àquilo que nós absolutamente não podemos agarrar. Talvez isto é “ver Deus”. Não vê um ser atrás de outros seres, mas ver que todo ser é absoluto, incomensurável.
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Fonte: IHU online, 31/07/2010

Leitura lenta

NILSON SOUZA*
Estava lendo este jornal na última segunda-feira quando deparei com um texto enorme, com cerca de 150 linhas, quase uma página inteira. Pensei: “Se alguém escreveu um texto deste tamanho e alguém resolveu editá-lo, é porque vale a pena ler”. Atirei-me a ele. E me senti recompensado no final. Era, realmente, um bom texto. Falava exatamente sobre a dificuldade que as pessoas têm hoje para ler textos longos. Tratava-se da tradução de um artigo do jornal britânico The Guardian, relatando dois respeitados estudos científicos que sugerem que muitas pessoas não têm mais concentração para ler até o fim artigos médios e grandes.

Por quê? Porque os hábitos online estão danificando as faculdades mentais necessárias para processar e entender informações textuais mais longas. Fiquei assustado com a revelação. Mas achei que fazia um certo sentido. Faz algum tempo que venho percebendo a repulsa dos leitores, especialmente dos jovens, por livros e por textos longos. Nós mesmos, que escrevemos para jornal, procuramos a cada dia abreviar mais e mais os nossos escritos para não espantar os leitores. Todos estamos convencidos de que as pessoas se satisfazem lendo títulos e notas pequenas. No máximo, o chamado lead, que resume a notícia no primeiro parágrafo. Quando leem no computador, pulam de um link para outro, sem se aprofundar em nenhum deles.

Fiquei tão intrigado com o assunto que resolvi fazer um teste com meus colegas de trabalho. Esperei o final do dia, quando todos já deveriam ter lido o nosso próprio jornal, e saí de mesa em mesa na Redação, com o artigo referido, perguntando quem o tinha lido até o final. Passei por seis editorias e por duas dezenas de companheiros de trabalho. Ninguém tinha lido. Até que finalmente encontrei um jornalista que, como eu, havia percorrido o texto da primeira à última linha. Então ele se explicou:

– Li porque fui eu quem editou este texto. E tive que cortar um pedaço, senão ninguém ia ler.

Tive vontade de pedir para alguém parar o planeta para que eu pudesse descer. Passei a vida inteira aprendendo a ler e valorizando a leitura. Agora esta capacidade duramente adquirida parece estar em extinção. Só não me desesperei porque o próprio artigo do The Guardian fala de um movimento mundial chamado Slow Reading (leitura lenta), que apregoa uma reação à superficialidade das leituras online. Sugere que, em pelo menos um dia da semana, a gente deixe de lado as telinhas, as ferramentas de busca e os resumos para mergulhar numa leitura de verdade, misturando as ideias do autor com as nossas – como estou fazendo agora em relação ao artigo que li.
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*Jornalista
Fonte: ZH online, 31/07/2010

Como manter o cérebro ativo?

Mitos e verdades


FAZER PALAVRAS CRUZADAS É BOM PARA O CÉREBRO
Mito. As cruzadinhas exercitam apenas a parte do cérebro que executa tarefas já aprendidas. Não estimula o planejamento, a organização e outras funções importantes para a saúde mental.

NÃO PARAR DE TRABALHAR É PREJUDICIAL PARA A SAÚDE
Mito. O trabalho, quando executado com prazer, é saudável para o cérebro. As funções podem ser alteradas com o passar dos anos. Ao se aposentar, as pessoas devem procurar novas ocupações, que não precisam ser profissionais.

ASSISTIR À TV ESTIMULA A MENTE
Mito. A TV é um importante canal de informação e entretenimento, mas pouco estimula o cérebro. O hábito de ficar muito tempo na frente do aparelho acaba causando a perda das reservas cognitivas.

ALIMENTOS SAUDÁVEIS SÃO BONS PARA O CÉREBRO
Verdade. Além de ser importante para manter a saúde do corpo, a alimentação balanceada ajuda no combate a demências e a outras enfermidades cerebrais.

Fuja do estresse
O estresse é um peso que não pode ser carregado por muito tempo. De acordo com o geriatra João Senger, o cortisol, hormônio do estresse, produzido em excesso no organismo dos estressados, provoca alterações nocivas para o corpo, podendo atrofiar o hipocampo, a área do cérebro ligado à memória.

– Quem mantém o estresse crônico pode ter problemas de memória no futuro – avisa.

A sobrecarga não depende da profissão:

– Tem gente que trabalha sob intenso estresse, mas aprende a conviver com isso. Outros não têm um serviço tão estressante, mas se estressam por qualquer coisa.

A ideia é buscar fontes de combate ao problema. Meditação funciona para uns, enquanto esportes radicais servem para outros.

– Manter bons hábitos de vida vai influenciar lá na frente – destaca Senger.

Aprenda coisas novas
O cérebro pode “abatumar” se ficar sempre executando as mesmas e conhecidas funções. Ao envelhecer, o cérebro começa a se desequilibrar. O lado encarregado de colocar em marcha tarefas já aprendidas e consolidadas se desenvolve mais, enquanto a área responsável pelo novo aprendizado acaba sem uso.

Aprender novas línguas ou descobrir o mundo dos computadores é muito melhor para a cabeça do que ficar assistindo à TV. De acordo com o professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais Paulo Caramelli, um recente estudo americano mostrou a eficiência dos novos aprendizados.

– O aprendizado e a prática de dança ou instrumento musical, a leitura e os jogos de estratégia (xadrez, damas, gamão) reduziram muito o risco de demência entre os pesquisados – afirma.

Exercite-se e alimente-se bem
Praticar exercícios físicos e se alimentar corretamente também influenciam o cérebro. Andrea Deslandes, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, diz que estudos mostram que as pessoas mais ativas correm menos risco de desenvolver doenças metais.

– O exercício influencia também a autoestima, a convivência social. Acredita-se que fazer exercício aumenta a reserva vascular, e o paciente tem melhor resposta para doenças como o Alzheimer, ajudando a manter as funções – afirma.

