segunda-feira, 26 de julho de 2010

A ciência no combate à pobreza

O trabalho inovador da economista Esther Duflo
para reduzir a miséria nos países pobres faz dela, aos 38 anos,
uma candidata ao Nobel de Economia

GÊNIO PRECOCE
Duflo foi a intelectual mais jovem a
proferir conferências no Collège de France, em Paris (onde foi fotograda),
um centro de excelência consagrado pelos
grandes sábios e filósofos franceses

O Programa Bolsa Família é um ótimo exemplo do fosso ideológico que contamina o debate sobre políticas públicas em todo o mundo. Ele beneficia 12,4 milhões de famílias brasileiras e foi decisivo na vida delas. Cada uma recebe do governo um estipêndio mensal em troca de manter os filhos na escola e com a carteira de vacinação em dia. O sucesso – ou fracasso – desse programa é objeto frequente de discussões intermináveis, em geral contaminadas por inclinações políticas, daquelas que costumam gerar muito calor e pouca luz.
De um lado, seus partidários defendem o Bolsa Família como a maior inovação surgida nos últimos tempos no combate à pobreza, essencial para conferir cidadania a uma massa enorme de excluídos. Seus críticos dizem que ele apenas cria uma subcasta de dependentes do Estado – que, interessados em manter a benesse, dificilmente terão interesse nas “portas de saída” para a economia formal. Quem tem razão? Será o Bolsa Família uma estratégia eficaz para reduzir a pobreza?
Eis o tipo de questão que fascina a jovem e pequenina economista parisiense Esther Duflo, de 38 anos. Em dezembro de 2009, ao ser incluída na lista dos 100 intelectuais mais influentes do planeta pela revista Foreign Policy, Duflo confessou o desejo de conhecer o Brasil. Já realizou o sonho? “Ainda não, mas irei!”, escreveu ela numa mensagem de correio eletrônico enviada a ÉPOCA de alguma aldeia no interior da Índia. Duflo se atribuiu uma missão: reduzir a pobreza mundial. É um sonho de menina. Ela cresceu num bairro de classe média de Paris. Seu pai é matemático. Sua mãe, médica, vivia viajando para a África em missão assistencial. “Nunca fui pobre”, disse à revista Bloomberg Businessweek. “Mas, de certa forma, sempre estive em contato com a miséria, vendo as fotos que minha mãe trazia e as histórias que contava.”
Sua carreira começou colaborando com os megaprojetos de combate à fome promovidos pelo economista Jeffrey Sachs, da Universidade Colúmbia, em Nova York. Sachs advoga o investimento maciço, a fundo perdido, dos países ricos para erradicar a pobreza. Mas, após anos de megassubsídios, nenhum projeto liderado por ele na África e no Leste Europeu rendeu frutos palpáveis – apesar de todos dragarem dezenas de milhões de dólares. A visão de Sachs é oposta à hoje defendida pelos economistas da instituição onde ele começou sua carreira: o Banco Mundial. Para eles, o combate à pobreza só será eficaz financiando projetos com finalidade clara, que resultem na produção de riqueza e possam, em última instância, andar com as próprias pernas. É entre esses dois polos que se inserem as novas ideias de Duflo.
Para tentar reduzir a pobreza, ela adotou uma abordagem pragmática. Ao estudar o modo de vida e as necessidades dos moradores de cada região, Duflo procura enxergar além da frieza dos números. Tome um exemplo: ao contrário do Brasil, onde a população acorre em massa às campanhas de vacinação, na Índia a população é refratária. Por isso, doenças erradicadas no resto do planeta, como a paralisia infantil, lá persistem. Mudar a percepção dos indianos em relação à imunização é crucial. Duflo percebeu que bastava um pequeno incentivo, no caso 1 quilo de lentilhas, dado de graça às mães que vacinassem os filhos. Ela promoveu um teste para avaliar se a ideia dava certo. E funcionou. Nas aldeias onde se dava lentilha, a taxa de crianças vacinadas foi equivalente a seis vezes a observada nas aldeias sem o incentivo. Outro estudo de Duflo foi capaz de reduzir a gravidez em adolescentes no Quênia. Duflo notou que as aulas de educação sexual não adiantavam. A solução foi alertar as meninas para o risco do assédio sexual por homens entre 25 e 35 anos.
Para outra pesquisa, feita no Paquistão, Duflo criou um incentivo inusitado. O objetivo era garantir que os pacientes de tuberculose tomassem todas as doses do longo tratamento com antibióticos, que só é capaz de curar a doença depois de seis meses. Ela resolveu distribuir aos pacientes um papel absorvente – e pedir que eles urinassem sobre o papel. Se o paciente estiver tomando suas doses regulares de remédio, o papel revela um código que pode ser usado para ganhar créditos de celular. Tal incentivo também está sendo submetido a um teste e comparado com uma amostra de pacientes que não recebem o absorvente.
Mais que suas ideias criativas, a principal inovação das pesquisas de Duflo é o uso consistente de testes estatísticos comparativos, depois analisados com rigor científico. É aproximadamente o que fazem os laboratórios farmacêuticos que testam novas drogas ou os médicos que estudam como combater doenças. Não foi Duflo quem criou essa metodologia. Ela é fruto do trabalho do economista indiano Abhijit Banerjee, fundador do Laboratório da Pobreza do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e orientador de Duflo. “Bastaram dez minutos da primeira aula com Banerjee para saber que estava no lugar certo”, diz Duflo.
O método de Banerjee é conhecido como “teste randomizado” (do inglês random, aleatório). Ele não leva em conta apenas e tão somente o gênero, a faixa etária e o recorte econômico e educacional do público pesquisado – variáveis que perdem o sentido em muitas áreas rurais da Índia e da África (ou do Norte e do Nordeste brasileiros), pois todos são miseráveis. A inovação é escolher aleatoriamente os grupos pesquisados e priorizar variáveis como costumes ou tradições que passam de pai para filho.
Duflo, com seu inglês com forte sotaque francês, se tornou rapidamente a principal assistente de Banerjee. Ao se doutorar, foi imediatamente contratada pelo MIT, algo raríssimo nas grandes universidades americanas. Foi com suas soluções engenhosas que ela ganhou evidência dentro e fora da academia. Em setembro de 2009, ela recebeu o Prêmio dos Gênios da Fundação MacArthur, US$ 500 mil dados a pesquisadores e artistas surpreendentes, os “gênios”. Em abril de 2010, foi a vez da medalha John Bates Clark, conferida ao economista com menos de 40 anos que mais contribuiu para o avanço do pensamento econômico. A medalha é considerada o primeiro passo na direção do Nobel de Economia. Desde 2000, Duflo se divide entre o MIT e as pesquisas de campo na Índia e no Quênia. Ela diz que não sonha com o Nobel – mas com o Brasil. Se quer erradicar nossa miséria, um excelente primeiro passo seria promover um teste randomizado para avaliar – livre dos preconceitos ideológicos – a eficácia do Bolsa Família.

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Por Peter Moon
Fonte: revista ÉPOCA online, 23/07/2010

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