terça-feira, 30 de junho de 2015

O DESAFIO DO ISLÃ, HOJE


 
Entrevista ao reitor do Pontifício Instituto Oriental sobre o Islã, Ramadã, religião, paz e violência

Estamos no mês do Ramadã para os muçulmanos. Para entender melhor o que significa esta festa no contexto muçulmano e dos cristãos orientais, entrevistamos o Pe. Samir Khalil Samir, SJ, pró-reitor e interim do Pontifício Instituto Oriental, que explicou aos leitores de ZENIT 
o que publicamos abaixo.

 ***

ZENIT: O que é o Ramadã?
- Padre Samir: o Ramadã é um mês de jejum e oração que os muçulmanos fazem todos os anos, durante um mês lunar como nos antigos calendários. Jejua-se desde o amanhecer, pelas 5hs da manhã, até o anoitecer.

ZENIT: É como o jejum quaresmal?
- Padre Samir: Exatamente como os cristãos orientais fazem o jejum hoje, não só os monges, mas também as famílias. No Egito, na Igreja Copta, os cristãos não colocam nada na boca, nem de comer nem de beber, a partir da meia-noite até as duas da tarde, e os monges até o anoitecer. E depois fazem um jantar muito leve, e nada de carne, nem manteiga ou queijo, nada produzido com animais. Para os cristãos a quaresma são uns 47 dias, porque o domingo não conta como jejum.

ZENIT: Então, existe um significado muito semelhante?
- Padre Samir: Sim, é muito parecido, uma penitência que é feita para purificar-se, e normalmente a tradição espiritual muçulmana convida os fieis a utilizar a noite para meditar o Corão. Na verdade poucas pessoas do povo o fazem, só alguns ímãs sufis, que correspondem aos místicos.

Para os muçulmanos e os cristãos, mas também para os judeus e outras religiões, é um tempo para estar cada vez mais perto dos pobres e dos sofredores. A diferença com o jejum cristão é que no Ramadã come-se mais do que em qualquer outro período do ano, e é um período festivo. Em certo sentido, pode-se dizer que de tarde se recupera o que não se pode comer durante o dia, também quando vai dormir ou meia noite ou às duas da manhã. Este é o costume normal dos muçulmanos nos países árabes que conheço.

ZENIT: Os Muçulmanos veem a religião como uma mensagem de paz?
- Padre Samir: No Alcorão existem fragmentos que falam de paz e outros que falam de guerra, contra os inimigos da fé. Contra os incrédulos, o Alcorão diz: sejam rápidos e matem-nos onde os encontrarem” "(Alcorão 4, 89) e"sejam rápidos e matem-nos no local onde os encontrem” (Alcorão 4, 91).

Segundo a tradição, na segunda parte de sua vida, entre 622 e 632, data de sua morte, Maomé fez uns sessenta ataques contra as caravanas, de saques (a palavra vem do árabe Ghazwa) por várias razões. O Alcorão também diz aos muçulmanos: "Vocês têm no Mensageiro de deus um modelo perfeito (Uswatun hasanatun)" (33,21).

A razão para essa violência é variada: de um lado pode ser a de garantir a sobrevivência, ou roubar, ou para comprar escravos e escravas, etc. Em uma palavra: pela pilhagem. Portanto, foi ‘revelado’ a Maomé o capítulo 8, chamado de "A pilhagem” (al-Anfal), pelo qual Deus revela ao Seu mensageiro que tem direito ao quinto de todo o espólio na primeira eleição! (Alcorão 8, 41). Os ataques podem ser destinados à conversão das tribos árabes que não acreditaram no único Deus.

Temos duas biografias muçulmanas de Maomé escritas por volta do 750: uma se intitula a biografia do Profeta (al-Sīrah al-Nabawiyyah) de Ibn Ishaq, e a outra O Livro dos saques (Kitab al-Maghazi) de al-Waqidi, onde descreve uns sessenta. Não é possível dizer que o Islã não conheça a guerra e não convide para a guerra. Mas não é possível dizer que o Islã seja somente guerra. Existe um e outro, de acordo com o momento da vida de Maomé.

E este é um dos grandes problemas dos nossos irmãos muçulmanos. Porque é fácil para alguns dizer que o Islã é uma religião de guerra, para converter todos para a única e verdadeira religião dentre as três reveladas (judaísmo, cristianismo e islamismo) e fazer a guerra em nome disso. Infelizmente vemos com o ISIS, com o Boko Haram, com o Al-Qaeda, e com muitos outros.

ZENIT: Mas o que a maioria dos muçulmanos acha?
- Padre Samir: Eu acho que a maioria dos muçulmanos não concorda com esta guerra. Não que excluam qualquer guerra; alguns dirão que pode se fazer somente uma guerra preventiva. Nunca os textos propõem também guerras agressivas. De fato, o califa Abu Bakr, o primeiro sucessor de Maomé, logo após sua morte, decidiu fazer as guerras que nós chamamos em Árabe «ḥurūb ar-riddah», as guerras para trazer de volta aqueles que tinham se distanciado do pacto com os muçulmanos dentro do Islã

Portanto, isso cria problemas, porque cada um pode reivindicar uma citação baseada tanto no Alcorão, como nos fatos de Maomé, ou nos provérbios (i Hadith) de Maomé.

ZENIT: Então?
- Padre Samir. O Islã precisa de uma reforma profunda, e isso é dito por muitos muçulmanos. Recentemente, o presidente do Egito, Abd al-Fattah al-Sissi, em seu famoso discurso do 28 de dezembro de 2014, retomado mais fortemente o 11 de janeiro de 2015, no Cairo, pronunciou na frente de centenas de ímãs da universidade islâmica mais famosa do mundo, Al-Azhar, disse:: "Devemos fazer uma revolução no Islã para interpretar corretamente o Corão e a tradição".

ZENIT: Ou seja, dar o contexto histórico ...
- Padre Samir. A guerra não resolverá nada, porque amanhã virão outros para fazê-la. O problema é repensar o Islã e dizer: é verdade que o profeta fez guerras, é verdade que o Corão tem passagens que são, não só defensivas, mas também agressivas, é verdade que o Alcorão convida a fazer a guerra contra aqueles que não acreditam no Deus verdadeiro. Mas isso foi no século VII, em uma tradição beduína, onde os ataques a caravanas e as guerras estavam muito generalizadas.

ZENIT: Para nós serve com a Bíblia...
- Padre Samir: No Antigo Testamento temos passagens nas quais Deus incita a guerra através de Moisés, seu profeta, (Deuteronômio 20, 10-14) ou a terrível passagem da conquista da Terra Santa, em Josué 11, 16- 20. Mas a maioria de nossos irmãos judeus não vê isso como ipsis litteris, e dizem "este é um fato histórico de três mil anos atrás".

E Cristo, não só não retomou esses discursos bélicos, mas mandou o contrário: “Ouvistes que foi dito: 'Amarás o seu próximo' e odiarás seu inimigo. Mas eu vos digo: Amai os vossos inimigos, orai pelos que vos perseguem; assim sereis filhos do Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos. Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa mereceis? Não fazem o mesmo os publicanos? E se cumprimentais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Não fazem o mesmo os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o Pai que está no céu”. (Mateus 5, 43-48).

Ou: " Digo-vos a vós que me ouvis: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos maldizem e orai pelos que vos injuriam. Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra. E ao que te tirar a capa, não impeças de levar também a túnica.

Dá a todo o que te pedir; e ao que tomar o que é teu, não lho reclames. O que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles."(Lucas 6: 27-31). Existem dezenas de outros textos que convidam não apenas para a violência, mas a destruir a violência aceitando-a.

ZENIT: Nota-se intenções de mudanças ou as declarações contra as violências são de ocasião?
- Padre Samir: Muitos muçulmanos enxergam e fazem um apelo em favor dessa mudança profunda de atitude. Muitos dos intelectuais o dizem abertamente, mas são vistos como influenciados pelo ocidente. Eu estou convencido de que muitos muçulmanos são a favor de não usar a violência em nome de Deus, mas não se atrevem a dizê-lo e os ímãs estão quase bloqueados, não se atrevem a dizer uma palavra corajosa.

ZENIT: E nesta situação de violência e guerra no Oriente Médio?
- Padre Samir: Esta guerra horrenda é fundada sobre o fanatismo religioso, e é apoiada e mantida graças aos petrodólares da Arábia e às armas ocidentais. O dinheiro vem principalmente da Arábia Saudita e do Qatar. As armas da Europa e dos Estados Unidos (e para os xiitas do Irã), passando pela Turquia. O dinheiro é usado para adquirir armas e para pagar e incentivar os jihadistas. Afinal de contas, muitas nações estão se aproveitando dessa guerra que está destruindo o Oriente Médio e, acima de tudo, estas guerras estão matando dezenas de milhares de famílias.

A causa disso tudo é ideológica, uma forma ideológica islâmica, radical, que decreta que quem não pensa e praica um certo tipo de islâmico deve ser eliminado. Em árabe, se denomina takfir, ou seja, declarar que o outro é kafir, incrédulo. Com base na tradição islâmica (incluindo o Alcorão), o kafir deve ser eliminado. Este pensamento remonta a 14 séculos atrás e tornou-se cada vez mais generalizado em certos ambientes ao longo dos últimos 40 -50 anos (mesmo que remonte a antes), tomando como modelo o pensamento da Arábia do século VII.