Um estudo americano publicado em abril, a partir da avaliação de 2.148 voluntários com mais de 65 anos, atestou que a Dieta do Mediterrâneo – baseada ema peixes, frutas e verduras – baixou em 28% o risco de demência e acidente vascular cerebral.

Mantenha amigos e um companheiro
Com o passar dos anos, é preciso aprender a conviver com as perdas. Amigos vêm e vão, os filhos crescem e saem de casa e, às vezes, não é possível chegar a uma idade avançada junto da companheira ou do companheiro. De acordo com o geriatra João Senger, estudos apontam que quem vive sozinho fica mais suscetível a desenvolver depressão e de ficar doente:

– O homem não foi feito para ser ermitão. Manter uma rede social é importante. A solidão pode acarretar problemas de alimentação, que carregam outros fatores prejudiciais.

Senger lembra que outros estudos sustentam que as pessoas que mantêm um parceiro vivem mais e produzem atividades cerebrais melhores. O neurologista Paulo Caramelli ressalta que viver em companhia de alguém pode aumentar a reserva cognitiva, estimulando as relações sociais e a busca pela felicidade.

Manter a família integrada e participar de atividades coletivas, como grupos de voluntários ou de jogos e conversas informais, funcionam como remédio para a mente.

Tenha sempre um problema para resolver
A aposentadoria não pode significar o descanso total da cabeça. Ao parar de trabalhar, é preciso permanecer ativo, buscando atividades que estimulem o cérebro a manter as funções de planejamento, organização e raciocínio. A reserva cognitiva construída ano após ano pode se desfazer em poucos meses se não for exercitada.

– Tenho casos de pacientes que, seis meses após se aposentarem, foram diagnosticados com quadros iniciais de demência – exemplifica o geriatra João Senger.

Para o médico, é preciso sempre ter um problema para resolver. Buscar as soluções pode até dar dor de cabeça, mas o esforço é importante para manter a cuca em ordem. Não é necessário continuar com uma atividade profissional. É possível coordenar ações sociais, tornar-se síndico do prédio ou coordenar a reforma da casa.

Envolver-se em uma atividade complexa, que trabalhe o intelecto, é uma fórmula sem contraindicações. Quanto mais difícil, melhor. Isso incentiva o maior número de conexões entre os neurônios, aumentando nossa reserva cognitiva, mantendo o cérebro funcionando bem, por mais tempo.
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Fonte: ZH online, 31/07/2010
http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora

A missão do sacerdote

Dom Eugenio Sales *
A festa litúrgica do Cura d'Ars, no mês de agosto, oferece oportunidade para maior e melhor compreensão do sacerdócio católico e seu papel na sociedade. Problemas e contradições o acompanham: elogiado por uns, incompreendido e vilipendiado por outros.

João Batista Maria Vianney era um medíocre, segundo os critérios humanos. Somente sua piedade ardente conseguiria vencer as dificuldades para o acesso às ordens sacras. Ars, um lugar desconhecido e, ainda hoje, pequeno aglomerado de casas. No entanto, a santidade de um pároco transformou-o em extraordinário centro de irradiação apostólica por toda a França e conhecido no mundo inteiro.

O padre, se autêntico, é um homem profundamente marcado pela fé. Participa das limitações e anseios da humanidade e, ao mesmo tempo, é alguém invadido pelo mistério de Deus. Esta opção fundamental de sua vida transborda em suas ações e caracteriza as atividades no plano temporal.

No decreto Presbyterorum ordinis (nº 2), o Concílio Vaticano II nos ensina: “O fim a que visam os presbíteros por seu ministério e vida é ocupar-se da glória de Deus Pai em Cristo. Consiste esta glória em aceitarem os homens a obra de Deus levada à perfeição por Cristo”.

Emerge desse quadro a complexidade de uma missão. Profundamente identificado com o meio de onde é escolhido, com uma destinação da mais alta relevância, não perde as características de fraqueza de seus irmãos. A eles deve trazer o remédio salvífico e, antes, utilizá-lo para si, a fim, de melhor capacitado, transmiti-lo aos outros.

O sacerdote é pedra de tropeço para quem não o vê em sua dimensão global, divina e humana. A incompreensão o acompanha e assume posições contraditórias no julgamento de muitos. Busca fazer nascer, ressurgir ou aumentar no coração do Povo de Deus o amor de Cristo, esforçando-se por construir uma comunidade viva. Para isso tem por critério a caridade pastoral.

Pela limitação própria e dos outros, esse pastoreio é muitas vezes mal interpretado, eivado de falhas, cuja correção é lenta, gradual e jamais completada.

Assim, entre o sacerdote e os fiéis, é imperioso haver íntima colaboração e ajuda. O cristão que apoia este ministério sagrado fortifica a própria ação do Redentor. Este age pelos séculos na concretização de sua obra, particularmente através dos ministros sagrados, cujo caráter sacerdotal não faz desaparecer as limitações terrenas.

Assim, a escassez de padres, o problema do chamamento de jovens à vida consagrada, é assunto que interessa a cada um de nós. A pastoral vocacional obriga a todos.

Seu fundamento é a prece, segundo a orientação do Mestre. Ao ver a messe grande e serem poucos os operários, ele diz: “Rogai ao Senhor da messe que envie operários à sua messe” (Mt 9,38). Às paróquias, às famílias, às escolas, aos indivíduos é destinada esta ordem.

Para facilitar as atividades vocacionais, “a pastoral vocacional deve empenhar a comunidade cristã em todos os seus âmbitos. Obviamente, no referido trabalho pastoral capilar está incluída também a obra de sensibilização das famílias, muitas vezes indiferentes se não mesmo contrárias à hipótese da vocação sacerdotal. Que elas se abram com generosidade ao dom da vida e eduquem os filhos para serem disponíveis à vontade de Deus!” (papa Bento XVI, Sacramentum caritatis, nº 25)

O êxito de todo este esforço, autenticamente evangélico, pede a cada membro da comunidade eclesial que assuma sua responsabilidade. Parte especial cabe aos próprios sacerdotes. O exemplo de uma existência inteiramente consagrada ao serviço do Senhor, no desprendimento dos bens materiais, na obediência – uma face oposta às facilidades do mundo – eis uma prova válida para a mocidade idealista aceitar o chamado do Mestre. O padre feliz vale por uma campanha!

