segunda-feira, 19 de julho de 2010

Lula pede, mas UE não quer prazo para acordo com Mercosul

Entrevista: O belga Herman Van Rompuy atua desde janeiro
como o articulador político do bloco europeu

A nova cara da UE: o belga Herman Van Rompuy (foto),
 presidente do Conselho Europeu, o principal órgão político do bloco

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse anteontem, em Brasília, que gostaria de concluir o acordo de livre comércio UE-Mercosul ainda no seu mandato. Ontem o presidente do Conselho Europeu, o belga Herman Van Rompuy, se mostrou cético quanto a essa possibilidade. "Nunca trabalho com prazos rígidos, pois essa é a melhor maneira de fracassar", afirmou em entrevista exclusiva ao Valor.

Van Rompuy também contestou o apelo de Lula para que a Europa mantenha os gastos de estímulo fiscal. Contra essa visão keynesiana, ele contrapôs sua visão "ricardiana", de que o importante neste momento é recuperar a confiança nos governos. Isso faria com que o setor privado volte a gastar, compensando a redução da demanda pública.

Ele confirmou que Brasil e UE estão negociando uma posição conjunta para a cúpula do clima de Cancún, em dezembro. Mas foi categórico ao afirmar que não haverá acordo final este ano. A estratégia global contra as mudanças climáticas ficará para 2011.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Valor: Fora da UE, poucos conhecem a sua função. O que o sr. faz?
Herman Van Rompuy : O meu trabalho é simples: eu presido o órgão mais importante da União Europeia, o Conselho Europeu. Isso não significa que sou o homem mais importante. O conselho é composto por 27 membros, chefes de Estado ou de governo. Sua principal função, segundo o Tratado de Lisboa, é dar as diretrizes mais amplas, não só em economia mas também em relações exteriores. E dar ímpeto à união.

Valor: O sr. pode dar um exemplo do que mudou na prática na UE?
Van Rompuy: O Tratado de Lisboa inova, entre outras coisas, em duas questões. O Conselho Europeu, que já existia, tornou-se uma instituição formal. E, em vez de ter um presidente rotativo, que mudava a cada seis meses, criou-se um presidente permanente, por dois anos e meio. É possível ter um segundo mandato, chegando então a um máximo de cinco anos no cargo. Isso é totalmente diferente, pois muda muito ter uma Presidência de seis meses e uma de dois anos e meio. A função agora dá mais continuidade, mais coerência ao cargo.
Tomamos, por exemplo, a decisão sobre mudança climática, a "20, 20, 20": 20% de economia de energia, 20% de redução das emissões até 2020 (em relação a 1990) e uso de 20% de biocombustíveis no transporte. Isso é uma nova estratégia econômica para um novo crescimento econômico.

Valor: Ontem o sr. repetiu em Brasília essa meta de corte de 20% das emissões e a proposta de corte de 30% caso outros países acompanhem. Mas hoje, ministros dos três maiores países da UE, Alemanha, França e Reino Unido, publicaram um artigo defendendo o corte unilateral de 30%. Isso não confunde as pessoas de fora da UE?
Van Rompuy: Por quê? O presidente dos EUA tem uma opinião sobre mudanças climáticas. Já o Congresso americano tem outra. Isso não é confuso? Tomamos uma decisão no Conselho Europeu [de cortar 20%]. Claro que isso é uma posição de negociação, e alguns países estão defendendo ir além, cortar 30% unilateralmente. Outros estão mais hesitantes.
Se não houver avanço nas negociações climáticas, então podemos decidir ir além unilateralmente. Para isso precisamos fazer uma avaliação entre economia e ecologia. Estamos fazendo uma nova pesquisa, sobre o impacto para os países-membros individualmente. No Leste Europeu há economias mais frágeis. Não excluo que, se o resultado desses estudos for positivo e as negociações [climáticas globais] não estiverem indo na direção certa, então poderíamos ter esse tipo de atitude, de ir adiante unilateralmente, se todos [os países da UE] estiverem de acordo.

Valor: Nesse caso, é preciso consenso na UE ou a decisão pode ser tomada por maioria, como agora é permitido pelo Tratado de Lisboa?
Van Rompuy: No Conselho Europeu, nosso objetivo é sempre chegar a um consenso. Uma das minhas funções é manter a UE o mais unida possível, e essa é uma questão-chave, não só para a UE, mas para a humanidade. É muito importante ter um consenso nesse tipo de assunto.

Valor: Isso será definido antes da cúpula do clima de Cancún?
Van Rompuy: Não. O processo de negociação iniciado em Copenhague será longo. Cancún será um passo importante, mais ainda assim um passo nas negociações de mudança climática. Nós da UE continuamos ambiciosos, queremos um acordo legalmente vinculante, fizemos a maior oferta de corte de emissões, fizemos a maior oferta de ajuda financeira para mitigar os efeitos da mudança climática. Mas ao mesmo tempo somos realistas: não teremos um acordo legalmente vinculante no final do ano em Cancún. Esperamos que em 2011 possamos ir para a fase final das negociações.

Valor: Brasil e UE negociam uma posição comum para Cancún. Isso vai acontecer?
Van Rompuy: Vamos tentar. O presidente Lula fez essa proposta em Madri, na cúpula com os países latino-americanos. Nós dissemos aqui que estamos abertos a isso. Vamos ver. Temos um posição parecida, já que o Brasil também é ambicioso. Obviamente o Brasil faz parte do Basic [grupo formado por Brasil, África do Sul, Índia e China] e terá de buscar uma posição que não seja antagônica com a dos demais países. Não acho que o Brasil vá quebrar a solidariedade com os demais membros do Basic.