ZENIT: Qual ponto importante deveriam enfatizar?
- Padre Samir: Que os muçulmanos são nossos irmãos, como os judeus, como os ateus ou descrentes. Todos, cada ser humano é meu irmão, mesmo que eu não compartilhe sua visão. Vimos nos jornais estes dias que o ISIS atacou uma mesquita do Iêmen do sul, onde morreram umas trinta pessoas. Se matam também entre si, porque consideram que quem não pensa como eles é um descrente e deve ser assassinado.

A única resposta a esta ideologia é a do Evangelho, a da fraternidade universal, em termos leigos, a do humanismo.

ZENIT: A oração organizada pelo Papa Francisco no Vaticano teve um impacto?
- Padre Samir: Teve essa finalidade, embora foi manipulada pelo ímã que veio de Jerusalém e recitou um versículo do Alcorão interpretado como um verso agressivo, que não estava previsto no texto.
Mahmoud Abbas e o presidente Shimon Peres, que estavam presentes, certamente buscam a paz como muitas pessoas, tanto em Israel e quanto no mundo árabe.

É hora de deixar a idéia de vingança e de guerra. A prova é que a guerra e a violência não resolvem os problemas, mas, pelo contrário, criam mais problemas e são fonte de novas violências.
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REPORTAGEM Por Sergio Mora
Fonte: Roma, (ZENIT.org
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segunda-feira, 29 de junho de 2015

NOVOS OLHARES SOBRE O CASAMENTO

Frei Bento Domingues, O.P.*


1. Quem decide casar, seja pelo civil seja pela Igreja, é obrigado a marcar uma data. É por isso que existe um antes de casados e um depois de casados. Banalidade das banalidades. As instituições têm normas. Mas esta evidência jurídica não deve esconder as misteriosas dimensões humanas e cristãs de laços que se desenvolvem no tempo e que nenhum tempo explica.

O casamento é um processo infinitamente mais complexo do que o processo civil e religioso. Para não morrer, tem de ir crescendo sempre nos noivos e no casal. Aquilo a que normalmente se chama o casamento é apenas a Festa de uma realidade que só pode ser bem conjugada no gerúndio. As pessoas que se acolhem como casal serão lúcidas se perceberem que ganham em ir casando cada vez mais, nas diferentes etapas da vida, preparando-se, nos dias calmos, para o imprevisível.

Se for verdade, como diz A. Bessa Luís, que as famílias são férteis em tensões e desajustes e que, sem conflitos, a família não subsistiria, então o casal, para ter futuro, precisa da conversão permanente à escuta recíproca, ao diálogo e ao perdão, sabendo que seremos sempre um mistério para nós próprios e para os outros. A ambição da transparência total é o engano de almas lisas. 

Era ainda criança, mas lembro-me, como se fosse hoje, das conversas que provocou na minha aldeia uma pregação do padre Domingos, que depois foi Bispo da diocese da Guarda. Pregava contando histórias exemplares e parábolas semeadas de aforismos que tinham tanto de rústico como de prático. Num dos sermões, conhecendo a realidade local, resolveu falar, com muitos pormenores hilariantes, sobre três modelos de gestão familiar: a do varão - manda ele e ela não; o da varunca - manda ela e ele nunca; o da varela – manda ele e ela!

A questão mais difícil não é saber quem manda, mas o que comanda, em profundidade, as reacções de um casal que sonhou com um paraíso.

2. Nos debates em torno do Sínodo dos Bispos sobre a Família, alguns parecem obcecados pela indissolubilidade e pela impossibilidade de uma segunda celebração cristã do casamento. Nota-se pouca atenção aos seus modelos culturais e religiosos, no passado e no presente. Mesmo no âmbito da tradição cristã, podem observar-se diversos paradigmas.

 Nem o Antigo nem o Novo Testamento impõem uma estrutura determinada e fixa. A partir da experiência cristã, em confronto com outras culturas, numa época de globalização, é normal que se pense, dentro do próprio cristianismo, em instituições mais aptas para a família e para o casal europeu, latino-americano, africano e asiático.

Embora de forma muito esquemática e rápida, importa passar os olhos pelos traços essenciais da sua história como convite para leituras especializadas[1].

 Nos séculos I-III, o casamento era uma questão terrena que se procurava viver em espírito cristão: casava-se no “Senhor”, sem cerimónias próprias. Os cristãos casavam-se como os não cristãos: uns, segundo os ditames do Direito Romano, outros conforme os costumes locais (o direito consuetudinário). O grande cuidado a ter era com os ritos e sacrifícios pagãos que estivessem em contradição com a mensagem cristã.

Nos séculos IV-XI foi-se elaborando uma liturgia cristã, em duas fases: os esponsais e o casamento. As formas não eram obrigatórias. Obrigatória era a Bênção. Entretanto, foram-se introduzindo as formas civis no direito eclesiástico.

Pelo ano mil, todas as questões relativas ao casamento passaram para a jurisdição eclesiástica. Em suma: antes do ano mil, os cristãos casam-se de modos diversos: uns, segundo um rito cristão (direito eclesiástico); outros, segundo o direito civil; outros, segundo os costumes locais; outros ainda, clandestinamente.

Nos séculos XI-XV, produziu-se uma teologização e uma eclesiologização do casamento. O debate teológico sobre a sua essência agudizou-se. Toda a jurisdição do casamento passou para a Igreja, que ficou a regulamentar até os seus efeitos civis. Acabou assim por subsistir apenas o casamento religioso e o clandestino.

No Concílio de Trento (1545-1563), o casamento tornou-se numa instituição da fé. Todas as causas são transferidas para os tribunais eclesiásticos. É invalidado o casamento clandestino, dada a dificuldade dos tribunais em determinar qual era a esposa legítima de determinado varão comprometido, ao mesmo tempo, com várias mulheres.

3. F. Xavier de la Torre, da U. Pontifícia de Comillas, recorda que essa razoável proibição não pode fazer esquecer que, durante 15 séculos, a cerimónia não era uma exigência e, em termos teológicos, não tem de lhe estar associada. Isto permite-lhe destacar o valor luminoso do casamento e entender a crise de uma certa institucionalização. A trilogia sempre unida de casal, casamento e família, fragmentou-se. O adeus à Família é, no entanto, precipitado. De modos diversos, todos a procuram.

Jesus de Nazaré rejeita apenas a família como um mundo fechado, um egoísmo mais ou menos alargado, esquecida do nosso parentesco universal.
 
* Teólogo Dominicano.
FONTE: Público, 14.06.2015
Imagem: O casamento de Alfonso XIII e Victoria Eugênia, na Igreja de São Jerônimo, em Madri, 1906
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[1] Gabino Uríbarri, SJ (ed),La família a la luz de la misericordia, Sal Terrae, 2015, Santander.

O VIRTUAL NUNCA EXISTIU

Juremir Machado da Silva* 

 

Foi em 2006. Eu estava em Paris para uma reunião do conselho editorial da revista Hermès, do qual faço parte. A publicação, uma das mais importantes da Europa em Ciências Sociais, é dirigida por Dominique Wolton e editada pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica, o prestigioso CNRS da França. Duas vezes por ano, o Conselho, que conta com quase 50 pesquisadores do mundo inteiro, reúne-se. A outra importante revista científica francesa da qual integro o conselho editorial é a Sociétés, criada por Michel Maffesoli e especializada em estudos do imaginário. Na época que me vem agora, aproveitei uma brecha para visitar meu amigo Jean Baudrillard, que morreria em 6 de março de 2007.

A doença já havia marcado Jean, que foi um dos homens mais inteligentes da sua geração.

Eram onzes horas da manhã. Ele me ofereceu um cálice de vinho branco.

– Não tenho mais tempo para esperar o final da tarde –– brincou.

Aceitei o vinho.

Baudrillard tinha bom gosto. Depois do brinde, apesar da melancolia que nos embaçava, ele começou a falar da falsa oposição entre real e virtual produzida pelas discussões em torno da internet.

Com a sua tradicional ironia sempre suave, profetizou:

– Dentro de dez anos, ninguém mais falará em virtual e real. Ainda se fala disso porque as pessoas continuam assustadas com a novidade, que já vai se fazendo velha e rançosa. Quando isso acontece, a tendência é negar o real. O virtual é o mordomo chamado a depor.

É tudo real. Tão real quanto a imagem da televisão. Tão real quanto a voz saindo do rádio. Tão real quanto a letra impressa no papel. Fiquei esperando que ele continuasse. Era maravilhoso ouvi-lo falar.
Ele saltava de um assunto para outro com certa volúpia:

– Na vida, meu amigo, tudo é questão de legitimação.

– De que está falando agora? –– arrisquei.

Ele bebeu mais um gole. Deu uma olhada pela janela. E disse:

– Do trabalho das ideias, do caminho que se tem de trilhar. Não basta ter uma boa ideia. É preciso lutar por ela. Quanto mais uma ideia contraria o senso comum, mais é combatida e menos legitimação ela encontra. Ter ideias muito boas e diferentes traz sofrimento. Baudrillard teve ideias originais. Escreveu grandes livros. Teve reconhecimento.

