ALFREDO JERUSALINSKY*
A ILUSÃO DAS CRIANÇAS GENIAIS
Graças à tecnologia, adultos, cada vez mais, cultivam a ilusão das crianças geniais
–
É fantástico, meu filho com cinco anos maneja o iPad com uma velocidade
incrível. Ele consegue coisas que eu mesmo nem sei como funcionam.
– Os avós dele não querem chegar nem perto desses aparelhos e eu mesmo confesso não saber usar mais do que cinco ou seis aplicativos básicos. Com isso já me considero um gênio.
Conversas mantidas entre um destacado engenheiro e um modesto operário da construção enquanto este último atendia a uma chamada whatsapp no seu próprio tablet decidindo se enviava a resposta com comunicação para todos ou somente alguns amigos do Facebook.
Mais tarde, o filho de cinco anos de idade do pedreiro baixa um game no tablet do pai para aproveitar as duas horas entre a chegada dele (chegou do trabalho às 19h após duas horas de viagem de ônibus e Trensurb) e a hora da janta. As duas horas todos os dias mais esperadas pelo pequeno, não pelo arribo do pai – com quem trocará apenas meia dúzia de palavras – mas, porque chegará com ele o artefato mágico, a janela (Windows) pela qual voltará a entrar nesse mundo que tivera que abandonar desde ontem – já que, quando seu pai partiu para o trabalho, levando o tablet, ele ainda dormia.
Celulares, iPhones, iPads, tablets, laptops, PCs, são fabricados não para serem utilizados por uma elite intelectual, mas por todo mundo, quanto mais melhor. É difícil dizer se tal esforço adaptativo, tal amplitude operacional no desenho funcional desses artefatos, obedece a uma vocação democrática dos fabricantes e programadores ou a uma voracidade de mercado. Mas é certeza que eles são usados por um universo que compreende desde as mentes mais esclarecidas e sutis do planeta até as camadas semianalfabetas da população, desde as mais experientes e amadurecidas sabedorias até as formas mais pueris da inteligência humana. Idades e culturas, idiomas e ofícios os mais diversos se servem deles com igual fruição.
Uma sensação de inteligência triunfante, uma satisfação de terem vencido os mais intrincados labirintos da lógica, um gozo quase erótico de terem dominado por completo A Coisa, invade os vibrantes usuários após esses artefatos terem resolvido diversos problemas que eles não saberiam – e nunca saberão – resolver. Nunca saberão porque, no momento culminante em que o desdobramento de seu raciocínio os levou à borda de seu conhecimento, um botão apresentou-se ali, no exato marco dessa fronteira, para ativar o boneco que – colocado em marcha por um clique – transformará qualquer vicissitude lógica num código previsível, sem risco – seja de erro, equívoco, esquecimento, superstição, antipatia – nem perigo de desvio lógico para o usuário.
Do mesmo modo que um simpático robô desce da nave espacial em Marte e percorre a superfície desse mundo desconhecido trazendo já prontas ou quase prontas suas descobertas sem que astronauta nenhum tivesse que ter atravessado os riscos da aventura pelo território do imprevisível e o desconhecido, desse mesmo modo esses artefatos poupam o Homo sapiens de ter que se arriscar sem garantias para além dos limites lógicos de seu saber. É o “Outro” constituído em “Coisa” (ou talvez a “Coisa” constituída em “Outro”) quem, a partir de uma série relativamente pequena de cliques previstos no manual de instruções ou facilmente revelados pela experimentação empírica guiada por ícones (que aparecem e desaparecem na função de balizas que colocam o operador no caminho certo) efetuará fora do palco, na teia oculta de suas trilhas eletrônicas, todas as operações das quais o operador ver-se-á poupado. Mas, ainda um detalhe: esse outro-coisa, esse “Outro” oculto precisa ser rápido, ocupar apenas o tempo de um suspiro, para que o sujeito operador possa continuar a acreditar ser ele mesmo quem resolveu o problema. Velocidade instantânea para que a presença do verdadeiro operante não seja notada, para que os pais continuem a acreditar na genialidade de seu filho, para que não se note a diferença entre o operário e o acadêmico, entre o letrado e o analfabeto.