Ele é o homem do sagrado. Esse mistério do eterno, que carrega consigo, deve transparecer. Aparentemente, as pessoas podem elogiar o ministro profano. Mas somente aquele que faz Cristo viver em seu modo de falar, de agir, de vestir, consegue levar a Deus os que vivem dele afastados. Mais do que os métodos de trabalho, dos predicados humanos vale a santidade de vida, extraordinário meio para transmissão da graça.

O Cura d'Ars é um exemplo vivo ainda em nossos dias. Ele nos questiona, aos padres de modo particular, mas também a toda a comunidade eclesial. Proclama alto o valor do ministro do Senhor para toda a sociedade.

Na verdade, continuam válidas as palavras do Mestre: o seu seguidor é o sal da terra e a luz do mundo. Interessa a todos conservar essa luz acesa, pois há trevas e insegurança. No ambiente que se decompõe, em meio à corrupção generalizada, goza de grande importância alguém que, por sua palavra e, melhor ainda pelo seu exemplo, seja elemento que conserva os fundamentos da moral.
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* arcebispo emérito do Rio
Fonte: JB online - 30/07/2010

Revés de um parto

Adilson Luiz Gonçalves *


 “Oh, pedaço de mim! Oh, metade arrancada de mim,...”, diz uma letra da música de Chico Buarque, talvez a que mais me afeta emocionalmente. Seu tema é a saudade...

Saudade que o poeta encontra várias formas de descrever, todas metaforicamente perfeitas, todas dolorosamente profundas. Saudade de coisas perdidas ou que se deixou de buscar ou acreditar. Saudade do que nos foi tirado inesperadamente, ou que, por mais que nos pensássemos resignados, nada é capaz de consolar.

Mas amores perdidos o tempo pode curar! E, hoje, já não são tantos os amores sinceros, que preconceitos e tolas tradições ainda teimem em separar.

É quando se encontra um desses amores que a gente entende o real sentido da vida e passa a vivê-la com uma intensidade que exterioriza luminosidade, que gera semente, que às vezes frutifica em mais vida e luz: é quando uma mãe dá à luz, e um pai acalenta ambos.

Nesse momento, deixamos de ser apenas andarilhos, na vida, para sermos guias e, até, caminho para nossos frutos.

No ciclo da vida, que é qual uma infindável corrida de revezamento, pais entregam vida aos filhos, e estes aos seus descendentes, num círculo virtuoso, que ninguém jamais sonharia em ver interrompido.

Nascemos, crescemos e tentamos aprender um pouco do mundo, da alma e de seus mistérios, antes que nosso tempo se esvaia e sejamos apenas lembrança, quem sabe saudade.

Quando isso é natural, fica mais fácil de entender uma perda. Uma longa vida que se encerra toca nossa alma, mas a ciência de que outras vidas dependem da nossa nos motiva a buscar forças para recobrar o alento e prosseguir.

Daí, ser pai foi algo que me tornou um ser humano melhor, apesar de todas as minhas limitações e defeitos renitentes. E a simples sensação de deixar essa condição me aflige de forma visceral. Creio que ninguém jamais estará preparado para isso, e que será precisa força sobre-humana para superar tal perda.

Por isso, toda vez que vejo quaisquer pais, famosos ou não, amigos ou não, chorarem seus filhos, isso me afeta e sempre me faz lembrar a música de Chico, que em sua mais aguda e definitiva comparação, resume que: “... a saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.

Talvez não haja dor maior!

Mas, a essa lembrança sempre vem juntar-se outra, a das palavras cantadas de Renato Russo, quando afirma: “É preciso amar as pessoas, como se não houvesse amanhã. Porque se você parar para pensar, na verdade não há!”.

Quem sabe assim, a saudade talvez seja mais amena, menos dorida, e a vida possa prosseguir, com campos ainda a semear.
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* Mestre em educação e escritor
Fonte: JB online - 30/07/2010

Entrevista exclusiva com o Ministro da Defesa de El Salvador, Gen. David Munguía Payés

O Ministro da Defesa de El Salvador
durante discurso de abertura da Conferência Sub-Regional para a Mesoamérica,
realizada de 20 a 23 de julho em San Salvador.
(Foto: Marcos Ommati)


Pela primeira vez na história de El Salvador, delinquentes queimaram um ônibus com passageiros dentro. O crime, ocorrido no dia 20 de junho e que deixou 17mortos, inclusive uma menina de poucos meses de idade, revoltou o país e gerou uma pressão política pela implementação de novas medidas contra as quadrilhas neste país centro-americano.
Entre estas medidas está o uso das Forças Armadas em apoio ao combate a grupos como o Mara 18, acusado de ser o responsável pelo ataque ao ônibus, e outros.
O Ministro da Defesa de El Salvador concedeu a seguinte entrevista exclusiva a Diálogo, minutos depois de ter discursado na Conferência Sub-Regional para a Mesoamérica, realizada de 20 a 23 de julho em San Salvador e organizada pelo Centro de Estudos Hemisféricos de Defesa, para tratar deste e de outros assuntos.

Diálogo – Qual é o papel das Forças Armadas hoje em dia em El Salvador?
Gen. Munguía – Definimos as tarefas que vamos desenvolver em função do apoio à Polícia Nacional Civil (PNC). Existe um acordo executivo (Nº 70), onde o sr. presidente ordena que as Forças Armadas apoiem a PNC, mas limita nossas ações, ou seja, não temos funções totais de polícia. Temos ordens para realizar detenções, registros de veículos, registros de pessoas e prisões em flagrante.

Diálogo – O que acontece com as pessoas presas por militares das Forças Armadas?
Gen. Munguía – Se capturamos alguém, o entregamos imediatamente à PNC. Além disto, estabelecemos um comando conjunto com a PNC, onde se coordenam todas as atividades, de forma que, se houver um problema, ali mesmo ele será solucionado, neste comando conjunto.