A legitimação, porém, não é permanente. Li um texto de um jornal inglês afirmando que não há mais pensamento original na França. Paris já não produziria ideias renovadoras.

– As ideias fazem greve – me dissera Baudrillard.

Foi nossa última conversa pessoal. Ainda falamos por telefone em fevereiro de 2007. Quando publiquei meu livro História Regional da Infâmia, o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras, pensei nele. O combate seria duro e permanente. Os inimigos, ensinavam Jean, usam três estratégias alternadas: ataque, indiferença e deslegitimação pela biografia. Entre tantas grandes frases, Jean nos legou esta: “Esperamos que a inteligência artificial nos salve da nossa estupidez natural”.

Ou esta: “O pior num ser humano é mesmo saber demais e ser inferior ao que sabe”. Na mosca.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo online, 29/06/2015
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PERVERSÃO LEGAL

Montserrat Martins*

descartando pessoas

O Odebrecht deve estar arrependido de não ser banqueiro, onde poderia lucrar à vontade, com leis e governos sempre a favor. Entre 1980 e 2014, o Estado brasileiro aplicou 861 bilhões em investimentos e 3 trilhões e 584 bilhões com o pagamento de juros, dado publicado pelo jornalista Clóvis Rossi, da Folha de São Paulo, que não foi manchete daquele jornal e de nenhum outro do país – quem quer se incomodar?

Poderosos mesmo não são os corruptos, são os que tem as leis a seu favor. Agiotagem é crime, mas os juros bancários extorsivos, seja sobre as pessoas comuns, seja sobre os governos, são legais. A Função Social da Empresa está na Constituição, Art.5º,XXIII, que enfatiza que “a propriedade atenderá a sua função social”. Mas na prática o Barão de Itararé já explicava como isso funciona, “banco é um lugar que te empresta dinheiro, se você provar que não precisa”.

No ambiente interno dos bancos, os funcionários são sugados até a exaustão. Um número expressivo de bancários – não só de funcionários comuns, mas inclusive de cargos de chefia, muitos deles Gerentes, passam a precisar de atendimento psiquiátrico em função do estresse crônico e cumulativo a que são submetido pela pressão constante pelas famosas “metas” a atingir.

 Bertold Brecht foi quem matou a charada: 
“Melhor que roubar um banco,
é fundar um”.

Os psiquiatras são testemunhas involuntários das várias formas de perversidade intrínsicas aos bancos, sejam privados ou estatais, todos dentro da mesma lógica da competição por produtividade. Jovens da faixa dos 20 anos de idade são rapidamente promovidos a funções gerenciais, para atrair clientes com a “boa aparência” dos funcionários que os induzirão a contratar os mais diversos “produtos” dos bancos. Os Gerentes mais experientes, que sabem que alguns negócios podem não ser bons para os clientes, podem ter crises de consciência em induzir pessoas a fazer certos negócios, mas são pressionados a “fechar metas” mesmo assim.

Quando bancários passam a ter problemas psiquiátricos e a depender do INSS, por terem de tomar medicação e não conseguirem mais trabalhar, eles tem uma perda financeira grande, em relação ao tempo na ativa, principalmente os que já foram Gerentes. Mesmo assim, a simples menção dos nomes de seus bancos, metas e uma série de siglas de produtos que vendiam, lhes faz terem sintomas de pânico. Dinheiro não é tudo na vida, eles querem ter um mínimo de saúde, que lhes foi sugada pelo sistema financeiro, uma “máquina de moer carne” por dentro e para fora.

A quem beneficiam os bancos, hoje? Nem aos funcionários, nem à indústria ou ao comércio, sob altos juros, nem ao governo, nem à sociedade. Meia dúzia de banqueiros, os donos, são os únicos beneficiários de um sistema perverso. Bertold Brecht foi quem matou a charada: “Melhor que roubar um banco, é fundar um”.
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* Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é médico psiquiatra, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e presidente do IGS – Instituto Gaúcho da Sustentabilidade.
Publicado no Portal EcoDebate, 29/06/2015

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Transexual crucificada na Parada Gay: ofensa ao símbolo cristão ou questão de gênero?


Performance de Viviany Beledoni, durante a Parada Gay de São Paulo deste ano. Foto: Reprodução.

"Será mesmo que Jesus foi desrespeitado por ela ou foram as ‘referências religiosas’ de políticos, de pregadores e de uma parte da população cristã que se sentiu ameaçada?”. Quem lança a pergunta é a teóloga feminista brasileira Ivone Gebara, discutindo o porquê de tamanha repercussão em torno da performance da atriz transexual Viviany Beledoni, durante a Parada Gay de São Paulo, no último dia 07 de junho. A ativista desfilou no maior evento de resistência LGBT do mundo, crucificada tal como Jesus Cristo e outros tantos de seu tempo, que eram penalizados pelo Império Romano. A pretensão foi simbolizar a perseguição e o sofrimento por que passa a população LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais].

Em entrevista à Adital, a também filósofa e freira católica questiona se, em vez de uma suposta ofensa às religiões cristãs, por meio de uma blasfêmia ao símbolo de Cristo crucificado, não seria a relação de gênero o centro da questão. Não seria a conexão entre essas doutrinas e a exibição de um corpo feminino seminu, atuando como liderança de resistência e proposição na representação do martírio do líder maior do Cristianismo, o grande ponto de incômodo entre os setores conservadores?
"Creio que, no fundo, há uma resistência em aceitar não apenas a liderança feminina nas igrejas e na sociedade, mas, sobretudo, que o corpo feminino nu signifique mais do que o ‘corpo objeto’ usado e abusado pelos homens de todos os tempos”, discute Ivone. "Não se aceita que o INRI, ‘Jesus rei dos judeus’ em latim, se transforme em grito de alerta contra a servidão feminina ou contra a homofobia LGBT ou contra a exploração dos camponeses. Há muito mais coisas escondidas em nosso aparente puritanismo do que ousamos revelar”, provoca a teóloga.

Ainda que foque na questão de gênero, Ivone amplia o debate e afirma que o repúdio de parte da população a essa manifestação de resistência pode ser compreendido de diferentes maneiras. Ela sugere três pontos de reflexão relacionados à cultura cristã que nos circunda e ao uso que se faz dela. O primeiro deles remete a uma "concentração da sexualidade” e dos papéis de gênero como tendo de seguir regras pré-estabelecidas por "Deus” ou pela natureza.

"A ‘transgressão’ a esta ordem afirmada como divina agride muitos espíritos. Muitos/as acreditam numa normatividade sexual presente na cultura, proveniente de ordens divinas ou de algo inscrito na natureza física, independentemente da vontade dos seres humanos”, debate Ivone.

"Como aceitar que uma transexual atrevida se aproprie de um símbolo tornado cristão para expressar seu sofrimento e os sofrimentos coletivos, assim como a urgência de direitos? Não apenas a cruz se tornou símbolo cristão, mas tornou-se materialmente símbolo da excelência do sofrimento masculino. Dessa forma, qualquer mudança pode ser vista como agressão e, consequentemente, repudiada”, assinala a estudiosa feminista.

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Atriz afirma que pretensão foi representar perseguição contra público LGBT. Foto: Reprodução.  

O segundo ponto levantado por Ivone se refere a um "reducionismo da moralidade social à sexual”. Neste aspecto, a teóloga aponta que a consideração e o respeito à diversidade dos seres humanos e a questão da urgência de justiça social e ecológica amplas acabam sendo tratadas como reivindicações menores. "A moralidade reduzida à sexualidade é sujeita ao controle de um grupo que se considera ‘eleito’ por Deus, representante e defensor das leis ‘ditas’ divinas”, explica.

"O reducionismo decorrente e suas nefastas consequências têm crescido assustadoramente, como forma de impor uma nova moralidade política através de um falacioso discurso moralizador dos costumes. Este tem rendido a eleição de muitos lobos vorazes vestidos de pele de cordeiro. O reducionismo tem sido liderado por grupos religiosos com amplo acesso aos meios de comunicação e a espaços políticos nacionais”, discorre Ivone. "Promovem uma guerra cultural contra a diversidade, confundem muitos adeptos e acabam tendo grande apoio popular. Os adeptos passam então a repudiar o que eles repudiam”.

O terceiro tópico tem a ver com uma produção desenfreada de violência, não só por organizações criminosas nacionais e internacionais, mas também por aqueles que encetam "guerras santas” contra os que são julgados "desviados” das "leis de Deus” e da natureza. "Leiam-se aqui também leis do capitalismo do mercado protecionista e individualista. Os ‘justiceiros’ são, na realidade, produtores de uma violência social incomensurável, visto que se disfarçam nos discursos religiosos, mostram-se pacíficos, pessoas de bem, mas iludem os mais simples, tornando-os partidários de suas interpretações da História e das intervenções divinas nela”, destaca a Ivone.

De acordo com a teóloga, tudo isso leva ao fundamentalismo religioso e à acentuação do repúdio a qualquer manifestação que fuja dos moldes do permitido. "O medo de reprimendas advindas das autoridades, representantes de Deus e dos possíveis castigos divinos também entram nessa pauta”, acrescenta.

