sexta-feira, 23 de julho de 2010

O livro não é uma página virada

Mônica Cristina Corrêa*

Carrière na sua célebre biblioteca:
"O e-book, o iPad não mudam quase nada em relação à escrita em si.
A ilusão consiste em pensar que a técnica trará ideias"

Considerado o sustentáculo maior da cultura, o livro não está livre dos riscos trazidos pelas novas tecnologias ou novas tendências. Em festivais literários e salões que reúnem editores, autores, críticos, leitores e curiosos, o lugar do livro nas sociedades atuais tem sido matéria de amplas discussões, muitas vezes calorosas e poucas vezes conclusivas. Foi justamente para discutir o futuro do livro que o celebrado roteirista e escritor Jean-Claude Carrière recebeu a reportagem do Valor em sua casa, em Paris.

Tudo o que cerca esse homem de letras e imagens tem aspectos cênicos: sua residência é um prédio histórico onde já funcionou um antigo bordel de luxo e, para a ela chegar, é preciso andar pelas ruas de Montmartre, próximas à estação Pigalle do metrô. No bairro que abriga o Moulin Rouge, casas noturnas e sex shops com vitrines extravagantes, mesmo à tarde se avistam as moças de programa dentro de cenários escuros, fumando ou bebendo acostadas a balcões.

Quando se entra, no entanto, no átrio que antecede a bela casa do escritor/roteirista, o mundo é outro. Carrière está à vontade na varanda da frente. Sorridente e acolhedor, um homem alto e quase octagenário (nasceu em 1931) está pronto para falar de sua vasta experiência no mundo dos livros, inclusive aqueles que transportou para a grande tela.

Carrière começou sua carreira como romancista. Ao publicar o primeiro livro, aos 25 anos, seu editor o convidou para um concurso: escrever um capítulo para "As Férias do Senhor Hulot". Lançando-se à aventura, Carrière selava também seu destino. Mas o cinema não é sua única área de atuação. Da literatura ao roteiro, fez adaptações para o teatro, principalmente com Peter Brook.

Recentemente, o roteirista conversou sobre o futuro do livro e da cultura com o amigo Umberto Eco, linguista e escritor italiano. O resultado dessas conversas é o recém-lançado "Não Contem com o Fim do Livro", organizado por Jean-Philippe de Tonnac (Record). A obra é um "passeio" entre dois espíritos experientes e livres, de acordo com definição do próprio Carrière. A motivação central do livro não precisava de muito para resolver-se: "Saber se o livro vai continuar a existir é questão banal que se responde em três páginas. Mas quisemos definir o livro, saber o que é e o que contém. Além disso, falamos de memória, da transmissão de uma geração a outra. E descobrimos coisas um sobre o outro, gostos, segredos, hábitos, costumes e até perversões", conta Carrière.

O que uniu esses escritores em torno do assunto livro - que para eles continuará existindo, mesmo que sob diferentes formas - é o fato de serem ambos bibliófilos, mas não dos tipos mais comuns. As perversões de que fala Carrière se referem, talvez, a duas manias diferenciadas: Eco possui vasta biblioteca do que chama de "falsos", ou seja, dos livros cujo objetivo é a imitação de obras de relevo. Carrière possui o inventário da "bobagem", coleção de livros sem importância, que abordam, porém, assuntos inimagináveis.

Coautor de um "Dicionário de Bobagens" (com Guy Bechtel, editado pela Robert Lafont), Carrière acredita que o estudo da "bobagem" é útil porque demonstra que as bibliotecas, tanto as de hoje como de outrora, são compostas por obras desinteressantes escritas por gente sem talento. Diante dessas constatações, não estaríamos muito distantes dos fenômenos contemporâneos de produção em massa de livros cuja qualidade é duvidosa e cujo destino é nebuloso.

Esses aspectos permanecem os mesmos, seja qual for a técnica, diz o autor. "O e-book, o iPad não mudam quase nada em relação à escrita em si. A ilusão consiste em pensar que a técnica trará ideias. Muita gente acreditou. A técnica é uma ótima ferramenta, mas daí a pensar que iria desenvolver nossa imaginação... É ilusão. A criação não tem nada a ver com a técnica e sabemos que atrás da crença de que tudo vai mudar está um sonho comercial. Que é utópico, como todos os sonhos comerciais."

No entanto, se reconhece o valor da técnica como instrumento de facilitação, também aponta as dificuldades que esta traz: "Hoje é preciso conhecer um alfabeto mais complexo que o de antes, com mais caracteres, por causa do computador. É ilusório pensar também que tudo isso é simplificação, mesmo em termos de ferramenta".

Além disso, Carrière comenta o sério problema do armazenamento, da memória. "Acompanhei de perto: há 50 anos as bibliotecas tentam guardar os livros, porque os atuais certamente não poderemos ler daqui a 200 anos. O real problema de hoje é a rapidez com que uma técnica substitui a outra." O e-book, que, para ele, lamentavelmente, com sua única forma de leitura, é monótono, ainda tem o inconveniente de durar pouco: "É possível pegar um livro do século XV, mas não poderemos ler um e-book que tenha 15 anos. A técnica de hoje é muito efêmera".

O mesmo acontece com o cinema: técnica não cria nada. Carrière, que relacionou literatura e cinema, ao adaptar para a tela várias obras literárias ("O Tambor", "A Insustentável Leveza do Ser", "Um Amor de Swann", "Mahabharata"), reconhece que a diferença de linguagem entre esses dois gêneros ganhou mais especificidades.

A vida passada entre livros e imagens tornou a produção de Carrière singular. Ao fim da entrevista, ele nos convida a visitar sua célebre biblioteca, que está em reforma. Descemos por uma pequena escada ao subsolo da casa; ele começa a procurar as edições de seus livros em português do Brasil. Apesar da imensidão de títulos, Carrière sabe onde estão e não demora a tirar de uma das estantes um exemplar do "Círculo dos Mentirosos", editado pela Códex (2004).

Indagado sobre o que pretende escrever agora, responde: "Tenho um projeto que me é muito caro, fazer um livro sobre Luis Buñuel". Carrière trabalhou muito tempo com o cineasta espanhol. E como se, apesar das diferenças, cinema e literatura não deixassem de dialogar, fala de seu projeto em andamento: a adaptação cinematográfica do romance "Syngué Sabour", do escritor afegão Atik Rahimi, vencedor do Prêmio Goncourt na França em 2008. Mais uma vez as letras na tela, o romance transformado em imagens, como a evocar a evolução tecnológica. Mas com o desvelo de escolher o conteúdo de um livro que promete ocupar bom lugar nas bibliotecas.
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*Mônica Cristina Corrêa, tradutora, doutora em língua e literatura francesa pela USP, tem pós-doutorado em literatura comparada e teoria literária (USP-Fapesp)
Fonte: Valor Econômico online, 23/07/2010

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