quarta-feira, 28 de julho de 2010

A lealdade de Manning

Mauro Santayana*


Os documentos dos crimes cometidos no Afeganistão pelos norte-americanos e seus aliados, divulgados pela organização WikiLeaks e reproduzidos por três dos mais importantes jornais do mundo, não nos chocam tanto por sua crueza quanto pela repetição banal da insânia. Não há muito de novo nas guerras: elas sempre nascem da ânsia de poder, esse companheiro inseparável do medo. São sentimentos que se alimentam mutuamente: o medo exige mais poder; o poder gera mais medo.

Os norte-americanos, desde a guerra de expansão contra o México e da conquista das Filipinas, procuraram superar seus mestres ingleses na crueldade contra os débeis. Em Hiroshima e Nagasáki foram práticos, usando a mais mortífera das armas: os que morreram, morreram logo; os que sobreviveram guardaram, nas cicatrizes externas e internas, a advertência de que haviam sido vencidos por titãs vindos do inferno, senhores do terror e servidores da morte.

O assunto nos leva à pergunta: o soldado Bradley Manning, de 22 anos, que, aproveitando-se de seu trabalho, levantou os 91 mil documentos e, segundo Washington, os repassou, é traidor ou herói? A que qualquer homem deve sua lealdade maior: ao governo de seu país, à causa que o move, ou à Humanidade, em seu valor universal? Para Sócrates, a grande lealdade era para com a lei, mesmo que a lei fosse injusta; para a maioria dos homens, a lealdade maior se deve à pátria. Mas o sentimento generoso da pátria é conspurcado pelos promotores das guerras – como é o caso do complexo industrial-militar dos Estados Unidos. É em nome dessa “pátria” que os jovens americanos morrem ingenuamente.

Graham Greene tem instigante estudo sobre o conceito de lealdade, a partir da vida de seu amigo Kim Philby, que enganou a Inglaterra durante mais de 30 anos, convencido de que servia à Humanidade, serviu à ideologia socialista e ao sistema soviético.

O alicerce mais firme do poder é o segredo. Não há poder sem segredos, muitas vezes desnecessários, mas sempre convenientes. É velho como o mundo o conflito entre a comunicação e o sigilo. Manning será visto como traidor pelos interesses norte-americanos que movem as guerras e com elas se enriquecem. Seus companheiros que enfrentam a morte, todos os dias, no Afeganistão, no Iraque e em outros lugares, gostariam que a agressão e seus crimes cessassem, para que pudessem voltar às suas famílias com o sorriso da alegria e os olhos da paz. Regressar não como heróis, nem mártires de uma mentira, cobertos de tristes glórias, mas como simples e reais seres humanos. O jovem Bradley Manning, prisioneiro fora de seu país, provavelmente será julgado e condenado pela revelação de segredos de Estado. Mas não há mistério na ação militar e política dos Estados Unidos. Eles sempre repetem os mesmos atos de violência que encobrem as ações de saqueio.

Na Nicarágua, de Sandino; na Guatemala, de Arbenz; em El Salvador, do bispo Oscar Romero; e no Vietnã – sem falar em dezenas e dezenas de agressões em outros países indefesos – os ianques atuaram sem limites. Seus crimes no Vietnã sobreviveram aos próprios assassinos. O solo continua envenenado pela dioxina do “desfolhante laranja”, que é assimilado pelas plantas nele cultivadas. Kennedy, Lindon Johnson e Nixon já se foram, mas as crianças continuam a nascer com o pavor na face, orelhas no lugar dos lábios, esqueletos de batráquios com olhos de ciclope, braços e mãos pendentes da cintura, testemunhas de acusação diante da História. Mas, com toda sua deformação, são menos monstruosas do que os que agrediram seu povo.
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*Jornalista
Fonte: JB online, 27/07/2010

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