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Ivone Gebara estuda teologia feminista. Foto: Reprodução.

Ressignificação do símbolo

A teóloga contrapõe a tese de que Viviany tenha insultado uma crença religiosa por meio de uma agressão ao seu maior símbolo. Ela explica: "no caso da atriz Viviany Beleboni, o uso da cruz como ela o fez, não foi para destruir um símbolo caro a um grupo. Ela apenas ressignificou a cruz a partir de sua experiência de rejeição e agressão pessoal, e de outras companheiras. Assumiu o significado da cruz de Jesus injustiçado pelos poderes de seu tempo como referência à sua cruz atual ou ao suplicio que muitos grupos da sociedade brasileira atual lhe impõem”, argumenta.

"A cruz, na realidade, pode ter vários significados, para além da crucifixão de Jesus de Nazaré. De uma maneira experiencial, chamamos de cruz as situações impostas, as situações em que não há escolha ou saídas imediatas. Da mesma forma, situações e relações difíceis que duram longo tempo são identificadas como ‘nossa ou minha cruz’”, afirma.

Nesse sentido, Ivone lembra que também se crucifica uns aos outros através da ganância, da incapacidade de enxergar a diversidade e o pluralismo do nosso mundo, do cultivo da violência. "Somos, na realidade, algozes uns dos outros, juízes corruptos uns dos outros, mas também podemos ser ‘próximos’ solidários uns dos outros”, assevera a filósofa.

Ivone rejeita, enfaticamente, que o ato de protesto seja considerado uma heresia. "No caso específico de Viviany, não há heresia! Ao contrário, através da cruz ela manifestou a humilhação vivida pelos novos crucificados de hoje, que ela estava representando”, justifica. "Nessa perspectiva, não podemos esquecer que a cruz imposta a Jesus era para humilhá-lo e matá-lo. Por isso, é a luta contra a humilhação que nós seres humanos impomos uns aos outros e às outras que se elabora o discurso da ressurreição, ou seja, o discurso sobre a dignidade da vida e a busca contínua dessa dignidade. Os crucificados clamam por vida digna, por direitos, anunciam a necessidade de libertar-se, de saírem da ignomínia do sofrimento imposto”, afirma.

"Se quisermos polemizar, poderíamos até dizer que heréticos em relação ao Evangelho são aqueles que, hoje, atiram pedras nas vítimas da fome, que deixam morrerem refugiados, que impõem pesados fardos à vida das mulheres, que viram o rosto para a violência cometida contra os homossexuais e transexuais”, provoca a teóloga.
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Reportagem  POR Marcela Belchior
Fonte: Adital

VIDA APÓS A MORTE

Marcos Piangers*
 

As pessoas se perguntam se existe vida após a morte. Mas é claro que existe vida após a morte. Depois que você morre, alguém pega um ônibus do outro lado da cidade. Um senhor de idade compra um jornal. Três amigos bebem no Centro. Um bebê que vai ser famoso nasce do outro lado do mundo. Um avião decola com uma senhora apreensiva. Uma criança brinca com areia na praia. Um cachorro passeia feliz. Existe vida depois da morte. Só não pra quem morre. Pra quem morre, acabou.
Eu gostaria de estar errado, é claro. Ser ateu tem desvantagens devastadoras: sei que não represento nada pro mundo. Sei que a minha morte não fará diferença alguma pra história do planeta. Sei que em 150 anos todas as pessoas que eu mais amo estarão mortas. Sei que ninguém vai se lembrar de mim. Não terei entendido a infinitude do espaço sideral. Jamais saberei como o mundo vai ser daqui a mil anos. Essa curiosidade me mata. Entendo quem se recusa a acreditar nisso.

Adoraria estar errado. Fechando os olhos aqui, os abriria lá do outro lado. Diria: “Ufa! Que bom! Eu estava errado!”. Ateus entrariam no céu, chocados. Árabes, espíritas, budistas, evangélicos, todos certos. E, consequentemente, todos com a súbita consciência de que estavam errados também. Depois de morto eu viveria pra sempre, acompanhando do céu as minhas filhas crescerem. Adoraria esperá-las nas nuvens, recebê-las na entrada do Paraíso, viver eternamente abraçado a elas. Adoraria sentar novamente ao lado do meu vô. Conversar com grandes homens que já se foram. É uma fantasia tão agradável, que eu entendo por que faz tanto sucesso.

É claro que existe vida após a morte. Pessoas morrem todos os dias e ainda assim o sol nasce no dia seguinte. Um cachorro se espreguiça. Um homem sai pra trabalhar de moto. Uma menina de 11 anos vai pra escola a pé. A vida que existe depois da morte é essa que você está vivendo agora. Faça bom proveito.
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* Colunista da ZH
Fonte: ZH online, 26/06/2015
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quinta-feira, 25 de junho de 2015

“Nem todos entendem que a migração é um direito humano”

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Elton Bozzetto dedica seu tempo e disposição a fazer o que percebe que os governos não conseguem sozinhos: ajudar os imigrantes que chegam ao Rio Grande do Sul. Ele é o coordenador do Fórum de Mobilidade Humana e defende o direito à migração e a necessidade de se aceitar e integrar na sociedade as pessoas que vêm de outros países. Nos últimos anos,viu chegarem ao Estado senegaleses, ganeses, indianos, chineses, dominicanos, haitianos e colombianos, entre outros.

Apesar de parte da sociedade e da mídia acreditarem que os estrangeiros podem “roubar” postos de trabalhos, Elton explica que isso não acontece na prática. “Há condição de ocupação para os migrantes. São raros os que não têm ocupação, e aí a não-ocupação pode inclusive estar relacionada a toda essa questão da integração”, reflete.

No entanto, Elton não vê o preconceito contra os migrantes como um grave problema no Rio Grande do Sul. Ele diz, inclusive, ter ficado positivamente surpreso com a acolhida que tiveram no Estado. “Houve alguns casos de racismo que tiveram uma publicidade enorme, enquanto a grande integração que está existindo – inclusive no ambiente de trabalho – tem tido pouca repercussão”, aponta. Nesta entrevista, ele fala sobre a realidade dos migrantes em termos de trabalho, possibilidade de reencontrar suas famílias e a Nova Lei Migratória.

“Os bens que existem sobre a face da Terra não pertencem a nenhum homem, pertencem à humanidade.”

Su21 – Como é que o senhor começou a se envolver, se preocupar com os imigrantes e toda essa questão que levou à presidência do fórum?
Elton Bozzeto – Eu represento, no Fórum Permanente de Mobilidade Humana, uma instituição que tem quase 60 anos de atividade, o Mensageiro da Caridade — secretariado da Arquidiocese de Porto Alegre –, que há muito tempo se preocupou com a situação dos migrantes. [A organização] os acolhia na Cidade de Deus, um bairro que existe aqui na zona sul de Porto Alegre, e a entidade tem uma estrutura ali. Depois, na década de 1990, teve uma vinda para cá de angolanos e a entidade também acolheu, auxiliando em oportunidades de trabalho, porque a nossa entidade está vinculada ao trabalho social e à promoção da defesa dos direitos humanos. A entidade foi convidada, quando criaram o Fórum, para integrar a organização. O Fórum reúne instituições que desenvolvem trabalho social e que estabelecem alguma relação com a questão da mobilidade humana. Eu fui designado pela entidade para representar a instituição no fórum permanente. A gente sempre esteve envolvido com as organizações, com as atividades, com os eventos que o fórum tinha e, como nós temos uma dinâmica de rodízio na coordenação da atividade, no ano passado me escolheram por um ano para continuar o trabalho.

Sul21 – E no Mensageiro da Caridade, o senhor entrou primeiramente por que via, para fazer trabalho de caridade?
Elton – Eu sou jornalista de formação e entrei no Mensageiro da Caridade em 1995, fazendo um trabalho de comunicação. Agora, além do trabalho de comunicação, eu estou integrando a equipe técnica da entidade e, que faz todo um relacionamento com outras organizações e, por conta disso, eu também faço a representação da entidade no fórum.

“Se o Estado não tem condições de atender, então a sociedade que tem condições, pode atender e efetivamente o faz através de muitas organizações no RS, que estão agindo.”

Sul21 – Nesses últimos anos e meses, tem se observado essa grande leva de migrantes, de países africanos e haitianos, vindo para o Estado. Como tem sido a recepção por parte do poder público e da sociedade a essas pessoas?
Elton – Quando a gente fala em mobilidade humana, é preciso recordar alguns movimentos importantes que ocorreram aqui no Rio Grande do Sul. Primeiro: no final da segunda parte do século XIX, especialmente, nós tivemos toda a migração européia, de italianos e alemães predominantemente, mas de outras nacionalidades também. Depois, após a 2ª Guerra Mundial, nós tivemos um outro movimento importante, que aí estão incluídos europeus, judeus e outras nacionalidades. A partir da década de 1980, nós tivemos uma movimentação importante de hispano-americanos, ou seja, pessoas dos países vizinhos, especialmente Uruguai , Argentina, Bolívia e Chile, nossos países limítrofes. E agora, nos últimos dois, três anos, se acentuou essa migração essencialmente econômica, ou seja, as pessoas vêm para cá em busca de trabalho e de condições de sobrevivência, condições de vida. Inclusive, muitos migrantes disseram que não têm interesse de permanecer para sempre aqui. Vêm por um período, até ter recursos, criar condições no país de origem, até possivelmente retornar.

