Estamos em pleno território de Umberto Eco o que nos predispõe
para as charadas e para os enigmas
Número Zero recupera, em tom de farsa, os temas que abundam
nos livros de ficção de Umberto Eco, senhor
daquilo a que o próprio
chama de “cultura monstruosa”
Tudo começa com uma torneira de segurança,
fechada misteriosamente durante a noite, no apartamento labiríntico do
narrador deste Número Zero,
o mais recente romance de Umberto Eco. Este confuso episódio
desencadeia suspeitas que não cessam de alimentar teorias da
conspiração, medos e fantasmagorias. Torna-se indispensável recuar 50 e
tal anos, para convocar memórias de acontecimentos aparentemente
desconexos mas fatalmente interligados. Estamos em pleno território de
Umberto Eco o que nos predispõe para as charadas e para os enigmas, tão
caros a este professor de semiótica que sempre afirmou que a filosofia
se equipara ao romance policial uma vez que, em ambos os casos, o que
interessa é saber quem é o autor do crime. E, neste Número Zero,
uma paródia ao jornalismo – e ao uso, ou antes, à manipulação da
linguagem e da imagem – Eco deita mão de um estratagema, ao imaginar a
criação de um periódico com características muito peculiares.
O percurso acidentado do narrador, Dr. Colonna (um “gémeo” mais
desafortunado do autor), tradutor de alemão, preceptor, escrevinhador
de recensões menores, ghost writer de um autor de livros
policiais que escreve sob pseudónimo, entre outras actividades mal pagas
e deprimentes, é afinal o caminho que o leva, aos cinquenta anos,
depois de muitas circunvalações, ao centro da acção e, talvez, ao amor.
Simei,
o “homem sem cara”, jornalista e futuro director do jornal, convoca-o
para escrever um livro que fará dele um homem com uns bons milhões no
bolso, “livres de impostos”. Por detrás da arriscada operação está um
tal comendador Vimercate, magnata multimilionário com ocupações mais do
que duvidosas. O jornal poderá ou não materializar-se, dependendo do que
acontecer com o número zero, que deverá exercer o poder da pressão e o
grau de extorsão necessários e desejáveis na pantanosa área da alta
finança e da política. Caberá a Colonna escrever a ficção da preparação
de um periódico inexistente – supostamente dedicado à análise e ao
“jornalismo topo de gama”, com “isenção e ética inabaláveis” – que
funcionará como um “teste”.
A partir deste ponto, Umberto Eco
lança-se numa fábula desvairadamente cómica sobre a prática jornalística
com o “doutor” Colonna a vigiar o estilo e guiar os colaboradores – uma
equipa oriunda dos mais rocambolescos recônditos – no apuramento de uma
linguagem que, como recorda Simei, se dirige a leitores com uma
“mentalidade de doze anos”, seja qual for a verdadeira idade. O jornal
chamar-se-á Amanhã para contrariar todos os outros que dão
notícias da véspera e não terá revisor – uma espécie extinta – uma vez
que os consumidores já estão habituados a ler sobre “de Beauvoire ou
Beaudelaire, ou Rooswelt nos grandes diários” e não vale a pena
alarmá-los com purismos.
Tudo acontece entre um sábado – 6 de
Junho de 1992 e a quinta-feira seguinte. As datas estão claramente
indicadas mas, entre uma e outra, existe o clássico regresso a um
passado próximo, em Abril e Maio do mesmo ano, acrescido de uma passagem
pela História do século XX, com inclusão do bizarro e macabro episódio
da morte de Mussolini e do seu duplo, do governo de Andreotti e do caso
Aldo Moro, sem esquecer outros acontecimentos com ramificações dúbias.
Num
romance de Eco todos os detalhes têm importância e fazem parte do
grande jogo que o autor nos propõe: dos nomes das ruas e das praças de
Milão aos cemitérios escondidos, das características dos automóveis à
Ciência, das manigâncias da CIA aos negócios do petróleo, da corrupção
na política às pressões na Justiça, da NATO ao PC italiano, das
referências ao passado histórico à erudição vernácula, da habilidade em
passar da “baixa” à “alta” Cultura, nada fica por dizer na construção de
tramas sinistras e conspirações sem fim, tão caras ao autor. Para além
da questão muito dúbia da veracidade da História, Eco nunca esquece os
cadáveres putrefactos que continuam a destilar o seu fedor no pouco
saudável ambiente da política, da finança e do tão falado “quarto
poder”.
Número Zero é uma caricatura bem realista de uma
cartilha jornalística maquiavélica e Eco, implacável e corrosivo, não se
inibe em desmontar a máquina trituradora dos média contemporâneos. Uma
vez que como afirma Simei, “não são as notícias que fazem o jornal, mas o
jornal que faz as notícias”, é neste cliché que está contido todo o
divertimento do autor que não se inibe de apontar a arquitectura das
patranhas veiculadas todos os dias, a toda a hora, pela televisão e
pelos jornais, no sentido de manobrar a opinião pública e privada,
retirando aos factos toda a verdade inconveniente.
Número Zero recupera,
em tom de farsa, os temas que abundam nos livros de ficção de Umberto
Eco, senhor daquilo a que o próprio chama de “cultura monstruosa”: a
questão das oscilações do tempo (como em A Ilha do Dia Antes), a falibilidade da memória (como em A Misteriosa Chama da Rainha Loana), as conspirações e segredos (como em O Nome da Rosa, em “o Cemitério de Praga” e, evidentemente em O Pêndulo de Foucault)
e, de uma forma caricatural, os seus trabalhos de investigação
dedicados à cultura de massas e ao poder dos média, iniciadas em 1961
com o ensaio Fenomenologia di Mike Bongiorno – dedicado ao quizz show mais popular em Itália, na altura – ensaio esse incluído em “Diário Mínimo” cujas observações foram depois alargadas no famoso Apocalípticos e Integrados, onde Eco analisa o fenómeno da comunicação a partir de um ponto de vista sociológico. Num artigo publicado em The Telegraph,
a propósito das manigâncias de Sílvio Berlusconi, Eco escreveu que
“sentia alguma hesitação em defender a liberdade de imprensa, uma vez
que se é necessário intervir neste sector isso quer dizer que a
sociedade e, portanto, a própria imprensa, está profundamente doente. “ E
acrescenta que, “ a culpa não é de Berlusconi mas sim dos cidadãos que,
com a sua passividade, têm deixado que esta patranha se consuma.” É
essa a preocupação que está bem patente neste livro.
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