“As Bem-aventuranças, todas juntas, são o amor.
E o amor cristão é um paradoxo completo.
É o impossível por excelência e, ao mesmo tempo, como diz Freud,
é a única resposta que está na altura
da violência humana.”
A opinião é do filósofo francês Jean-Luc Nancy,
em entrevista a Élodie Maurot,
publicada no jornal La Croix, 23-07-2010.
A tradução é de Benno Dischinger.
Eis a entrevista.
Como soa, para você, de imediato, o texto das Bem-aventuranças?
Não é um texto que eu tenha o hábito de freqüentar. Digamos que o entendo principalmente como uma promessa de felicidade, mas que sempre contém o risco de ser uma falsa promessa. É certamente o texto bíblico para o qual me ponho imediatamente numa perspectiva crítica e desconfiada, porque as Bem-aventuranças tem todas aquelas características daquela palavra que dá alívio, que lapida as arestas, que elimina os obstáculos. Concentram, a meu ver, quanto há de difícil e de que suspeitar na mensagem cristã. Vê-se nas mesmas demasiado facilmente uma “boa vontade”, cheia de boas intenções que ficam longe daquilo que, com Kant, se pode definir uma “vontade boa”. As Bem-aventuranças colocam-nos sempre diante de um dilema: ou se trata de um pacote de boas intenções adocicadas, deveras edulcoradas, que procuram seduzir os leitores e os ouvintes com uma espécie de entorpecimento de sua vigilância, como um ópio dos povos particularmente poderoso, ou então se trata de algo radicalmente diverso...
O senhor trabalhou muito sobre a linguagem. É sensível à forma deste texto?
A grande característica do Evangelho é de ser um livro religioso que não contém muita doutrina. Um livro no qual a “doutrina” é inteiramente oferecida com palavras pronunciadas em certas situações. As Bem-aventuranças levam este paradoxo ao máximo. Estamos no cume do relato evangélico, no momento em que se poderia esperar um desenvolvimento doutrinal, mas, ao invés, a doutrina não chega. E Cristo pronuncia as Bem-aventuranças. Isso me faz pensar em Nietzsche que diz: “Se Cristo tivesse vivido mais tempo, teria abolido sua doutrina”. Nietzsche manifesta nisto suja profunda compreensão do cristianismo. Entendeu muito bem que o coração do cristianismo não consistia numa doutrina, mas numa vida. Este núcleo duro, ético, caso se queira (se esta palavra não for demasiado desgastada), não se deixa absorver pelas montagens teóricas, teológicas ou eclesiásticas. É um cerne muito resistente, enquanto a forma que assume é aparentemente frágil, narrativa, em vez de ser doutrinal, e seu conteúdo se situa inteiramente na doçura.
Isto permite entender de modo diverso este texto, do qual o senhor sublinhava agora a ambivalência?
As Bem-aventuranças, todas juntas, são o amor. E o amor cristão é um paradoxo completo. É o impossível por excelência e, ao mesmo tempo, como diz Freud, é a única resposta que está na altura da violência humana. Freud escreve isto logo após a Primeira Guerra Mundial, quando a violência se havia desencadeado sob seus olhos. Ali está todo o paradoxo: é uma resposta impraticável e, ao mesmo tempo, só aquilo resiste! As Bem-aventuranças levantam o problema do amor cristão e o amor põe imediatamente o problema de seu caráter “feliz”.
Como entende este “bem-aventurados”, “felizes”, que articula as bem-aventuranças?
O “felizes” ou “bem-aventurados” do Evangelho ressoa numa sociedade em estado de profunda desorientação. O mundo no qual nasce o cristianismo é um mundo que desmorona, que perde suas seguranças, que perde sentido, que é colocado diante de uma perdas geral dos seus pontos de referência. Um historiador da antiguidade, que Freud cita no seu Moisés, escreve a propósito daquela época: “Parece que uma grande melancolia se tenha apossado de todos os povos do Mediterrâneo”. Esta frase, tão surpreendente para um historiador, diz uma grande verdade. O mundo politeísta que desaparece é, de fato, um mundo no qual os deuses, também os maus, também os ameaçadores, estavam presentes por toda parte. Era um mundo no qual a gente se podia encontrar e orientar. Ao invés, a época da Roma imperial é um período de grande angústia e de grande abandono. O estoicismo e o epicurismo que se desenvolvem naquela época são, de resto, tentativas de responder a esta desorientação. Estóicos e epicureus são indivíduos atormentados que procuram desenvolver toda uma série de exercícios para preservar-se daquela desorientação, embora se resignando.
Qual é a felicidade aqui proposta?
O “bem-aventurados” do Evangelho não quer tanto dar felicidade ou satisfação, quanto indicar um caminho para sair da angústia. As Bem-aventuranças não designam felicidade, mas um comportamento, uma disposição geral da vida humana que foge ao mesmo tempo da angústia e da resignação.