Diálogo – Como acontece o cumprimento desta tarefa?
Gen. Munguía – Formamos 8 forças de 350 homens cada uma, com seus respectivos comandos. A missão que temos é ocupar as 29 zonas com o maior índice de delinquência do país. Estamos operando nestas áreas, e nossa presença é permanente.

Diálogo – É uma medida preventiva?
Gen. Munguía – Até o momento, tudo é preventivo. Há uma proposta de reforma na lei onde a participação nas quadrilhas será criminalizada, e isto nos dará a oportunidade de também prender os participantes dos bandos.

Diálogo – Ou seja, fazer parte de uma quadrilha atualmente não é considerado crime?
Gen. Munguía – Neste momento, o fato de pertencer a uma quadrilha não é considerado crime. Prevalece o princípio da presunção de inocência, ou seja, embora saibamos que alguns deles são criminosos, e as pessoas os considerem criminosos, não podemos fazer nada. É muito difícil provar os delitos. Só podemos prendê-los em flagrante. Atualmente, ainda não podemos prendê-los por presumir que eles tenham cometido delitos.

Diálogo – Mas não é verdade que para participar de uma quadrilha o futuro membro deve cometer algum delito?
Gen. Munguía – É verdade. Na realidade, hoje em dia exige-se que a pessoa cometa pelo menos um homicídio. Existem casos de quadrilhas que exigem até 6 homicídios. Por isso se pode presumir que se uma pessoa pertence a uma quadrilha, é porque já cometeu pelo menos um homicídio, mas não se pode capturá-la, nem iniciar uma investigação ou processo judicial com base nesta presunção. É preciso esperar que cometam outros crimes e que os capturemos durante o ato. Entretanto, há uma nova lei proposta pelo presidente da República que nos permitirá capturá-los por pertencerem a uma quadrilha.

Diálogo – Qual foi a participação das Forças Armadas no caso do ônibus incendiado?
Gen. Munguía – Infelizmente, não tivemos uma participação direta nesta investigação. Entretanto, nós já sabíamos que existia esta quadrilha no município onde o crime foi cometido, mas não podíamos prendê-los até o momento em que cometessem um crime; no entanto, ajudamos a Polícia Nacional a solucionar o problema, porque os avisamos que naquela área havia esta quadrilha e eles conduziram as investigações naquela direção.

Diálogo – O senhor considera as quadrilhas o principal problema de segurança em El Salvador atualmente?
Gen. Munguía – Sim. Não podemos ignorar que há outros, como o crime organizado, o narcotráfico e os crimes de colarinho branco, que poderiam estar também por trás destas quadrilhas. O principal problema constitui a combinação das quadrilhas com o narcotráfico. Isto é o que está ocasionando a violência que estamos vivendo nas ruas, e esta grande quantidade de homicídios que acontecem no país. Quando as Forças Armadas começaram a apoiar de forma mais consistente a Polícia Nacional Civil (PNC) — em novembro de 2009 — os índices de criminalidade eram de 14 a 15 homicídios por dia. Com o trabalho que estamos desenvolvendo conseguimos primeiramente conter esta espiral de crimes, e em seguida, com as últimas missões que o presidente da República nos encomendou, como tomar o controle de uma parte importante dos centros penais, conseguimos que, junto com a polícia, os homicídios baixassem para 9por dia no mês de junho de 2010.

Diálogo – O senhor poderia nos falar um pouco mais sobre a intervenção das Forças Armadas nos centros penais?
Gen. Munguía – A polícia tinha estatísticas de que mais de 80% das extorsões eram ordenadas de dentro dos centros penais. Hoje há uma baixa significativa de extorsões no país, apenas para citar um exemplo, devido à atuação e ao apoio das Forças Armadas.

Diálogo – Qual a sua opinião sobre a criação de cárceres isolados, como foi Alcatraz nos EUA?
Gen. Munguía – Seria conveniente, mas é preciso diferenciar o que gostaríamos de fazer da nossa realidade. Construir um presídio normal custa ao país cerca de US$30 milhões. Construir um presídio de segurança máxima numa ilha, pode custar-nos 3 ou 4 vezes mais. A realidade é que o país não tem condições, atualmente, de gastar tanto dinheiro para construir tais presídios. Existem alternativas mais baratas, como a construção de prisões utilizando contêineres, de forma modular, rodeando-as com uma cerca de segurança para abrigar aqueles presos de confiança, ou os que já estão prestes a cumprir suas penas, idosos ou pessoas com enfermidades muito graves. Creio que isto poderia solucionar nosso problema temporariamente.

Diálogo – Os bloqueadores de celulares nos presídios não são uma outra solução a ser implementada?
Gen. Munguía – O uso da tecnologia é uma solução, mas não pode ser a única, porque nenhum instrumento tecnológico é 100% seguro. Em primeiro lugar, porque a tecnologia ainda não está completa e, em segundo lugar, porque no final estes aparatos tecnológicos têm de ser manipulados pelo homem. Este é outro grande problema que temos nos centros penais, ou seja, há muita corrupção ali. Por exemplo, os EUA nos doaram algumas cadeiras detectoras que acusam se alguém que vai entrar em uma prisão está levando consigo algo ilícito. É uma boa tecnologia, mas percebeu-se que, várias vezes, a pessoa que administrava estas cadeiras as desconectava no momento de sua utilização. Sabemos que é de dentro dos presídios e através de chamadas de celulares que os crimes são comandados do lado de fora, e o governo está se esforçando para impedir que isto aconteça, inclusive utilizando bloqueadores de celulares, mas é uma coisa difícil de combater.

Diálogo – Existe intercâmbio pan-regional de inteligência policial-militar?
Gen. Munguía – Sim, entretanto ele é muito elementar e deficiente. Durante a última reunião do Sistema de Integração Centro-Americana (julho de 2010), este foi um dos temas tratados. Estabeleceram-se compromissos e foram feitas coordenações exatamente para manejar, de uma forma mais efetiva e mais rápida, o traslado de informações e de inteligência, para que pudéssemos ser mais eficientes no combate ao crime, inclusive com a participação do México e da Colômbia.

