Lídia Jorge na biblioteca da sua casa, em Lisboa
Lídia Jorge fala sobre leitura, as histórias que lhe fizeram
companhia ao longo da vida e o poder metafórico dos livros. “Neste
momento”, diz, “há milhares de páginas a serem escritas que podem
renovar o mundo”.
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Foi comprando as fotografias a preto e branco,
de Virginia Woolf, William Faulkner, Tennessee Williams, Samuel Beckett,
Franz Kafka ou Camilo Pessanha, ao longo dos anos. Não tanto por
admiração ou para procurar inspiração, mas como companhia. Escrever pode
ser solitário. Ler, pelo contrário, é uma maneira de não estar sozinho.
E ainda que os livros desapareçam, fiquem perdidos pelo caminho, entre
mudanças de casas, de cidades ou de países, muitos problemas de espaço, a
memória da leitura já será suficiente para se andar por qualquer lado
com uma pequena multidão.
Foi sobre a memória de algumas leituras
que fez durante a vida que falámos com Lídia Jorge. Isso, e a
importância que continua a ter uma maneira de olhar para o mundo que é
própria da literatura e que talvez seja insubstituível. Falar de livros é
falar de metáforas e logo de realidade: de política, de amor, de
guerra, de erotismo.
Lídia Jorge tem sido reconhecida como uma das mais importantes
escritoras europeias e, em Portugal, faz parte de uma geração marcada
pela experiência da ditadura, da relação colonial, da violência da
guerra. Uma geração que viu tudo mudar e, depois, tanto permanecer.
Na
parede em frente da pequena galeria de escritores, ou na parede atrás
da câmara do fotógrafo para onde olha, está um pequeno quadro com uma
citação do escritor argelino assassinado em 1993, Tahar Djaout: “Le
silence c'est la mort / et toi si tu te tais / tu meurs / et si tu
parles / tu meurs / alors dis et meurs” (“O silêncio é a morte / e tu se
tu te calas / tu morres / e se tu falas / tu morres / então diz e
morre”).
As primeiras companhias
“Lembro-me muito bem do primeiro livro que li, Maria Tonta [como Eu]. Começava: 'Maria Tonta, Maria Tonta, Maria Tonta, de tanto ouvir repetir Maria Tonta já não se lembrava do verdadeiro nome, Maria Francisca, como a mãe lhe chamava quando era pequenina.' A Maria Tonta foi uma grande companheira. Foi o primeiro livro que aprendi a ler por mim mesma.”
Era a história de uma menina que parte de uma aldeia,
que podia ser uma aldeia como a aldeia onde Lídia Jorge cresceu no
Algarve, para a cidade, mas acaba por não se adaptar e regressa a casa.
“Eram
tantas as asneiras que ela fazia que resolveu voltar para a terra e ao
regressar, e ao ver os pinheiros da aldeia, pensa que não se importa que
a chamem de Maria Tonta. Eu tinha pena dela, pena daquele destino.
Sentia-me incomodada com aquela escolha – então agora já não se importa
que a chamem de Maria Tonta – mas, por outro lado, achava que ali é que
ela estava no sítio certo. Não conseguia decidir se ela tinha feito bem
ou não. Até hoje, não consegui resolver essa questão. Acho que foi a
primeira obra aberta que li.”
Lídia Jorge cresceu rodeada de mulheres. A mãe ensinou-a a ler,
antes da escola. E com a avó, que lhe contava histórias tradicionais,
aprendeu a ouvir.
“A minha avó tinha um regaço maravilhoso. Abria
os dois joelhos e eu sentava-me na saia, fazia um balouço. Ficava a
vê-la de baixo para cima. Ainda hoje, quando vejo uma criança a ouvir
histórias penso nisso, na sabedoria que vinha do alto, da boca da minha
avó.”
Assim que soube ler bem, começou a ler alto nos serões, para
as outras mulheres da família. Cada noite lia mais um pouco de um
romance, e cada noite as ouvintes seguiam a história, envolvendo-se com
as personagens, alegrando-se, temendo, chorando lágrimas verdadeiras por
elas. Foi assim, através desses livros que lia em voz alta, que começou
a entrar, muito cedo, no mundo dos adultos.