No entanto, isto não exime o estado e a sociedade de assegurarem para esses migrantes a plena cidadania e todos os seus direitos. Já em 1804, Immanuel Kant, filósofo alemão, escreveu a primeira obra que trata do direito internacional. Quando ele escreveu seu livro O Direito dos Povos, estabeleceu pela primeira vez o conceito de cidadania universal. E o conceito básico que ele abordou para isto é de que os bens que existem sobre a face da Terra não pertencem a nenhum homem, pertencem à humanidade. E por pertencerem à humanidade, eles devem servir a todas aquelas pessoas que tem necessidade dessas condições para a sobrevivência. Por conta desse conceito de cidadania universal que nós temos que respeitar, por conta disso, o Estado, uma nação que recebe essas pessoas em situação de mobilidade, precisa prover todas as condições e, subsidiariamente, as organizações da sociedade podem suprir esse papel do Estado. Se o Estado não tem condições de atender, então a sociedade que tem condições, pode atender e efetivamente o faz através de muitas organizações no RS, que estão agindo.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Por exemplo: o Cibai (Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações), que é uma das entidades que funcionam junto da igreja do Pompeia, há mais de 60 anos realiza esse trabalho de acolhida aos migrantes. Começou depois da 2ª Guerra Mundial e mantém até hoje, e é a organização que mais atende, mais recebe e mais faz esse papel de acolhida aos migrantes. E é uma organização da sociedade que realiza esse trabalho, então não dá para dizer que é estritamente atribuição do Estado. E é isso que a gente tem tido no Rio Grande do Sul, embora no último período tenha havido uma preocupação do Estado aqui no nível estadual e municipal em propiciar condições de acolhida a essas pessoas. No entanto, ainda é insuficiente e desorganizado, embora estejamos num processo de organização, a partir da criação do comitê estadual. Chama-se Comirat (Comitê de Atenção aos Migrantes Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas), que existe tanto em âmbito estadual, quanto nacional. Agora foi instalado, no início deste ano, o Comirat municipal, em Porto Alegre, que é o órgão que vai tratar da gestão da recepção e do atendimento às necessidades básicas dos migrantes. Existem algumas iniciativas do Estado, mas especificamente no RS, até hoje, a sociedade fez predominantemente o atendimento e a acolhida a essas pessoas.

“São pessoas com relativa qualificação, mas por outro lado, há que se observar que mesmo tendo uma boa qualificação, eles estão dispostos a desempenhar qualquer atividade laboral.”

Sul21 – Eu estive em Caxias do Sul e conversei com alguns senegaleses e ganeses que foram para lá e observei que a maioria deles não eram pessoas que vinham de condições de miséria e muita pobreza em seus países, eram pessoas que talvez fossem consideradas classe média em seus locais de origem. De fato, é esta a situação geral dos migrantes que chegam ao Estado?
Elton – Eu não tenho um panorama, até porque são parâmetros bem diferentes quando comparamos nossa realidade com a deles. Por exemplo: quem vem do Haiti é gente que, embora tenha relativa formação, não tinha nenhuma condição de obter trabalho em seus países, então vivem na mais absoluta miséria, embora tenham uma formação. Muitos, inclusive, tem curso superior no nível de suas nações, e nós não temos um mecanismo ainda que possibilite reconhecer essa formação, o que é um limitador para a atividade que eles desenvolvem aqui. Da parte dos senegaleses, também nós temos observado isso, e inclusive tem pessoas que falam mais de uma língua, embora não esteja contemplado o português. São pessoas com relativa qualificação, mas por outro lado, há que se observar que mesmo tendo uma boa qualificação, eles estão dispostos a desempenhar qualquer atividade laboral. Eles aceitam qualquer oportunidade de trabalho, embora a legislação assegure, a partir do momento em que eles têm a situação regularizada no Brasil, a mesma condição dos trabalhadores brasileiros, sem nenhuma distinção. São pessoas que vêm já com uma qualificação e nenhuma oportunidade em seus países. Esse é um fator importante.

Sul21 – É possível traçar um panorama geral da situação deles aqui? Estão conseguindo emprego? Em que situação econômica estão vivendo?
Elton – Eu não consigo traçar um panorama de todo o estado, mas nós temos acompanhado a situação geral. Há uma abertura significativa do empresariado para esta mão de obra e isto é um dado que o Fórum tem publicado. Há condição de ocupação para os migrantes. São raros os que não tem ocupação, e aí a não-ocupação pode inclusive estar relacionada a toda essa questão da integração deles às comunidades locais, então pode criar algum tipo de dificuldade. Mas no aspecto laboral, de trabalho propriamente dito, praticamente todos que chegam aqui conseguem oportunidade. No Cibai, que é uma das organizações que integram o Fórum, há uma lista de empresas que constantemente solicitam trabalhadores que chegam aqui. Aqui no RS na área da logística tem um número expressivo [de vagas] na construção civil e na indústria de alimentos, dado que foi apresentado na semana retrasada em uma reunião do Fórum. São 2.520 trabalhadores migrantes na indústria de alimentos e nós temos aqui no Rio Grande do Sul cerca de 10.500 a 11.000 haitianos e mais 4.000 originários de outras nacionalidades, em que se incluem senegaleses, ganeses, indianos, chineses, dominicanos, colombianos, entre outros.

Na pesquisa recente que nós fizemos, os empresários citam algumas características desses trabalhadores: são extremamente rigorosos no cumprimento de horário de trabalho, são muito cuidadosos no desenvolvimento de suas atividades, tem muita facilidade em observância das determinações, das orientações que são passadas no ambiente de trabalho. E aí tem um outro componente, que nós recolhemos a informação também, é que eles ocupam funções às quais os trabalhadores brasileiros não se sujeitam mais.  A indústria da alimentação, por exemplo, tem muito disso, do ambiente, da questão da insalubridade, que os trabalhadores brasileiros estão rejeitando nessas funções.  Aí é uma questão de necessidade, mas a gente tem feito um trabalho bastante intenso para que as empresas que contratam observem todas essas questões da legislação e dos benefícios. Em razão de dificuldades de compreensão de legislação, o Fórum está preparando uma cartilha sobre o direito do trabalho com tradução.

“Não está existindo um sistema de comunicação desde a partida deles, no Acre, até o destino, aqui.”

Sul21 – Quando alguns senegaleses chegaram, eles também esbarraram em um problema legal, sobre que tipo de visto poderiam ter, já que não se encaixavam como refugiados. Como está essa questão?
Elton – Os haitianos, de modo geral, entram com visto humanitário. Hoje, o grande fluxo e a grande porta de entrada é Brasileia, no Acre. Ali tem uma unidade do governo, que foi implantada lá para facilitar a entrada e eles já receberem o visto humanitário. Consequentemente, já saem com CPF e carteira de trabalho. Isso facilita. A maioria dos haitianos vêm para cá e já sabe para onde quer ir, porque tem algum familiar, conhecido, que diz que tem boas oportunidades. Tanto que, da última leva que veio do Acre, temos apenas três que estão ocupando o abrigo temporário no Centro Vida. Os outros todos foram para Santa Catarina ou para o interior do estado. Um dos problemas é que eles não têm nenhum conhecimento da geografia do Brasil, poderiam ter pelo menos uma placa, algum indicativo, porque muitos chegam em Porto Alegre quando queriam ir para outros estados. Não está existindo um sistema de comunicação desde a partida deles, no Acre, até o destino, aqui. Essa semana chegou em Nova Araçá um grupo de 60 haitianos, que já queriam ir para lá. Tem um frigorífico, que tem carência de mão de obra e já existe um grupo expressivo de haitianos [trabalhando lá].

Os senegaleses, em geral, chegam aqui e solicitam refúgio, mas não são realmente refugiados. Essa é a maneira que encontram de legalizar sua situação, mas o Ministério da Justiça não dá conta da demanda. Tanto que temos agora cerca de 20 mil pedidos de refúgio que não estão conseguindo atender. E essas pessoas estão de certa forma irregulares aqui. Agora o Ministério está pedindo apoio dos estados e da sociedade civil para fazer um mutirão para regularizar as pessoas. Até para que possam ter carteira de trabalho e se integrar perfeitamente à sociedade.

Sul21 – Quanto eles ganham mais ou menos? Têm os mesmos direitos de salário mínimo e leis trabalhistas?
Elton – É um pouco mais que o salário mínimo, em média, similar a um trabalhador brasileiro. Tem os mesmos direitos, carteira de trabalho e o Ministério Público do Trabalho tem fiscalizado. O Fórum tem cobrado pra que não haja situação de exploração.

“Estamos gestionando junto com o Demhab, para que diga (…) se o município dispõe de uma estrutura para acolher e dar uma situação digna a essas pessoas.”