Diálogo – Como evitar problemas com relação aos direitos humanos?
Gen. Munguía – A primeira coisa que fizemos foi capacitar nosso pessoal quanto ao assunto dos direitos humanos, antes de passar a cumprir estas missões. Formamos equipes com os organismos defensores dos direitos humanos e outros organismos especializados, para que eles dessem aulas desta matéria aos nossos quadros de oficiais, suboficiais e tropas. Temos também uma supervisão estreita do cumprimento das missões. Até agora não houve acusações graves com relação a violações dos direitos humanos.

Diálogo – E com relação aos jovens delinquentes? O que o governo está fazendo para evitar que eles entrem para as quadrilhas, e o que fazer com aqueles que já fazem parte delas?
Gen. Munguía – Em primeiro lugar, é preciso controlar as regiões para impedir que os criminosos dominem uma área, para que depois o governo possa entrar nesses locais com seus programas sociais. Estes programas sociais, na sua grande maioria, são orientados a resgatar os jovens em risco para que eles não entrem para as quadrilhas. Existem também planos de reabilitação e reinserção para aqueles que querem deixar as quadrilhas. Agora, como as leis penais juvenis são muito protecionistas quanto aos menores, as quadrilhas fazem uso de crianças para cometer os crimes. No país, atualmente, 90% dos crimes cometidos são de autoria de membros de quadrilhas e, entre eles, 60% são cometidos por crianças. Nossa sociedade, inclusive, está discutindo a possibilidade de reduzir a idade mínima para que uma criança criminosa seja tratada como um adulto.
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Por Marcos Ommati/Diálogo
Fonte:  http://www.dialogo-americas.com/index.php/article/1388/ 28/07/2010

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Se é importante fazer faculdade

Eduardo Jablonski*


Hoje, pouco antes de começar minha aula, ouvi aluna defendendo a seguinte opinião: “Para que fazer faculdade? Depois ficaremos obrigatoriamente desempregados. Todos os meus conhecidos que se formaram não trabalham na área.” Aristóteles que me perdoe, mas ela tem e ao mesmo tempo não tem razão. Pela minha experiência, acompanhando a carreira de centenas e até milhares de pessoas nos últimos 20 anos, concluo que as pessoas graduadas com nível superior se dividem em três grupos.

O primeiro abriga os relapsos, os que não gostam de estudar, os que faltam muitas aulas, os que copiam trabalhos de colegas ou da internet, os que não prestam atenção na fala do professor, os que não leem a bibliografia solicitada, os que não pesquisam, os que não procuram livros sobre a matéria, para tentar se aperfeiçoar, os que faltam às aulas quando há palestras. Esses caras jamais conseguirão trabalhar na área na qual se formaram. Se arranjarem vaga, será com certeza por tempo reduzido. A incompetência os demitirá. Sei de jornalista de meio impresso que acha que repórter não precisa dominar a gramática da Língua Portuguesa. É por pensar assim que ele, em 15 anos de profissão, tendo se formado em grande universidade, nunca obteve espaço em grandes jornais.

O segundo grupo engloba pessoas que fazem tudo pela metade. Estudam um pouco, leem alguma coisa, prestam atenção no professor, têm alguma assiduidade. Mas não são dedicados, não se esforçam tanto quanto seria necessário, não suam sangue para obter promoções ou empregos importantes. Esses indivíduos vão trabalhar na área, sim, mas não atingirão os melhores postos, a não ser por milagre ou por amizade.

O terceiro grupo envolve os estudiosos, os que leem a respeito do campo que escolheram o tempo todo, os que passam a madrugada sobre os livros, os que estudam regularmente e, quando necessário, param tudo para estudar ainda mais. Esses homens e mulheres serão os vencedores de amanhã. Talvez nunca fiquem desempregados.

Conheço dezenas e até centenas de casos em cada um desses grupos e nunca vi exceção. Abri essa alternativa, porque não sou o dono da verdade. Posso estar equivocado. Mas, concluindo, não é verdade que não adianta estudar, que é perda de tempo. Quem se dedica se dá bem, e quem não se dedica se dá mal. É simples assim. A verdade em geral é simples.
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* Professor
Fonte: Zero Hora online, 30/07/2010

As curvas do tempo

Seis premiados escritórios de arquitetura de gerações diferentes projetam
como serão os espaços onde
as pessoas vão viver e trabalhar daqui a duas décadas.

Andrade Morettin Arquitetos


"Uma das coisas que marcam nossas vidas de forma inesquecível são as casas onde moramos." O enunciado, de aparência simples, está registrado no livro "As Curvas do Tempo", de Oscar Niemeyer. Nesse aspecto, somos todos seus pares: ao exercício da memória qualquer pessoa, de qualquer profissão, pode se dedicar. Mas imaginar como serão os espaços que habitaremos daqui a 20 anos é tarefa para quem faz do traçado das moradias (e das cidades) uma atividade cotidiana. A convite do Valor, seis premiados escritórios de arquitetura dedicaram-se a essa tarefa, que se estende ainda aos territórios do lazer e do trabalho. Compondo a empreitada, Ruy Ohtake, Marcio Kogan, Arthur Casas, Athié Wohnrath Associados, Andrade Morettin Arquitetos e FGMF lançam projeções que sinalizam espaços fluidos em cidades que alguns veem como replicadas cidadelas medievais, outros como a extensão da casa, palco finalmente aberto à prática da cidadania.
Nelson Kon
Marcelo Morettin e ...

Por força do ofício, todos pensam adiante. "Um projeto tem que ter certa perenidade, precisa durar 30, 40 anos", afirma Ruy Ohtake, aos 72 anos um dos mais respeitados arquitetos brasileiros, autor de obras que transformaram o perfil de algumas cidades, como o Hotel Unique, em São Paulo. Há 29 anos, ele elegeu o flat como moradia ideal, que lhe permite viver de forma despreocupada com relação à administração doméstica, sem lavanderia e com uma cozinha reduzida a uma geladeira que, no seu caso, tem como principal função armazenar água. Para todo o resto ele se serve da estrutura local, com camareiras, serviço de restaurante e o que mais for preciso, como em qualquer residência que mereça esse nome.

