Antônio Mesquita Galvão *
Em minha tese de doutorado em Teologia Moral, a respeito da misteriosa existência do mal ("Deus é bom. Então por que existe o mal?"), deparei-me com essa questão, indagando onde estaria o Criador quando atrocidades e acidentes da natureza ocorriam. Primeiro foi no "terremoto de Lisboa" (retratado no "Cândido", de Voltaire), depois nas tragédias de Auschwitz, onde milhões de judeus foram eliminados.
A filósofa Susan Neiman detecta com maestria que a empreitada da modernidade atinge seu impasse no Holocausto. Em sua obra "O mal no pensamento moderno" (Ed. Difel, 2002), Neiman afirma que se a humanidade perdeu a fé na natureza, em Lisboa, é provável que tenha perdido a fé em si mesma em Auschwitz, que foi conceitualmente devastador porque revelou uma possibilidade que se esperava não ver: seres humanos comportando-se como demônios.
Todas as discussões filosóficas sobre o assunto insistem no ponto de que as condições na Europa apontavam além da barbárie das câmaras de gás, mas para a falência ética da civilização. A questão "Deus onde estás?" parece um clamor desesperado de quem perdeu a fé. Mas não.
Recentemente o papa Bento XVI foi à Polônia e, corajosamente fez questão de visitar Auschwitz. Nessa visita, chocado com o que ali ocorreu, ele fez um desabado: "Onde estava Deus que permitiu tudo isto?". O local é tão tétrico que os visitantes chegam a sentir o cheiro de coisa queimada, mais de sessenta anos após o fechamento dos fornos crematórios. As reações da comunidade internacional mostram que o episódio não foi superado e que as feridas ainda estão abertas. Em termos de ética e valores a última palavra sobre o holocausto ainda não foi dita.
Sintomaticamente, alguns segmentos da mídia e dos grupos de ateus e de certas sociedades secretas atribuíram à fala de Ratzinger um vacilo na fé, pois um papa não poderia - segundo eles - duvidar da presença de Deus. Outros entenderam tratar-se de uma explosão emocionada de um ser humano, idoso, diante do mal, que o homem livre pode cometer. É terrível a liberdade humana. Sartre chegou a afirmar que "o homem é condenado à liberdade". Não se trata, com certeza, de vacilos de fé, mas é como que uma explosão de indignação, incontida diante da manifestação da maldade humana.
O próprio Jesus, na cruz, diante da barbárie cometida por seus inimigos, repetindo um salmo, questionou: "Meu pai, por que me abandonaste?". Seria Jesus um homem sem fé? Ou, na impotência humana diante da violência, questionou os corações que se fecharam a Deus?
Em 1944, num campo de concentração, em represália por algumas fugas, os nazistas enforcaram um menino judeu de oito anos. Enquanto a criança se debatia nos esgares da morte, alguém perguntou: "Onde está Deus?". Alguém que assistia aquela cruel execução apontou para a vítima e falou: "Está ali, pendurado naquela corda!". O fato inconteste da presença de Deus indica que mesmo naqueles momentos de aparente fracasso, quando parece que o mal venceu, a presença de Deus ao lado de quem sofre é uma realidade palpável e inconteste. Mesmo na dor, no silêncio e num improvável abandono, ele nunca de se fazer presente. É preciso enxergá-lo. E buscá-lo.
Mesmo as pessoas que se dedicam ao estudo e à pesquisa da teologia e filosofia, e aí se inclui o homem Joseph Ratzinger, apenas conseguem tatear, tangenciando perifericamente a questão do mal, que é um mistério. Deus não criou o mal, mas respeita a liberdade de quem o pratica. Isto é um mistério que foge à compreensão, mesmo dos especialistas. Já que não podemos penetrar no âmago do mistério, cabe-nos evitá-lo e combatê-lo.
POR QUE EXISTE O MAL?
A maioria das formulações ontológicas, aquelas que se referem diretamente ao ser, apontam o mal como conseqüência da liberdade humana mal conduzida. Tanto é assim que J. P. Sartre († 1980) chega a afirmar que o homem nasce "condenado à liberdade", tamanho o risco que essa virtude desencadeia sobre o comportamento humano. A morte de tantas vítimas que diariamente bordam de sangue os jornais e os noticiários da tevê nos revelam a extensão do drama de uma sociedade colocada à mercê do mal. O móvel dos crimes e suas motivações a gente sabe. Os criminosos assaltam e matam porque têm liberdade para fazê-lo. Não vou entrar no perfil sociológico do delinqüente, para saber se ele é vítima ou não de um modelo social caótico. Vou reportar-me às idéias de Sartre, no fato de qualquer pessoa, inclusive o bandido, agir na contramão da ética, porque é livre para agir assim. É muito primário, num momento desses, perquirir estas razões. Quero ir mais adiante e dividir questões e assertivas com os leitores. Porque o bandido mata, ou assume esse risco ao praticar uma ação danosa, todos nós sabemos. O que foge ao nosso entendimento são os porquês referentes à morte do inocente. Em minha tese de Doutorado em Teologia Moral (apresentada em Paris, em 2005) cujo título é "Deus é bom. Então por que existe o mal?", eu me reporto a esse sofrimento do inocente, a partir da parábola bíblica do pobre Jó, passando pelo terremoto de Lisboa, em 1755, pelos extermínios nos campos do nazismo, culminando com o estupro seguido de morte de uma menina, na periferia de Porto Alegre. Em todos esses eventos, escutou-se o brado das pessoas, clamando "por que, meu Deus?". O clamor que se eleva em cima do sofrimento das vítimas inocentes fica sempre sem resposta. Sabemos que o mal não vem de Deus, que não pertence à sua vontade a ocorrência do sofrimento e das penas. O mal, desde as teorias teodicéias de Santo Agostinho († 430) e de G. W. Leibniz († 1716) é definido como uma "ausência do bem". No decorrer da história do mundo, os atos maléficos e maldosos têm sido atribuídos não a Deus, mas à liberdade humana mal direcionada. Aí entra a questão do "livre arbítrio". No que se refere ao sofrimento do inocente, as causas são mais profundas, e apontam para forças tenebrosas que, pelo duro golpe nas famílias e na sociedade, visam um desequilíbrio e fomentar um sentimento de revolta e descrença capaz de fazer vacilar os mais fortes.
Em minha tese de doutorado, cujo tema foi "Deus é bom. Então porque existe o mal?" eu me debruço sobre este assunto, afirmando que o mal subsiste no mundo por conta da liberdade humana e pela ação das potestades malignas que induzem a esse tipo de comportamento. Deus não evita o mal, mas dá meios de proteção a quem clama por ele.
O fato é que o mal não é criação de Deus. O ser humano também não é o inventor do mal, mas comete o pecado sob a inspiração do mal que se encontra nas estruturas. No mal que existe desde o princípio está a fonte de todo o desajuste.
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* Doutor em Teologia Moral
* Doutor em Teologia Moral
Fonte: Adital, 29/07/2010
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