Sul21 – Aqui em Porto Alegre, onde vive a maioria?
Elton – A maioria vive na região do Sarandi, e alguns em situação de ocupação. Tivemos recentemente uma reintegração de posse que foi suspensa momentaneamente. Estamos gestionando junto com o Demhab (Departamento Municpal de Habitação), para que diga para a sociedade o que vai acontecer com essas pessoas se houver esse cumprimento da ordem, se o município dispõe de uma estrutura para acolher e dar uma situação digna a essas pessoas. A ocupação das repúblicas é muito comum entre os senegaleses. Inclusive, o Mensageiros da Caridade tem auxiliado bastante para promover infraestrutura básica com eletrodomésticos e utensílios para eles.

“Acho que há uma integração, mas claro que a repercussão de casos desse tipo é muito maior do que os casos de acolhida.”

Sul21 – Com frequência ouvimos que há um pouco de racismo por parte da população aqui do Estado. No entanto, não observei isso quando conversei com migrantes em Caxias. Como o senhor percebe essa situação?
Elton –Eu me enganei no bom sentido, achei que haveria uma reação muito maior. Por exemplo, no Vale do Taquari há uma integração muito boa, uma recepção muito cordial da comunidade. Na região da serra, também achei que teria rejeição muito maior. Claro que, esporadicamente, vemos algumas reações. Em Caxias, houve resistência do próprio poder público, mas, devido ao trabalho que se fez, a situação mudou, por pressão das entidades e da Câmara de Vereadores.
Acho que há uma integração, mas claro que a repercussão de casos desse tipo é muito maior do que os casos de acolhida. Houve alguns casos de racismo que tiveram uma publicidade enorme, enquanto a grande integração que está existindo – inclusive no ambiente de trabalho – tem tido pouca repercussão. Um dia desses um motorista veio buscar uns móveis para um grupo de senegaleses e contou que eles trabalham em um atacado em Alvorada. Perguntei como era a relação e ele disse que era de perfeita integração. O preconceito ainda parte de alguns segmentos que temem que esses trabalhadores venham tirar postos de trabalho, ou fazer uma intervenção cultural ou por sua expressão religiosa. Há um preconceito que precisamos superar ainda.

Haitianos têm chegado à capital paulista desde o fechamento do abrigo em Brasileia, no Acre / Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Haitianos têm chegado à capital paulista desde o fechamento do abrigo em Brasileia, no Acre / 
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Sul21 – Muitos deixam as famílias em seus países e vem para cá trabalhar e enviar dinheiro para quem ficou. Eles estão conseguindo cumprir esse objetivo?
Elton – Isso é uma dificuldade muito grande. Estamos tentando fazer com que o Banrisul, por exemplo, facilite esse acesso. As conexões internacionais, sistema financeiro, não aceitam esse tipo de serviço, e colocam muitas dificuldades. Outra preocupação nossa, e estamos levando esse debate para tramitação do projeto da Nova Lei Migratória no Brasil, é assegurar que haja o direito da re-união familiar. Facilitar que as esposas e os filhos possam vir para cá, tenham um visto de entrada, que é uma garantia dada pela ONU ao migrante. E temos enfrentado dificuldade por conta de legislação e tramitação desses processos. No caso dos haitianos, há ainda dificuldade de renovar os vistos, devido aos valores muito altos cobrados pela embaixada do Haiti.

“A principal sugestão da nova lei é retirarmos da Polícia Federal o tratamento da questão migratória, e criar uma Autoridade Migratória.

Sul21 – O senhor mencionou a nova lei de migrações. Ela vai facilitar também para que os senegaleses possam se regularizar sem ter que pedir refúgio?
Elton – Nós estamos trabalhando para que facilite, mas já sabemos o que aconteceu no Congresso Nacional. O projeto começou pelo Senado, e a Casa revisora será a Câmara. Existem mais de 20 projetos de lei para mudança da lei migratória, já que ainda vivemos com uma lei de 1962, da época do regime militar. É uma lei de segurança nacional, não trata propriamente da migração. Então foi elaborado, por determinação do governo, um projeto de lei feito por um grupo de especialistas. E foram atendidas muitas das sugestões e demandas que nós da sociedade tínhamos.

Esse projeto começou a tramitação, e o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB) fez um projeto que se apropriou de muitas questões. No entanto, a principal sugestão da nova lei é retirarmos da Polícia Federal o tratamento da questão migratória, e criar uma Autoridade Migratória. Porque daí saímos da questão policialesca e damos um tratamento de direito humano para o migrante. Mas o senador não incluiu isso, pelo contrário, colocou como sendo estritamente uma função da Polícia. Tivemos ainda um dissabor enorme porque o senador Lasier Martins (PDT) propôs duas emendas, que foram acolhidas, de que o Brasil não pode receber quem está cumprindo medida cautelar e nem pessoas vítimas de tráfico humano. Acolher e assegurar a guarida das vítimas de tráfico humano é um direito humano maior do que vir ao Brasil trabalhar. Esperamos que na Câmara se possa fazer essa alteração e dar à lei um caráter humanitário.

Mas é uma luta árdua porque sabemos dos interesses políticos e ideológicos que têm envolvido a questão migratória. Nem todos entendem que a migração é um direito humano. Há ainda uma concepção de segurança nacional, que vigora em setores conservadores, e há também o preconceito de que os migrantes virão para cá para tirar postos de trabalho e trazer ideias contrárias às que nós temos, e implantar esses valores aqui. Não há razão para esta preocupação. Pelo contrário, temos que assegurar seu direito à cidadania universal.
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Reportagem por  Débora Fogliatto
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Fonte: Sul21 acesso 25/06/2015

quarta-feira, 24 de junho de 2015

O MILAGRE

 David Coimbra*
 
Uma árvore é um milagre. Estava olhando uma árvore que se ergue aqui perto de casa. É um grande e escuro carvalho. Suas raízes emergem do solo como jiboias e se transformam no tronco poderoso que dois homens juntos não conseguiriam abraçar. Ela se eleva para o céu, frondosa, orgulhosa, amenizando o clima à sua volta e abrigando uma pequena fauna, entre formigas, esquilos e passarinhos. Como é linda. Tamanha perfeição e imponência tem de ser um milagre.

Gosto de árvores. Tenho planos de visitar o Parque das Sequoias, na Califórnia, talvez ainda neste verão. Lá vive a rainha de todas as árvores da Terra, uma sequoia que já existia quando Alexandre, o Grande, usou mais a inteligência do que a força para domar o indomável garanhão Bucéfalo. Estou falando de uma árvore de 2 mil e 500 anos de idade e 82 metros de altura, tão alta quanto um prédio de 30 andares. Essa sequoia tem nome de homem: General Sherman. Deste nome não gosto. O general Sherman foi um matador de índios. Foi ele quem disse que “índio bom é índio morto”.

Os índios sabiam que as árvores são milagres.

Uma mulher grávida também é um milagre. Sempre fico encantado ao ver uma mulher grávida. Ela está “preparando outra pessoa”, como diria Caetano. Como isso é possível, um ser independente e individual se originar das entranhas de outro?

Uma mulher grávida, uma árvore, um gato se espreguiçando, uma tempestade no horizonte, o troar do trovão, o cheiro que se desprende da terra no começo da chuva de verão, o sol que se levanta todos os dias atrás do Monte Fuji, tudo isso é um milagre porque é apenas o que é. Verdade que a mulher grávida, ao contrário de todos os demais exemplos que citei, tem consciência de existir e da sua gravidez. Ela bem pode estar se preocupando com o futuro da pessoa que está dentro dela, mas o que está acontecendo com seu corpo, a formação do feto até a transformação em criança, aquele processo inteiro se dá independentemente da sua consciência. É uma atividade da natureza, como o ir e vir das ondas do mar. É um milagre.

O homem deixa de ser um milagre quando se inquieta com o que virá. Ele é o único elemento da natureza que tem a concepção do futuro. Na verdade, o homem inventou o futuro. Nem as formigas e os esquilos que acumulam mantimentos no carvalho perto da minha casa se angustiam com o futuro. Sua atividade faz parte do movimento da sua existência, como o dia que sucede a noite.

Tenho a convicção nada mística, mas completamente cerebral, de que nosso maior problema é pensar nos problemas. A cada dia basta o seu cuidado, disse Jesus. Mas aprender a viver bem o dia, sabendo que os problemas do dia seguinte só importam ao dia seguinte, isso também seria um milagre.
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* CRONISTA DA ZH
Fonte: ZH online, 24/06/2015
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O que os outros percebem do que somos

J.J. Camargo*

J.J. Camargo: o que os outros percebem do que somos Edu Oliveira/Arte ZH
As atitudes que consideramos normais são apenas modelos precários, forjados pela convivência superficial com o mais comum. O número de pessoas que não se encaixam no estereótipo do normal certamente é maior do que o perceptível. Em grande parte porque a maioria prefere ter suas excentricidades ignoradas, pois são naturalmente retraídas e ponto. Mas há as que camuflam seus gostos e preferências porque não têm coragem de se expor como diferentes. 

O João Ignácio era capataz de estância na fronteira e se via, pelo cuidado e pelas recomendações com que foi trazido para a enfermaria, que era o mimoso da patroa. Durante os poucos dias de convívio, mostrou-se meio tímido, conversa restrita ao essencial, sempre lendo alguma coisa. 

