quinta-feira, 29 de julho de 2010

Como ler corretamente?

Paulo Ghiraldelli Jr*


Eis a pergunta de um amigo: “Paulo, como ler de modo produtivo?” Gostei da pergunta. Pois, para ele, “produtivo” quer dizer “como ler e entender corretamente a ponto de ficar bem inspirado?” Sim! É exatamente isso que uma boa leitura faz ao bom leitor. A boa leitura inspira ações, discursos, comportamentos e, enfim, outros escritos. Parece fácil e é fácil. Mas, isso é fácil em tese. Na tarefa da leitura, percebemos que até pessoas inteligentes e com uma formação não desprezível tropeçam. Uma boa parte delas não tropeça no meio do texto, mas logo na primeira frase.

O que é que há nas primeiras frases ou até mesmo antes, no título, que se põe antes como um desvio que como um gancho para trazer o leitor a um bom entendimento do texto? Nesse caso, na maioria das vezes, se o texto é confeccionado por um bom escritor, o problema não está no texto e sim no leitor. É que o leitor, nesse caso, tem uma frase inicial pronta, posta para ele de antemão, que ele coloca na frente do texto que irá ler. Trata-se do leitor “cabeça cheia”. Ele não está aberto a nenhum texto, pois ele não tem vontade de ler, ele tem vontade de escutar de outro aquela frase que ele idolatra. Ele não lê para se informar, ele lê para ouvir trombetas que tocam o único som que ele consegue ouvir, que é o som que está tocando na sua mente o tempo todo. Não ouvindo o que quer ouvir, de pronto responde à frase que tem na cabeça, e que foi requisitada apenas por uma semelhança com o que está no início do texto em questão. Em outras palavras: o texto é apenas pretexto para ele afirmar algo que ele queria afirmar contra alguém, a favor dos dogmas que ele possui.

Mas, porque quer afirmar tais dogmas? Esses dogmas precisam ser gritados para o mundo, como se com isso ele pudesse dizer: “eis a Verdade, e eis porque eu estou no caminho certo”. Ele está desesperado para fazer isso, então, atropela a sua própria leitura.

Muita gente chama isso de leitura com preconceito. Mas não é. Não se trata ainda de preconceito. O preconceito aparece no meio da leitura. Esse problema inicial não é a respeito da não formação de conceitos, é psicológico. O tema do título ou as primeiras frases colocam um assunto que, para esse tipo de leitor, conduz tudo muito rapidamente para o campo das suas verdades que, enfim, ele toma como Verdade, com “V”. Trata-se de uma verdade que é diretriz para o que faz e, então, sendo ou não o resto do texto informativo, ele o despreza, pois a sua psicologia está inteiramente voltada para colocar aos berros essa sua verdade. Volto a dizer, trata-se do desejo de ver o mundo todo escutando isto: “vejam como estou certo no que faço, pois o que faço é a Verdade; vejam como estou com a Verdade e por isso o que faço é o certo”.

Não raro, quando encontro um leitor assim, eu digo para ele: você nem leu o texto e já respondeu! Ou então, você não levou a sério o que o texto diz, pois você respondeu a algo que não é propriamente o que o texto expõe. E digo mais isso: você respondeu a outros ataques que caíram sobre o seu dogma. O texto o provocou, mas não por ele próprio, e sim por mecanismos psicológicos seus, que o estão cegando na leitura. Você está conversando não com o autor do texto que leu, seu diálogo é com outro texto, um texto que foi sendo formado na sua cabeça como uma possível crítica ao que você faz e ao que você gosta. Quando digo coisas assim, alguns leitores param e me respondem: “Paulo, li o texto novamente, você tinha razão, eu respondi para outro, não para este texto”. Os mais inteligentes, nessa hora, passam a investigar quem é o real interlocutor que está lá dentro de suas mentes, para os quais respondem, e que até então não tinham se dado conta. Muitos, fazendo isso, começam um movimento de abertura real aos textos que lêem.

Há quem diga que a “pressa moderna” e a confusão entre “velocidade de decisão” e “objetividade” é o que provoca esse tipo de desvio. Concordo. A Internet, que já tem mais de 15 anos, tem nos forçado a uma velocidade que pode realmente provocar distorções desse tipo. Mas, cá entre nós, sabemos que antes dela e mesmo em tempos imemoriáveis esse problema é conhecido. Quantos e quantos leitores, desde que o mundo é mundo, não tropeçaram no mesmo ponto? Não conseguiram efetivamente ler um texto e captar sua mensagem simplesmente porque queriam antes falar em defesa do que faziam e gostavam, e se sentiam atacados nisso por outras coisas, não propriamente pelo que aquele texto, ali na frente deles, dizia. O texto como pretexto pode ocorrer com o leitor tendo consciência disso, mas, em geral, o leitor não tem consciência de que não está levando o texto em consideração como deveria levar, ele não se percebe assim agindo. Quando avisado, quanto mais tempo ele demora em perceber que agiu assim, mais ele está embrenhado naquilo que se pode chamar de “incapacidade do bem alfabetizado para a leitura”.

Ler é, antes de tudo, ater-se à literalidade seca do texto, linha por linha, parágrafo por parágrafo. Quando se consegue isso, então, o passo seguinte é captar as entrelinhas e o sentido geral do argumento ou argumentos do texto – o sentido do texto junto com o seu espírito. Ah! Sim! O espírito do texto – eis aí outro problema. Para poder tentar adentrar o espírito do texto é preciso que o leitor, ele próprio, saiba passar por “estados de espírito” diferentes, ricos. Um bom leitor é um leitor que não só lê, mas que lê coisas de diferentes ordens e gêneros, inclusive alguém que vai ao cinema, ao teatro e se familiariza antes com a mudança de atitude em relação a gêneros e estilos de várias artes que com a mudança de assunto em um só gênero e estilo. Melhor ainda o leitor que lê ciência e literatura, procurando ver como são montados essas narrativas. A própria filosofia é assim: o leitor melhor é aquele que consegue ler filosofia analítica e filosofia continental, que consegue ler Derrida e Russell. Esse “jogo de cintura” é um pré-requisito para “pegar o espírito”. Mas não é tudo.

“Pegar o espírito” do texto é uma tarefa semelhante a “entender a piada”. Muitas vezes, isso se dá na mais tenra idade, antes mesmo de se aprender a ler. Há pessoas que não riem, não possuem humor para as piadas, são bloqueadas por uma série de circunstâncias e, portanto, possuem limitada capacidade de compreensão da vida, do mundo e, então, dos textos – mesmo textos que não são de humor! Esse tipo de indivíduo, bloqueado para certas vivências, realmente sofre para “pegar o espírito” de um texto. Em geral, projeta o pobre espírito que possui a variados textos e, assim, não entende nem mesmo o mais fácil dos textos. Sabe do que o texto falou, mas, por não entrar no espírito do texto, não consegue se inspirar para produzir seus próprios textos. Sua leitura não é a leitura produtiva.

Esses dois problemas que citei são centrais nos tropeços de leitura. Só depois disso, dessa análise, é que podemos entrar no problema do preconceito que, sabemos, também é um elemento capaz de bloquear leituras. Mas, enfim, o assunto do preconceito é assunto para outro texto. Por enquanto, tente apenas corrigir esses erros apontados.
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*Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ

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