Eliminação fictícia da distância entre saber e não saber, entre conhecer e ignorar. Uma curiosa cultura que se poupa o esforço de transmitir a lógica em que ela funciona substituindo esse trabalho pela oferta de um artefato capaz ele mesmo de efetuá-la. Algo assim como um Santo Graal, um Cálice Sagrado, já não com essa estranha capacidade de transformar em sangue sagrado todo vinho que nele se vertesse, mas de tornar inteligente qualquer singelo toque da gema de um dedo, não importa se vivo ou morto. Com efeito, me perguntava a mim mesmo se ao encostar o dedo de um morto num botão qualquer da tela luminosa – tendo se produzido então alguma colorida transformação de figuras – o morto poderia se considerar a si mesmo autor dessa transformação?
Estranha forma de multiplicar a Mona Lisa, fazer de todos felizes possuidores-autores da obra de arte mais prezada, do sorriso mais misterioso sem que para isso seja necessário saber pintar e até mesmo nem sequer saber sorrir.
Ilusão de termos passado ao domínio supremo da inteligência sem limites, transformação do Homo sapiens em Homo web, ou seja, um novo estatuto humano em que os deuses portadores de todo saber não estão em todo lugar, para o qual precisavam possuir uma extensão sem limites; muito pelo contrário, eles ficam comprimidos até o minúsculo tamanho de um chip, como o gênio na lâmpada de Aladim, ou aqueles confinados eternamente numa garrafa.
Entretanto, a ilusão de contarmos cada vez mais com uma infância supostamente genial outorga às crianças um poder que, pela tenra textura e pela frágil consistência de seus ainda tênues laços sociais, só pode ser usado por elas para autogarantir uma maior extensão para seu próprio gozo. O gozo ora inaugural da crença na sua própria genialidade. Gozo de uma inteligência fictícia onde o tamanho de sua ficção passa a ser diretamente proporcional ao deprezo que sentem pelos ignorantes adultos que os rodeiam.
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* psicanalista
– Os avós dele não querem chegar nem perto desses aparelhos e eu mesmo confesso não saber usar mais do que cinco ou seis aplicativos básicos. Com isso já me considero um gênio.
Conversas mantidas entre um destacado engenheiro e um modesto operário da construção enquanto este último atendia a uma chamada whatsapp no seu próprio tablet decidindo se enviava a resposta com comunicação para todos ou somente alguns amigos do Facebook.
Mais tarde, o filho de cinco anos de idade do pedreiro baixa um game no tablet do pai para aproveitar as duas horas entre a chegada dele (chegou do trabalho às 19h após duas horas de viagem de ônibus e Trensurb) e a hora da janta. As duas horas todos os dias mais esperadas pelo pequeno, não pelo arribo do pai – com quem trocará apenas meia dúzia de palavras – mas, porque chegará com ele o artefato mágico, a janela (Windows) pela qual voltará a entrar nesse mundo que tivera que abandonar desde ontem – já que, quando seu pai partiu para o trabalho, levando o tablet, ele ainda dormia.
Celulares, iPhones, iPads, tablets, laptops, PCs, são fabricados não para serem utilizados por uma elite intelectual, mas por todo mundo, quanto mais melhor. É difícil dizer se tal esforço adaptativo, tal amplitude operacional no desenho funcional desses artefatos, obedece a uma vocação democrática dos fabricantes e programadores ou a uma voracidade de mercado. Mas é certeza que eles são usados por um universo que compreende desde as mentes mais esclarecidas e sutis do planeta até as camadas semianalfabetas da população, desde as mais experientes e amadurecidas sabedorias até as formas mais pueris da inteligência humana. Idades e culturas, idiomas e ofícios os mais diversos se servem deles com igual fruição.
