"A história nos ensina tristemente como se degrada a religião
quando dela se faz um instrumento de poder
e de conquista, ou se
pretende impor"
Debate sobre a necessidade das aulas de religião nas escolas brasileiras, como as de física e matemática, é político, não educacional.
Assim como não existe nas escolas uma matéria sobre o amor, também
não deve existir sobre a religião. Existem coisas que se aprende com a
vida, dentro da família e da comunidade. E, principalmente, se vive.
O debate sobre a necessidade de se criar em um Estado laico
uma disciplina chamada religião junto com a física e a matemática é uma
verdadeira aberração. É um debate político, não educacional.
A história nos ensina tristemente como se degrada a religião quando
dela se faz um instrumento de poder e de conquista, ou se pretende
impor.
Pode-se discutir até o infinito se o sentido religioso ou sagrado é algo natural ao homo sapiens ou adquirido, mas não se pode impor uma forma de religião ou de fé.
Sabemos muito bem onde desembocaram os Estados confessionais, que foram a base da vida social da Idade Média, assim como das ditaduras
modernas de direita. Sabemos igualmente como acabaram fracassando, pelo
outro extremo, os regimes comunistas que tentaram barrar da história e
do ser humano o sentimento do sagrado.
Assim como não se pode impor por lei ou Constituição o ateísmo,
também não se pode impor qualquer tipo de crença. Se há algo que deve
ser deixado ao livre arbítrio, à esfera pessoal, é o sentir religioso ou
agnóstico da vida. Salvaguardar esses espaços de liberdade em matéria
de fé e religião, sem fazer deles instrumento de política ou de
conquista, é a melhor homenagem que se pode oferecer a eles.
É fato que a religião, como o amor, são tão antigos como a humanidade. Os primeiros seres humanos já enterravam seus mortos.
Mas, se não se deve ensinar a religião nas escolas, e menos ainda uma
religião determinada, para defender a liberdade dos alunos de decidir
pessoalmente como e no que acreditar em matéria religiosa, se poderia
sim ensinar a história das religiões.
Foi um amigo meu, o filósofo agnóstico Fernando Savater,
que me convenceu um dia de que todos (inclusive os não religiosos)
deveriam estudar como nasceram, se forjaram e atuaram no mundo as
diferentes formas de religiosidade, desde as monoteístas às panteístas,
assim como as infinitas formas de se manifestar do sentimento religioso
através da história nos diferentes continentes.
Meu amigo filósofo estava convencido de que, assim como se estuda
História da Arte e História da Filosofia, se deveria ensinar nas escolas
a História das Religiões, justamente para poder entender de um ponto de
vista puramente cultural a influência que as religiões tiveram e têm na
criação das diferentes artes, da pintura à arquitetura. E até mesmo da
própria filosofia.
Como explicar, por exemplo, a criação de templos, igrejas e
catedrais, as infinitas obras pictóricas ou de guerras criadas em nome
das religiões sem estudar a evolução e a história das mesmas através dos
séculos, vistas do ponto de vista histórico e político?
Se para qualquer aluno seria uma grave lacuna deixar de estudar, por
exemplo, a História da Arte e sua evolução desde as pinturas rupestres
até hoje, também o seria ignorar a existência das diferentes religiões e
o que elas criaram de positivo e de negativo ao longo dos tempos.
Desse estudo, que deve ser apenas acadêmico, à educação — como
pretendem algumas correntes religiosas — de uma religião concreta e
apresentada geralmente como melhor do que as outras e, às vezes, em antagonismo a elas, existe, no entanto, um abismo.
Um Estado laico, como é o Brasil por Constituição, não pode impor, sem infringir sua Carta Magna, a religião como disciplina nas escolas públicas.
A desculpa apresentada por alguns para defender a disciplina
obrigatória, de que a Constituição brasileira foi promulgada em 1988
“sob a proteção de Deus” é uma falácia. Essa alusão a Deus significa
apenas que este é um país onde o sentimento religioso, a presença do
sagrado, e em geral do divino, é algo que pertence à essência da
sociedade, e que, por isso mesmo, deixou sua marca na Carta Magna.
Essa é uma sociedade que leva em suas veias a mistura de muitas
crenças, começando pela cristã imposta pelos conquistadores, às vezes
com violência atroz, aos nativos que possuíam suas crenças religiosas,
das quais foram extirpados. Chegaram depois as ricas religiões africanas
trazidas pelos escravos, assim como as diferentes confissões dos
inúmeros imigrantes que chegaram a esta terra considerada abençoada
pelos deuses.
Essa mescla de religiões diferentes é o que faz com que o Brasil se distingua por sua rica cultura religiosa, sem guerras de religião, harmonizado e enriquecendo as diversas crenças.
Quando cheguei ao Brasil há anos, o teólogo da libertação e meu bom amigo Leonardo Boff
me explicou que para entender aqui o fenômeno religioso tão diferente,
por exemplo, do europeu, basta ver que um brasileiro pode pela manhã
batizar seu filho em uma igreja católica, assistir à tarde a uma
cerimônia espírita e, à noite, ir a um culto evangélico ou a uma reunião
do candomblé.
Acrescentou Boff: “Aqui nem os agnósticos e ateus ficarão chateados se forem saudados com um ´Deus te abençoe´”.
Se, por exemplo, os italianos já nascem com o sentimento de arte em
seu sangue, os brasileiros nascem com um profundo sentimento do sagrado,
sejam ou não religiosos. Ainda hoje, em plena modernidade, é algo
cultural, que ninguém tem o direito de combater nem de explorar, menos
ainda politicamente. É um patrimônio nacional. É uma forma de amar. E
isso não se ensina nem se impõe, se vive e se respira. E precisa poder
ocorrer em absoluta liberdade.
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Escreve Juan Arias, em artigo publicado no El País, 17-06-2015.
Fonte: IHU online, 22/06/2015
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