Não é uma resposta que assume a forma de conselhos morais...
De fato, é um pronunciamento um pouco rítmico. É uma arenga, mas não só. É antes uma exclamação e, por conseguinte, uma celebração. “Bem-aventurado” significa aqui “glorioso”, “em glória”. É quase como dizer “santo”... As Bem-aventuranças “colocam em glória” aqueles aos quais elas são dirigidas. São uma celebração daqueles que estão nas disposições descritas. Não são conselhos ou indicações de comportamento deduzidas de princípios, mas é a afirmação que “é assim”. É muito interessante que não esteja no âmbito da exortação moral. Cristo celebra algo e cabe àquele que escuta tirar proveito disso. As Bem-aventuranças não estão ligadas a algum processo, a algum comportamento verdadeiramente prescrito. Dizem antes: há “algo” em vós, “algo” que sois e que deve ser celebrado; este “algo” é o Reino, é a saída da concatenação dos meios e dos fins, dos possuídos e da dominação. Como na parábola dos lírios dos campos.
“Bem-aventurados os puros de coração”, diz uma das Bem-aventuranças: o que significa para o senhor?
O termo grego, traduzido aqui com “puro”, remete ao adjetivo “límpido”. Como se diz da água que é pura ou límpida. Põe o acento na transparência. O texto grego diz, de resto, não “os corações puros”, mas “os puros de coração”. Ser puros “de coração” remete a outro modo de ser puros “de corpo”. Esta diferença impressiona imediatamente, sabendo-se a importância das purificações e dos ritos associados à pureza nas religiões antigas e no judaísmo. É preciso conectar esta Bem-aventurança com toda a tradição profética que critica os ritos e considera que a purificação dos corpos é insuficiente. Celebrar o “coração puro” cria uma diferença em relação à observância ritual.
Que elo vê entre ser um “coração puro” e “ver Deus”?
Nas religiões antigas, a purificação tem a função de libertar o homem dos elementos profanos para permitir-lhe aceder ao sagrado. É o primeiro gesto para dar um passo no espaço sagrado. Ora, aqui, a possibilidade de ver Deus não está ligada à permissão de aceder à ordem do sagrado, do separado, do proibido. Esta Bem-aventurança diz que Deus não é da ordem do sagrado, não se situa “do outro lado” de uma fronteira que seria preciso superar graças ao rito. Aquele que tem o coração puro é aquele que pode, graças à limpeza de seu coração, ver Deus.
"O amor remete àquilo que nós absolutamente não podemos agarrar.
Talvez isto é “ver Deus”. Não vê um ser atrás de outros seres,
mas ver que todo ser é absoluto,
incomensurável."
Como se Deus já estivesse presente, mas não reconhecido?
Quando o coração é purificado, vê Deus. Poder-se-ia dizer que a purificação do coração faz ver, por si mesma. Não faz ver algo que estava escondido, mas algo que antes não se via. É muito diverso. Não estamos aqui num desenvolvimento cultual. A purificação do coração produz sentido por si mesma. Não é o meio para aceder a outro [patamar], mas um modo para ver de maneira diversa. É uma abertura ao interior do “mundo”. O coração puro talvez seja “Deus” mesmo.
No seu ponto de vista, em que consiste a purificação?
As Bem-aventuranças fazem ressoar negativamente a grandeza, a potência, a riqueza, a violência do mundo. A purificação do coração é a purificação de todos os pesadumes, de todos os domínios e, no limite, de todos os significados do mundo. O “coração puro” é aquele que se mantém à distância de toda a máquina do mundo, o que não significa que se mantenha “fora” do mundo. Nem é atraído pela máxima recompensa que poderia consistir neste “ver Deus”, como forma de participação no poder ou no domínio, ligada ao desejo de ser admitido junto a Deus. Não se é “feliz” por uma recompensa, o que continuaria sendo da ordem do “mundo”, mas se é “feliz” de não estar encerrados “dentro”.
Sem dúvida, para compreender o que é um “coração puro” é preciso voltar àquele amor que consiste em ver o outro como outro. Trata-se precisamente de ver, isto é, de estar na relação, sem nada que se possa agarrar. Não se “vê” um objeto, se “vê” uma abertura, uma evasão em direção ao outro. O que requer o amor senão uma purificação do coração? Uma purificação das minhas expectativas, para que eu possa ver o outro como outro. É verdadeiramente através do cristianismo que o amor se torna este reconhecimento da absolutez integral da pessoa. O amor remete àquilo que nós absolutamente não podemos agarrar. Talvez isto é “ver Deus”. Não vê um ser atrás de outros seres, mas ver que todo ser é absoluto, incomensurável.
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Fonte: IHU online, 31/07/2010
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