Valor: Lula disse anteontem que gostaria de concluir o acordo de livre comércio UE-Mercosul até o final de seu mandato. Dá tempo?
Van Rompuy: Sou um político muito experiente e nunca trabalho com prazos rígidos, pois essa é a melhor maneira de fracassar. Será o quanto antes. Estamos negociando, é a Comissão Europeia que dá coerência a isso, mas ela deve levar em conta os interesses dos países-membros da UE.

Valor: Lula disse que o problema é a França e que falaria com o presidente Nicolas Sarkozy. A França é realmente o problema?
Van Rompuy: Bem, nós vamos falar antes com o Sarkozy [risos]. Afinal, nós somos a UE. É claro que esse tipo de negociação é difícil, mas é factível. A Comissão e eu corremos um risco em Madri, pois relançamos as negociações. Há muita oposição dentro da UE. A Comissão é responsável pela negociação. Avaliaremos o resultado ao final.

Valor: Com a crise atual, há clima na UE para vender um acordo comercial à opinião pública?
Van Rompuy: Nesses assuntos, não é a percepção que importa, mas sim qual o resultado final. Entre o começo e o fim das negociações, deve-se ouvir toda a audiência possível. Mas o resultado final é que conta e, se ele for bom, então as pessoas ficarão satisfeitas.
No caso do acordo com o Mercosul, a questão sensível é a agricultura, e não se trata tanto de se há ou não recessão, mas sim de um problema mais estrutural. Não acho que a recessão tenha um papel tão grande nesse caso. Em maio fechamos acordos com a Colômbia e o Peru, que não foram negociações fáceis. Não é a primeira vez que negociamos em circunstâncias difíceis. Vamos conseguir.

Valor: Com os países europeus adotando duros cortes de gastos, o sr. vê alguma chance de a UE reduzir os subsídios à agricultura?
Van Rompuy: Teremos de estabelecer a chamada nova perspectiva econômica para a UE, que vai vigorar de 2014 a 2020. Dentro disso, vamos reconsiderar o papel dos gastos com agricultura. Não espero grandes mudanças na Política Agrícola Comum, mas ainda é muito cedo. A Comissão vai preparar as propostas em 2011, e o debate vai começar em 2012.
A questão mais importante para o comércio internacional são os subsídios à exportação, e abolimos quase todos. Acho que todos os grandes países ajudam de alguma maneira o seu setor agrícola, pois é um setor muito específico, com alta volatilidade de preços, e a segurança alimentar é um dos principais objetivos de segurança dos países. É preciso levar em conta que a agricultura é uma das poucas políticas comuns, desde o começo da UE, mais de 50 anos atrás.
Se você olhar o orçamento da UE, realmente 40% é gasto com agricultura. Mas esse orçamento representa só 1% do PIB da UE. Assim, é uma percepção errada achar que estamos gastando muito dinheiro apoiando nossa agricultura. É um grande percentual, mas de um orçamento baixo.

Valor: Lula repetiu o apelo para que os países ricos mantenham o gasto público para estimular a economia. O que o sr. disse a ele?
Van Rompuy: Não creia que nossa política está em contradição com o crescimento econômico. Sei que no Brasil há preocupação com o que a Alemanha está fazendo. A Alemanha tem déficit orçamentário de cerca de 5%, o que é alto para os padrões alemães. Em 2010 eles vão manter o déficit nesse nível. Começarão a reduzi-lo em 2011, no segundo ano da recuperação econômica. Vão reduzir gradualmente até 2016, quando precisam equilibrar o orçamento, por uma exigência constitucional. Mas eles vão reduzir o déficit em cerca de 0,5% por ano, o que é bem gradual.
Acho que isso ajuda o crescimento. Há duas visões sobre isso na teoria econômica. Existe a visão keynesiana, de que o déficit orçamentário ajuda o crescimento econômico, pois estimula a demanda. Mas há outra visão, a ricardiana, que diz que as pessoas temem os déficits, pois os déficits de hoje são os impostos de amanhã. Isso certamente vale para a Europa. Sob essa perspectiva, as pessoas começam a poupar antecipadamente, o que não só não aumenta, como acaba reduzindo a demanda. A confiança, nesse caso, é a chave. Se os consumidores acreditarem que os governos têm o déficit sob controle e que vão reduzi-lo, há um repique da confiança e eles não precisam poupar por precaução. Posso garantir que isso funciona assim.
O que a Europa está fazendo é uma consolidação fiscal gradual, diferenciada de país para país, e que estimula o crescimento, pois atua cortando gastos, e não elevando impostos. Essa é a nossa estratégia de saída, que é totalmente defensável, mesmo do ponto de vista do crescimento econômico.
Do outro lado, temos uma política monetário expansionista, de juros baixos, bem mais baixos que os do Brasil. Há críticos que dizem que é muito expansionista, com o que não concordo.

Valor: A crise do euro preocupa?
Van Rompuy: Reagimos bem à crise. Estamos de volta nos trilhos, o déficit da Grécia está caindo rapidamente, mais do que esperávamos. Montamos um pacote de ajuda nunca visto na história da politica monetária, de 715 bilhões, com fortes condicionalidades. É uma rede de segurança, caso seja necessário. Esperamos que não seja. Então começamos a consolidação fiscal, não só na Grécia. O próximo passo para restaurar a confiança será no setor bancário, com o teste de stress. Se alguns bancos precisarem de mais capital, eles terão de tomar a decisão [de se capitalizar] imediatamente. Poderá ser com capital privado ou público. Temos recursos suficientes. Mas primeiro temos de esperar o resultado dos testes. Isso é mais um passo na retomada de confiança, o que leva tempo. E para recuperar a confiança, não bastam palavras e declarações, mas sim fatos e números. É o que estamos fazendo.
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Por Humberto Saccomandi, de São Paulo

Fonte: Valor Econômico online, 18/07/2010

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