Os flats chegaram ao Brasil nos anos 70, oferecendo um estilo de vida prático e, para algumas pessoas, um tanto impessoal. No caso de Ohtake, oito unidades de um desses edifícios foram convertidos em um único apartamento que, embora não tenha sequer um prato, se pode chamar de lar. As obras de arte distribuídas pelos ambientes - sala, escritório e três quartos (um para ele, dois reservados às visitas dos dois filhos) - contribuem para essa atmosfera, transformando os percursos internos em uma espécie de fruição.
Nelson Kon
...Vinicius Andrade propõem, no projeto acima,
 que as cidades restabeleçam a relação entre o indivíduo
e o espaço público, favorecendo a criação de ambiente urbano diversificado:
intervenção de alta densidade com módulos autossuficientes baseados
em infraestruturas públicas para transporte,
produção alimentar e de energia limpa

Pela própria e feliz experiência, Ohtake afirma que esse conceito estará ainda mais forte em 20 anos, mas leva a questão da moradia do futuro, ao lado de vários de seus colegas, para outro espaço físico. As principais mudanças, aquelas capazes de fazer uma diferença fundamental no modo como vivemos e trabalhamos, começariam do lado de fora das casas e dos escritórios - precisamente nas ruas, em um raciocínio que dá voltas sobre si mesmo numa lógica perversa. A violência urbana fez que os muros crescessem, isolando as calçadas. Vazias, privadas de seus habitantes, elas se tornam espaços perigosos. Para nos proteger desse perigo, acrescentamos ainda mais altura às paredes que nos isolam. Nessa escalada em direção ao alto está o que o arquiteto Marcio Kogan, de 58 anos, chama de "camadas arqueológicas".

Com seu olhar acurado, Kogan enxerga em vários muros a história social de São Paulo. Acima de pequenas muradas de pedra das décadas de 40 ou 50 o arquiteto nota um segundo muro, que subiu mais 1 metro. Acima dele, já com outros materiais, nova camada se eleva. Coroando a obra, há quem acrescente uma armação metálica espiralada, que remete a um campo de concentração.

Longe de aprovar as fortificações, Kogan acredita que o futuro reserva, para quem puder pagar por eles, espaços privados cada vez mais completos, com garagem para vários carros, cozinhas-gourmet, salas de som e vídeo e muito conforto. A necessidade de incorporar o lazer aos ambientes domésticos tem um responsável: a nossa "pobre vida pública", como diz. Seus projetos residenciais, estampados nas melhores publicações especializadas em arquitetura mundo afora, já reúnem tudo isso, tendo na estética excepcional bem mais do que um bônus, mas o alimento necessário a uma vida que transcorre entre as paredes de casa.

Athié Wohnrath Associados



Convencido da ineficácia dos muros altos, Kogan não consegue demover seus clientes dessa forma de isolamento. No fim do túnel, em 2030, o que se encontrará é a multiplicação dos condomínios fechados, verticais e horizontais, "guetos inexpugnáveis que não guardam nenhuma relação com a cidade, que a negam". Muitos dos edifícios residenciais de hoje oferecem salão de beleza, pet shop e até pista de boliche. Diferentes dos flats, que simplesmente se encarregam da organização doméstica, eles criam simulacros de cidade, tirando ainda mais as pessoas do espaço que devem ocupar: as ruas.

Divulgação
O trabalho conjunto, com pessoas presentes e
conectadas entre si nunca vai acabar,
projeta o arquiteto Sérgio Athié:
a área de trabalho ajuda a disseminar a cultura de uma empresa

Kogan traz à tona um exemplo de atuação positiva de administração que considera "quase local": a Colômbia. Lá, o poder público vem dando corpo a obras em que a arquitetura entra como protagonista, com praças, bibliotecas e outras edificações sempre integradas ao entorno. São ações que têm ajudado a diminuir os índices de violência daquele país. "E estamos falando de Bogotá, de Medellín, não de Berlim", afirma. Pessimista assumido, não acredita que a administração pública no Brasil se empenhará em empreendimentos que tornem as ruas mais seguras e propiciem lazer fora de casa.

Ainda assim, há quem aposte em cidades menos sitiadas. "A necessidade de usar a cidade pode fazer que ela melhore", diz Rodrigo Marcondes Ferraz, que compõe com Lourenço Gimenes e Fernando Forte o premiado escritório de arquitetura FGMF. Jovens, todos com 33 anos, são críticos tenazes das casas-fortaleza. Lourenço Gimenes é categórico: "Quanto mais você se fecha, mais violência atrai".

Os muros, aparentemente intransponíveis, uma vez transpostos prestam-se mais ao invasor, que fica isolado para fazer o que bem entender. O sobrado de esquina no bairro paulistano da Vila Madalena, onde eles estabeleceram o escritório, é uma inversão da velha máxima "diga o que eu digo, mas não faça o que eu faço". Os muros frontal e lateral foram eliminados. O que era um corredor estreito e sem função é agora uma área gramada onde os moradores do bairro podem aproveitar a sombra ou bater um papo.

Fortes, Gimenes & Marcondes Ferraz arquitetos

Antes de se instalar ali, o trio tinha em vista outra casa, de espaço maior e preço menor, em um bairro que os obrigaria a usar o carro cada vez que quisessem tomar um café ou comer um pão de queijo. Não foi um dilema bater o martelo no sobrado de esquina. O ideal modernista de cidades zoneadas, com espaços delimitados de trabalho, moradia e lazer, teria se revelado um equívoco.
Gustavo Lourenção/Valor
Lourenço Gimenes,...

"A grande questão que o mundo hoje discute é como as pessoas podem estimular o uso misto na edificação, na quadra e, por extensão, na cidade", diz Gimenes. Basta pensar no Conjunto Nacional, na avenida Paulista, um dos mais bem-sucedidos exemplos de uso misto de São Paulo, com uma torre residencial e uma galeria no térreo oferecendo lazer e compras. Inaugurado em 1956 com projeto de David Libeskind, o Conjunto Nacional conheceu períodos de decadência antes que as pessoas entendessem o conceito e lhe atribuíssem a função para a qual, afinal, ele foi concebido.