Lembro que, em uma quinta-feira, chegou ao ambulatório um negro velho do interior, traumatizado de tórax, várias costelas quebradas e a história de que dormira no banco da praça, gemente de dor, à espera que a Santa Casa abrisse. 

Com a necessidade óbvia de internar, a sequência de perguntas era sempre a mesma: primeiro, “onde?”, e depois, “no lugar de quem?”.

Repassando a lista de pacientes internados, paramos no João Ignácio. “Ele está bem, não está? Por que ainda não teve alta?” E a descoberta: a patroa avisou que vai mandar um carro buscá-lo no sábado, poupando-o do ônibus. Mandei chamá-lo: 

— Seu João, o senhor vai ter alta hoje, não podemos manter um leito bloqueado só à espera de seu transporte. O senhor pode perfeitamente ir de ônibus. 

— Pois até me animava, mas acontece que eu não tenho dinheiro!

— Isso não é problema, a gente paga a sua passagem.

Não sei qual era a moeda na época, mas lembro do total: 97. Quando entreguei-lhe o valor exato, ele contou o dinheiro e, com uma cara enviesada, queixou-se: 

— Mas nem uma sobrazinha? Se vê que o doutor não tem noção de quantas rodoviárias tem daqui até a fronteira. Nem um pastelzinho, nada? 

Foi assim que me encantei com o João Ignácio insuspeitado. Inteligente, debochado e com senso de humor. Mas descobri, com o tempo, que esse tipo de gente nunca se revela por inteiro. Muitos anos depois, em uma das diversas revisões que fizemos, ele expôs outra faceta, essa, para mim, a mais surpreendente. No fim da consulta, do nada, abriu uma sacola de pano puído e retirou de lá um caderno de capa grossa com as bordas meio esfiapadas e, quase balbuciante, alcançou-me o seu segredo: nas horas vagas, ele escrevia. Textos curtos, causos e versos, muitos versos.

— Nesta sacola, nem a mulher velha nunca botou a mão. Nunca contei para ninguém porque tenho vergonha do que os outros vão pensar. Mas agora que descobri que o meu doutor é metido a escrever em jornal, achei que ia entender e resolvi lhe contar. Na verdade, o mais perto que me arrisquei foi emprestar uns versos para o meu neto mais velho quando ele me contou que estava acabrunhado porque a professora exigiu que cada aluno levasse uma poesia para ler na aula. Não disse que era eu que tinha escrito, mas fui dar uma espiada. E quando o moleque declamou, fiz o maior fiasco: chorei que nem uma criança.

Na despedida, prometi que contaria esta história porque ela é linda demais. E, então, ele abriu um sorriso emocionado, espanou uma lágrima com as costas da mão e anunciou: 

— Mas bah, imagina se me faz uma coisa dessas! Não sei o que vai ser de mim, agora que até aprendi a chorar!
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 * Médico
Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
Fonte: ZH online, acesso 24/06/2015

O Papa, o aquecimento global e a encíclica ecológica

José Eustáquio Diniz Alves*

Laudato Si
Foto: Diocese de São José dos Campos

A encíclica ecológica do papa Francisco – cujo título “Laudato Si’” (“Louvado sejas”) faz referência ao Cântico das Criaturas, poema em que São Francisco de Assis chama o Sol, a Lua, a Água e a Terra de irmãos e irmãs – diz que o combate ao aquecimento global e à degradação do meio ambiente é um imperativo moral para todos os católicos. Em vez de dominar e explorar de forma predatória a natureza o ser humano deveria superar a “cultura do consumo e do descarte” e cuidar do meio ambiente

A encíclica é um chamado à ação e veio em boa hora, podendo contribuir com toda a luta ambientalista, com o engajamento dos cristãos na defesa dos ecossistemas, da biodiversidade e para que a Conferência das Partes (COP21) que vai reunir cerca de 200 países, em Paris, em dezembro de 2015, possa deliberar sobre um novo tratado do clima que substitua o limitado Protocolo de Kyoto, de 1997.

Os católicos somam cerca de 1,25 bilhão de pessoas e junto com 1,05 bilhão de evangélicos formam um contingente de 2,3 bilhões de cristãos, representando 31,5% da população mundial de 7,3 bilhões de habitantes em 2015. O Papa não tem divisões de guerra, mas tem força moral para influenciar a opinião pública católica, cristã e até mesmo de outras religiões e das pessoas sem filiação religiosa. Mas, independentemente do tamanho do seu rebanho, a mensagem do papa Francisco tem um apelo global sobre “o cuidado da casa comum” e no reconhecimento de que a intervenção humana está por detrás das alterações climáticas e da destruição sem precedentes dos ecossistemas da Terra.

O mais importante a destacar é que a Santa Sé reconheceu “Inúmeros estudos científicos que demonstram que nas últimas décadas o aquecimento global foi principalmente resultado de uma grande concentração de gases com efeito de estufa em função da atividade humana”. O Papa censurou as pessoas e as atitudes que continuam travando uma solução para a elaboração de um acordo internacional para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, criticou os céticos do clima que negam os fatores antropogênicos das mudanças climáticas e ironizou a crença ilimitada nas capacidades técnicas, como se o poder da tecnologia fosse uma força do mundo superior.

Na página 5 da encíclica o Papa clama por uma ação solidária universal: “Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós. O movimento ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho, tendo gerado numerosas agregações de cidadãos que ajudaram na consciencialização. Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução, mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas. Precisamos de nova solidariedade universal”.

O Papa Francisco reconhece que o ambiente natural está cheio de feridas produzidas pelo comportamento irresponsável do ser humano e, entre as ações e medidas urgentes apontadas para atacar o problema e mitigar a crise ambiental, ele propõe a substituição dos combustíveis fósseis e o investimento em energias renováveis. Também preconiza uma mudança do paradigma do “consumismo desenfreado” das sociedades ocidentais, que “crescentemente está a transformar o nosso planeta numa imensa lixeira”. O trecho abaixo é bastante elucidativo:

O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. A nível global, é um sistema complexo, que tem a ver com muitas condições essenciais para a vida humana. Há um consenso científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular. A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam. É verdade que há outros factores (tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito de estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto, e outros) emitidos sobretudo por causa da atividade humana. A sua concentração na atmosfera impede que o calor dos raios solares reflectidos pela terra se dilua no espaço. Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola” (p. 8).

Além da questão climática, a encíclica mostra o efeito da “carbonização” sobre os ecossistemas e sobre a cadeia alimentar: “Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção de parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das calotas polares e dos glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de alto risco, de gás metano, e a decomposição da matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda mais a emissão de anidrido carbônico. Entretanto a perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo anidrido carbônico aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considera que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras” (p. 9).

A encíclica considera que a propriedade privada em geral (e os recursos naturais em particular) é eticamente justificável apenas se servir ao bem comum. Apoia as negociações internacionais para redução das emissões nacionais de gases de efeito estufa e critica os mecanismos de mercado para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis: “A estratégia de compra-venda de ‘créditos de emissão’ pode levar a uma nova forma de especulação, que não ajudaria a reduzir a emissão global de gases poluentes. Este sistema parece ser uma solução rápida e fácil, com a aparência dum certo compromisso com o meio ambiente, mas que não implica de forma alguma uma mudança radical à altura das circunstâncias. Pelo contrário, pode tornar-se um diversivo que permite sustentar o consumo excessivo de alguns países e sectores” (p. 53). Depois deste claro posicionamento, espera-se agora que o Vaticano se posicione sobre a campanha do “desinvestimento” e a saída do banco do Vaticano dos investimentos em combustíveis fósseis.

A encíclica mostra que o efeito do aquecimento global e da degradação ambiental deve recair sobre os pobres, especialmente dos país mais pobres, e vai afetar muitos refugiados do clima. O Papa critica “os modelos atuais de produção e consumo” e denuncia as tentativas de “mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas”. Ele defende a difusão da energia limpa e renovável, a eficiência energética, e o menor uso de matérias-primas (desmaterialização). A encíclica considera a água um bem essencial para a vida humana e não humana: “A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos” (p. 10). Uma crise hídrica provoca uma crise alimentar e pode ser motivo de guerras. O Papa defende a biodiversidade: “A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies” (p. 11). “Os danos provocados pela negligência egoísta” provoca “os altíssimos custos da degradação ambiental”.

Na página 12, o Papa menciona “os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazônia e a bacia fluvial do Congo” e em seguida, influenciado pelo pensamento patriótico, critica “os enormes interesses econômicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles (plumões do planeta), podem atentar contra as soberanias nacionais”. Mesmo sendo verdade, o Papa deixou de falar da destruição da Amazônia que é provocada por forças econômicas “tupiniquins”, com a destruição provocada pelos garimpeiros, madeireiros, pela Usina de Belo Monte, pelo agronegócio, pela Zona Franca de Manaus, pelas rodovias e ferrovias projetadas, etc. Ainda no item “3. Perda de biodiversidade”, a encíclica critica o “desaparecimento dos manguezais”, a sobrepesca, a destruição dos recifes de corais, a poluição dos oceanos e defende todas as “espécies em vias de extinção”.