Uma sensação de inteligência triunfante, uma satisfação de terem vencido os mais intrincados labirintos da lógica, um gozo quase erótico de terem dominado por completo A Coisa, invade os vibrantes usuários após esses artefatos terem resolvido diversos problemas que eles não saberiam – e nunca saberão – resolver. Nunca saberão porque, no momento culminante em que o desdobramento de seu raciocínio os levou à borda de seu conhecimento, um botão apresentou-se ali, no exato marco dessa fronteira, para ativar o boneco que – colocado em marcha por um clique – transformará qualquer vicissitude lógica num código previsível, sem risco – seja de erro, equívoco, esquecimento, superstição, antipatia – nem perigo de desvio lógico para o usuário.
Do mesmo modo que um simpático robô desce da nave espacial em Marte e percorre a superfície desse mundo desconhecido trazendo já prontas ou quase prontas suas descobertas sem que astronauta nenhum tivesse que ter atravessado os riscos da aventura pelo território do imprevisível e o desconhecido, desse mesmo modo esses artefatos poupam o Homo sapiens de ter que se arriscar sem garantias para além dos limites lógicos de seu saber. É o “Outro” constituído em “Coisa” (ou talvez a “Coisa” constituída em “Outro”) quem, a partir de uma série relativamente pequena de cliques previstos no manual de instruções ou facilmente revelados pela experimentação empírica guiada por ícones (que aparecem e desaparecem na função de balizas que colocam o operador no caminho certo) efetuará fora do palco, na teia oculta de suas trilhas eletrônicas, todas as operações das quais o operador ver-se-á poupado. Mas, ainda um detalhe: esse outro-coisa, esse “Outro” oculto precisa ser rápido, ocupar apenas o tempo de um suspiro, para que o sujeito operador possa continuar a acreditar ser ele mesmo quem resolveu o problema. Velocidade instantânea para que a presença do verdadeiro operante não seja notada, para que os pais continuem a acreditar na genialidade de seu filho, para que não se note a diferença entre o operário e o acadêmico, entre o letrado e o analfabeto.
Eliminação fictícia da distância entre saber e não saber, entre conhecer e ignorar. Uma curiosa cultura que se poupa o esforço de transmitir a lógica em que ela funciona substituindo esse trabalho pela oferta de um artefato capaz ele mesmo de efetuá-la. Algo assim como um Santo Graal, um Cálice Sagrado, já não com essa estranha capacidade de transformar em sangue sagrado todo vinho que nele se vertesse, mas de tornar inteligente qualquer singelo toque da gema de um dedo, não importa se vivo ou morto. Com efeito, me perguntava a mim mesmo se ao encostar o dedo de um morto num botão qualquer da tela luminosa – tendo se produzido então alguma colorida transformação de figuras – o morto poderia se considerar a si mesmo autor dessa transformação?
Estranha forma de multiplicar a Mona Lisa, fazer de todos felizes possuidores-autores da obra de arte mais prezada, do sorriso mais misterioso sem que para isso seja necessário saber pintar e até mesmo nem sequer saber sorrir.
Ilusão de termos passado ao domínio supremo da inteligência sem limites, transformação do Homo sapiens em Homo web, ou seja, um novo estatuto humano em que os deuses portadores de todo saber não estão em todo lugar, para o qual precisavam possuir uma extensão sem limites; muito pelo contrário, eles ficam comprimidos até o minúsculo tamanho de um chip, como o gênio na lâmpada de Aladim, ou aqueles confinados eternamente numa garrafa.
Entretanto, a ilusão de contarmos cada vez mais com uma infância supostamente genial outorga às crianças um poder que, pela tenra textura e pela frágil consistência de seus ainda tênues laços sociais, só pode ser usado por elas para autogarantir uma maior extensão para seu próprio gozo. O gozo ora inaugural da crença na sua própria genialidade. Gozo de uma inteligência fictícia onde o tamanho de sua ficção passa a ser diretamente proporcional ao deprezo que sentem pelos ignorantes adultos que os rodeiam.
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* psicanalista
Fonte: ZH online, 14/06/2015
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