"O Libeskind já tinha sacado tudo na década de 50", afirma Ohtake. "O projeto é sensacional, não só por ser um programa misto, mas porque é totalmente franqueado ao público", elogia Vinicius Andrade, sócio de Marcelo Morettin no escritório que leva os sobrenomes da dupla de 42 e 41 anos, respectivamente. Kogan também gostaria de ver mais edifícios mistos, comuns em cidades como Nova York. Acrescentem-se Paris, Londres, Madri e Barcelona. "As cidades para onde gostamos de ir são extremamente multifuncionais", diz Gimenes.

Gustavo Lourenção/Valor
...Fernando Forte e...

Assim, se alguns modelos propostos no passado já nos balizam para o que poderemos ver adiante, é ainda mais fácil prever como o interior de casas e apartamentos terá se modificado. E um fator parece irreversível para uma parcela considerável da população: a área útil. Os espaços serão menores por uma razão simples: estarão cada vez mais caros. Como lembra Ruy Ohtake, esse é o histórico de todas as grandes cidades americanas e europeias. Se as áreas serão menores, as plantas terão forçosamente que mudar, tornando as moradias mais fluidas.

"Não se pode apenas reduzir a escala, colocar uma planta de um apartamento de 100 m2 em uma copiadora e dar um comando para diminuir 10% ou 20%", brinca Marcondes Ferraz. Gimenes resume a questão: teremos que trocar espaço por qualidade de espaço. Um apartamento de 60 m2 nunca comportará quatro suítes. Tudo estará mais interligado, sem tantos compartimentos. Passou o tempo em que qualquer casa tinha empregada, babá, passadeira. Enquanto esses funcionários desapareciam, a estrutura familiar mudava radicalmente. Vimos crescer o número de solteiros. Vimos nascer uma nova estrutura que ganhou sigla: os "dinks" ("double income, no kids"), formados por casais hetero ou homossexuais sem filhos e com uma boa (e dupla) renda.

Gustavo Lourenção/Valor
...Rodrigo Marcondes Ferraz,
trio de arquitetos de 33 anos da FGMF,
projetaram um cubo conceitual que reflete a fluidez dos espaços

Em 2009, o FGMF foi o primeiro escritório brasileiro a ser incluído no Architects Directory da prestigiada revista "Wallpaper", que elege todo ano os 30 talentos mais promissores do mundo. O projeto enviado pelo trio consistia em uma casa de 70 m2 formada por um eixo central fixo, concentrando cozinha e banheiros, e quatro módulos (dois quartos e duas salas) que rotacionavam assumindo diversas configurações, deixando a casa mais aberta ou mais fechada, conforme a vontade do morador, ou conforme o tempo.

Acostumados que estamos ao esbanjamento de um privilégio - os grandes espaços -, pode soar estranho pensar em metragens mais exíguas. Moradores de cidades como Paris ou Nova York vivem em pequenos apartamentos, o que não representa uma privação, já que fazem uso bom e frequente dos espaços públicos. Independentemente da metragem, o mercado imobiliário já começa a procurar novos arranjos, mas nem a demanda por eles pode ser chamada de significativa nem esse mercado sabe expressar muito bem no que consiste essa nova visão. "Às vezes nos pedem um prédio 'moderno'", conta Vinicius Andrade. "Moderno? Um prédio dos anos 50?", diverte-se.

Se falta ao mercado o repertório, já é positivo o fato de que os bons escritórios, com arquitetos de formação sólida, estejam sendo procurados como parceiros e não como finalizadores das obras ou seguidores de receitas já testadas. Se ainda não está muito claro o que substituirá os enfadonhos modelos neoclássicos, alguma coisa já se pode prever: o conceito abstrato de "sofisticação", ao qual dá ênfase a maioria dos empreendimentos imobiliários, terá que incorporar outro substantivo: flexibilidade. E isso não se limita à escolha, pelo morador, de dois ou três modelos de planta, opção que esse mercado já oferece.

Studio Arthur Casas


Estudo para a casa do futuro de Arthur Casas

O Andrade Morettin Arquitetos, responsável pela reforma da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, soma vários projetos em que as estruturas são pensadas com vista a modificações futuras, como a derrubada de uma ou mais paredes. Essa seria uma forma de acomodar as famílias em fases diferentes de vida ou permitir que um novo morador se instale da forma que lhe for mais conveniente. A tecnologia terá se incorporado definitivamente às casas e aos escritórios. As automações ficarão mais acessíveis, ajudando a economizar energia. "E alguns abusos serão depurados, como acionar a sua banheira pelo celular", afirma Morettin.

Ana Paula Paiva/Valor
Arthur Casas: espaços serão mais integrados e maiores,
não só para acomodar um telão 3D,
mas para reservar uma área em que se possa estar só,
lendo ou contatando um amigo pela internet

A grande revolução, de acordo com o escritório, será mais social, menos tecnológica. Voltamos à questão: "O espaço público vive uma crise há anos", diz Vinicius Andrade. "A onda verde pode ajudar a reverter esse quadro. As pessoas começam a entender que o planeta é o maior bem comum, é o espaço público por excelência." Também para eles "a lógica do medo inverteu a lógica urbana". Morettin resgata o "flâneur", o personagem que percorre as ruas nas páginas baudelairianas, despreocupado e boêmio, que ele gostaria de ver para além da literatura, nas nossas calçadas e praças.

Ambos concordam que a casa deveria ser uma retaguarda para que se pudesse viver bem nas cidades e acreditam que há indicadores dessas mudanças, a começar pela implementação do plano de transportes, no caso de São Paulo. Ohtake também se mostra otimista com relação a isso. Com um transporte coletivo eficiente, linhas de metrô articuladas numa rede maior, e não com estações isoladas como vemos hoje, teremos um fluxo intenso de pessoas.