Na seção “Deterioração da qualidade de vida humana e degradação social” (p. 14), o Papa critica a insustentabilidade das grandes cidades, a imobilidade urbana a gentrificação, a violência, o narcotráfico, etc. Na seção seguinte critica as desigualdades e diz: “A desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com efeito, há uma verdadeira ‘dívida ecológica’, particularmente entre o Norte e o Sul”. E completa: “A dívida externa dos países pobres transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a dívida ecológica” (p. 17). Criticando a exploração dos países ricos sobre os pobres, o Papa ataca a “globalização da indiferença” (p. 17). Evidentemente, reforçar a ideia das “responsabilidades comuns mas diferenciadas” é super correto, porém, parece que a encíclica não foi critica o suficiente com as “elites nacionais” que degradam o ambiente e concentram a renda e a riqueza nos diversos países pobres ou de renda média.

Como escrevi no artigo “Pegada Ecológica: e se eliminarmos os países ricos?” (Alves, 19/07/2013): “Os 5,6 bilhões de habitantes dos países de renda baixa e de renda média (países em desenvolvimento), em 2008, tinham uma pegada ecológica total de 12,2 bilhões de hectares globais (gha), superior à capacidade de carga (biocapacidade) do Planeta. Desta forma, mesmo em uma situação hipotética em que os países ricos chegassem a zero em sua pegada ecológica, ainda assim o mundo estaria com problema ambiental e com uma Pegada Ecológica acima da Biocapacidade. E o pior é que os países do chamado “sul global” continuam com população em crescimento e com um modelo econômico que mimetiza o que tem de pior nos países desenvolvidos”. Ou seja, os países ricos tem uma dívida com os países pobres, mas ambos tem uma dívida com o meio ambiente. Os países pobres são vítimas, mas não deixam de ser também ecologicamente agressores da natureza. Assim, um dos grandes desafios globais é erradicar a pobreza no Terceiro Mundo sem destruir ainda mais os ecossistemas.

Neste sentido, o Papa fortalece de forma explícita a ideia do decrescimento das economias que vivem na superabundância. Ele diz: “Assim, se nalguns casos o desenvolvimento sustentável implicará novas modalidades para crescer, noutros casos – face ao crescimento ganancioso e irresponsável, que se verificou ao longo de muitas décadas – devemos pensar também em abrandar um pouco a marcha, pôr alguns limites razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde. Sabemos que é insustentável o comportamento daqueles que consomem e destroem cada vez mais, enquanto outros ainda não podem viver de acordo com a sua dignidade humana. Por isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes” (p. 60). Ou seja, numa situação de crescimento vegetativo negativo da população dos países ricos, o decrescimento da economia e do consumo vai possibilitar a redução das emissões de gases de efeito estufa e a redução da degradação ambiental.

O Capítulo II, “O Evangelho da Criação” (p. 20) faz uma abordagem teológica das questões ambientais. O Capítulo III, “A Raiz Humana da Crise Ecológica” (p. 32) o Papa fala do poder da tecnologia e dos avanços do progresso humano, mas acrescenta: “cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder” (p. 33). Na página 37 a encíclica aparentemente critica o antropocentrismo moderno e suas consequências: “O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente”. A critica do Papa ao antropocentrismo ocorre em função da prevalência de “a razão técnica acima da realidade” (p. 37). Ou seja, o Papa está criticando mais o processo que Max Weber chamava de racionalização e desencantamento do mundo. O Papa contorna o princípio colocado no livro do Gênesis, do Velho Testamento, que diz: “Frutificai, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”. Parece que, neste ponto, o Papa ficou aquém de São Francisco de Assis, embora busque substituir a ideia de “enchei a terra e sujeitai-a” por outra concepção mais amena: “Mas a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável” (p. 37). Ou seja, muda a ideia de ser humano dominador, para administrador.

A encíclica diz que a falta de preocupação por medir os danos à natureza e o impacto ambiental é apenas o reflexo do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas e faz uma defesa do pobre, da pessoa com deficiência e critica o aborto: “reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência”. Assim, embora a encíclica lembre São Francisco ao defender os espaços anecúmenos do Planeta: “São Francisco pedia que, no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por cultivar para aí crescerem as ervas silvestres” (p. 5), o Papa volta a defender o antropocentrismo característico da cultura judaico-cristã, inclusive critica o biocentrismo: “Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo físico, ‘corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade’. Um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído por um biocentrismo”. Neste ponto a encíclica se afasta de São Francisco de Assis e não fala nada sobre os crimes de especismo e ecocídio. A encíclica condena “experimentações sobre os animais”, mas não combate a alimentação cárnea e nem defende a dieta vegetariana, que estaria mais coerente com o espírito de São Francisco de Assis e a defesa de todos os seres vivos sencientes.

O Capítulo IV fala de “Uma Ecologia Integral” (p. 43) abarcando as dimensões econômica, social e ambiental: “A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E isto exige se sentar a pensar e discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de pôr em questão modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Nunca é demais insistir que tudo está interligado”. Reforçando as metodologias da Pegada Ecológica e das Fronteiras Planetárias o Papa chama a atenção para a possibilidade de um colapso ambiental: “As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões” (p. 50). Ele propõe um outro estilo de vida, criticando “o mercado tende a criar um mecanismo consumista compulsivo para vender os seus produtos” que gera um “consumismo obsessivo” (p. 63).

Não pretendo discutir todos os pontos da encíclica. Para não prolongar demais, comento um ponto que mostra a dubiedade da Igreja Católica em relação à dinâmica demográfica e aos direitos sexuais e reprodutivos. Na seção “5. Desigualdade planetária” a encíclica diz: “Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma redução da natalidade. Não faltam pressões internacionais sobre os países em vias de desenvolvimento, que condicionam as ajudas econômicas a determinadas políticas de «saúde reprodutiva». Mas, ‘se é verdade que a desigual distribuição da população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento e ao uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é plenamente compatível com um desenvolvimento integral e solidário’. Culpar o incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar os problemas” (p. 16).

Realmente o padrão de consumo conspícuo e o “consumismo obsessivo” causam um dano enorme ao meio ambiente. Mas não dá para ignorar a questão do crescimento populacional ilimitado. Não existe consumo sem população e nem população sem consumo. É verdadeiro que não devemos colocar a culpa de todos os problemas ambientais no crescimento demográfico. Mas isto não justifica a posição da Igreja de ser contra os métodos contraceptivos e até contra os preservativos e o sexo seguro.

Ou seja, a Santa Sé precisa repensar a encíclica Humanae Vitae, lançada pelo papa Paulo VI, em 1968. Até setores da igreja são a favor de rever as posições contra os direitos sexuais e reprodutivos. Em editorial de 23 de janeiro de 2015, a revista National Catholic Reporter afirma que a encíclica Humanae Vitae tem sido um sério impedimento à autoridade católica e que o seu texto criou um abismo entre os prelados e os padres, entre a hierarquia e os fiéis”. Ou seja, segundo setores da própria igreja Católica, há um clamor para rever a doutrina e as práticas e dogmas do Vaticano sobre a reprodução humana.

Enfim, já são esperadas criticas por parte dos setores conservadores, dos “céticos do clima” e dos neoliberais que acusam o Papa de ser populista, terceiromundista, contra o “livre mercado”, contra o crescimento econômico, anti-modernidade, catastrofista, a favor da teoria da dependência e de uma “ecologia da libertação”. Mas a encíclica “Laudato Si’” também deve ser criticada por setores de esquerda que apontam imprecisões, contradições e vários elementos populacionistas, anti-gênero e contra os direitos sexuais e reprodutivos. Todavia, será difícil não reconhecer o grande valor da encíclica no sentido de se posicionar em consonância ao conhecimento científico sobre o aquecimento global e de fazer uma defesa clara do meio ambiente, da biodiversidade e do duplo problema global a ser enfrentado no século XXI: “Já se ultrapassaram certos limites máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza” (p. 10).

Como disse o jornalista George Monbiot a encíclica do Papa Francisco é um “ponto de inflexão”, pois reafirma num momento crucial, antes da COP21, que a sobrevivência da humanidade depende da “proteção do mundo natural”, da superação da dependência aos combustíveis fósseis e da mudança do modelo de acumulação que leva ao “consumismo obsessivo” e à “cultura do descarte”, ou seja, à cultura do luxo e do lixo. A encíclica papal é antes de tudo uma mensagem de compaixão, amor e defesa dos pobres e do meio ambiente.

Referência:

Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco sobre o Cuidado da Casa Comum, Vaticano, 18/06/2015 http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.pdf
NATIONAL CATHOLIC REPORTER. Devemos ir além do impasse da “Humanae Vitae”, 26/01/2015
Planetary Boundaries 2.0 – new and improved, Stockholm Resilience Centre, Stockholm. Janeiro 2015
R. R. Reno, The Return of Catholic Anti-Modernism, First Things, 18/06/2015
ALVES, JED. Pegada Ecológica: e se eliminarmos os países ricos?, Ecodebate, RJ, 19/07/2013
Johan Rockström. The Climate Pope, Project Syndicate, 19/06/2015 http://www.project-syndicate.org/commentary/pope-francis-global-warming-by-johan-rockstrom-2015-06
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José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br