As saídas das estações tenderiam a transformar o entorno em pontos de convivência. Ninguém duvida da extrema necessidade desse tipo de transporte inaugurado em Londres em 1863. Mas estamos muitos quilômetros distantes do ideal. Em São Paulo, a primeira linha foi entregue em 1974. A cidade tem hoje menos de 70 km de malha metroviária na capital paulista. Novamente, Kogan recorre a um exemplo próximo: a Cidade do México.

De dimensões semelhantes às de São Paulo, a capital mexicana deu início à construção de seu metrô quase na mesma época, em 1969. Os habitantes já dispõem de 177 km de linhas. Em São Paulo, o carro parece ser, ainda, um sonho de consumo. "Em dez anos a cidade viverá o caos", diz Kogan.

É nessa cidade caótica que Arthur Casas, autor de projetos como o Shopping Cidade Jardim, o mais luxuoso de São Paulo, projeta a casa de 2030. "Não haverá mais a necessidade dos encontros." Os espaços serão mais integrados e maiores, não só para acomodar uma grande tela 3D, que substituirá o Skype, com sua tela pequena e chapada, mas para reservar uma área em que se possa estar sozinho, lendo ou contatando um amigo pela internet, por exemplo.

Essa casa estará fora da cidade, em subúrbios relativamente pequenos, semelhantes aos americanos. Os centros urbanos terão se reduzido a dormitórios para quem vive sozinho. Com escritório em São Paulo e Nova York, o arquiteto de 48 anos gostaria de já ter diminuído as reuniões com clientes, usando, em casa, o computador. "As pessoas resistem, elas querem o contato físico", diz em tom de queixa. Ainda assim, imagina um futuro em que os colegas de um escritório se encontrarão, talvez, uma vez por semana.

Um espaço que serve ao mesmo tempo para moradia, trabalho e lazer está de alguma forma delineado também nas ideias de Ohtake, FGMF e Marcio Kogan. Uma diferença fundamental as separa do ideal de Casas: para eles, não se pode decretar o fim dos encontros. Aos 51 anos, mais de 20 deles dedicados à arquitetura corporativa, Sérgio Athié, do Athié Wohnrath Associados, é enfático ao dizer que o trabalho conjunto, com pessoas presentes e conectadas entre si, nunca vai acabar, até porque a área de trabalho ajuda a disseminar a cultura de uma empresa.

Nos escritórios de um futuro não muito distante, a videoconferência, que hoje permite reuniões remotas, já terá sido substituída pela telepresença - como se a pessoa que está no bairro vizinho ou em Tóquio simplesmente se materializasse à sua frente. A tecnologia já existe, mas o custo ainda é proibitivo. É preciso investir algo em torno de R$ 1,5 milhão para equipar uma sala de telepresença, de acordo com o arquiteto. A empresa com a qual se fala deve dispor da mesma tecnologia. Há que se acrescentar um custo estratosférico de conexão. Em 20 anos, a telepresença já terá valores que a tornem mais corriqueira.

Pensar no passado é sempre um bom exercício quando se projeta o futuro. Há apenas 15 anos, os espaços corporativos mostraram um primeiro sinal de mudança, quando as salinhas cederam lugar a espaços abertos em que as divisões se davam por baias. As primeiras subiam até 1,80 m. Hoje, elas praticamente desapareceram. "Isso só aconteceu porque as empresas precisavam colocar mais funcionários em áreas menores", diz Athié.

Só depois elas perceberiam que manter as pessoas em contato trazia benefícios. Falando de assuntos genéricos, as pessoas tendem a acabar conversando sobre um assunto comum: o trabalho. E aí podem surgir as boas ideias. Hoje, mesmo empresas que não costumam receber clientes estão mais abertas às mudanças e preocupadas em criar ambientes flexíveis que sejam agradáveis para o funcionário, com luz natural, conforto térmico, boas áreas comuns e elementos da vida cotidiana, como obras de arte.

Proporcionar esses espaços saudáveis não é uma boa ação feita pelas empresas, mas uma questão estratégica. Eles são decisivos para manter o funcionário e pesam até mais do que o salário, especialmente para as novas gerações. "O custo de contratar e demitir um funcionário é altíssimo", afirma Athié. Na época das salinhas, as pessoas dispunham apenas de uma pequena copa para fazer uma pausa.

O objetivo era justamente não permitir que se perdesse tempo no cafezinho. Agora se sabe que esse tempo perdido é, na verdade, tempo ganho. Hoje, as áreas comuns chegam a 40% do layout nos projetos feitos pelo Athié Wohnrath. Nas salas de reunião, sai a figura do líder que ocupa a cabeceira, como os antigos patriarcas nas antigas casas, e entram os funcionários democraticamente distribuídos ao redor de uma mesa redonda, em um ambiente pensado para a troca e a colaboração. Trabalhar em casa, como se imaginou anos atrás com os alardeados "home offices", foi uma promessa que não se cumpriu.

Há três anos, a Vitra, fábrica de móveis sediada na Suíça e referência mundial em design, pediu a alguns arquitetos a sua visão do ano de 2027 ou 2029 - Marcio Kogan entre eles. Depois de se reunir com a equipe, Kogan chegou a uma espécie de ficção que mostrava a periferia vasta como um oceano, muito distante dos centros urbanos, com sobradinhos envoltos em membranas que teriam a capacidade de controlar temperatura, umidade, odores e até conexão "wireless". Ele sabia que a Vitra esperava um projeto de contornos e materiais futuristas, mas preferiu mostrar o cenário que vislumbra - e é desolador. No texto com atmosfera de ficção científica, criado por ele para acompanhar as imagens, o personagem que narra a história é um computador apaixonado pela moradora, que divide a casa com o marido. "Veja só, uma história ambientada em 2029 e o homem trabalha em casa. A ideia já está ultrapassada", ironiza.

Seja qual for o modelo que o futuro nos reserva, convém sermos cuidadosos, já que, como destacou Niemeyer, a casa marca nossa vida. Em "As Curvas do Tempo", o arquiteto continua: "Pela memória vou recordar a casa das Laranjeiras, percorrê-la outra vez, lembrar como nela vivíamos, rindo ou chorando, como o destino obriga".
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Por Cristina Dantas, para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 30/07/2010