Sujar as mãos
“Um personagem levantou-se e disse. Isto é uma história. E eu disse. Sim. É uma história.”, lê-se no início de O Dia dos Prodígios. O primeiro romance de Lídia Jorge foi publicado em 1980 quando percebeu que as personagens, como os mortos – os passados e os futuros – se levantavam, diziam coisas a quem ouvisse.
Na altura da Guerra Colonial, Lídia Jorge estava em Moçambique e sobre esse período e essa memória escreveria em A Costa dos Murmúrios.
Não estava na frente da batalha, mas tudo era uma frente naquela
altura. Sozinha, sem muitas pessoas que conhecesse e ainda menos pessoas
com quem partilhasse interesses, lia. “Vivia aquele mundo com uma
espécie de silêncio.” Ler era um pequeno refúgio mas, simultaneamente,
um ampliar de mundo. “Foram leituras que me abriam o mundo, ao mesmo
tempo que eu estava a abrir o meu mundo”, conta.
Noutra paisagem,
noutra cultura, tão distante da visão central europeia, fazia sentido
procurar outras literaturas. Embora já conhecesse alguma da literatura
norte-americana que a influenciou, sobretudo Faulkner, foi em África
que leu os sul-americanos. A exuberância daquela literatura condizia com
a exuberância da paisagem. “Lembro-me de uma viagem que fiz entre a
Beira e Maputo, com o Rayulea, o Jogo da Amarelinha, do Cortázar. Ia a meio do livro e lembro-me do desejo que tinha de chegar para continuar a ler.”
De certa forma, O Dia dos Prodígios
é um livro sob a influência de Juan Rulfo ou de Gabriel García Márquez
ou Julio Cortázar – ou mesmo William Faulkner – não tanto porque
procurasse neles um estilo ou uma escola, mas porque foram autores que a
ajudaram a acreditar na sua própria história.
“O que eles me
vieram dizer era que o imaginário que eu trazia comigo era válido
literariamente. Havia um imaginário do romance francês, na moda na
altura, que me parecia um luxo. Porque eu tinha uma história bárbara,
uma vida semi-selvagem atrás de mim, no lugar onde tinha crescido, e em
África onde tinha tido uma experiência tão forte. Eles mostraram-me que
não era preciso lavar demasiado as mãos. Mesmo com as mãos sujas, podia
escrever. Não era tanto o estilo mas a posição deles: a crença de que as
raízes contam.”
Lídia Jorge tinha desde sempre conhecido a sua Comala ou o seu Macondo, isto é, a nossa Comala ou Macondo, e lançou O Dia dos Prodígios na muito jovem democracia que era então Portugal, em que tudo parecia estar a mudar, quase de um dia para outro.
“Acho
que escrevi esse primeiro romance como uma espécie de ultra-reportagem –
de um povo que ia mudar”, diz. “Depois não mudou assim tanto.”
Terreno para caminhar
Há livros que são, para um escritor, como mapas. Não mapas precisos fabricados com a mais alta tecnologia, mas mapas em processo, mapas de quando ainda de desconheciam partes do mundo e iam sendo marcados na água os lugares onde se descobria que afinal ali havia terra firme.
Desde
pequena que parecia natural a Lídia Jorge que os livros fossem escritos
por homens ou por mulheres, e que fossem lidos por homens e por
mulheres. Foi só em adulta que entendeu que não era tão simples.
Tinha
lido a Agustina Bessa-Luís, a Isabel de Nóbrega, a Sophia de Mello
Breyner, mas foi sobretudo com a Maria Teresa Horta, a Maria Velho da
Costa e a Maria Isabel Barreno, e as Novas Cartas Portuguesas,
publicado em 1972 e logo banido pelo regime, que Lídia Jorge começou a
pensar sobre esse espaço de conquista e no tempo de falar do corpo ou da
intimidade.
“A nossa diferença de idade não é muita, mas eu tive a
ideia de que era um terreno conquistado, que estava feito. E fui
completamente tomada pela questão da História. Creio que as escritoras
da minha geração tiveram outra urgência: a de falar das mulheres no seu
papel na História.”
E esse é o terreno que ela talvez tenha
aplanado para os escritores – e leitores – seguintes. Vivemos num mundo
pós-colonial, mas foi preciso primeiro escrever – e ler – o mundo
colonial.
“Acho que essa experiência que então se chamava Ultramar
foi a experiência cultural mais marcante do último século e meio para
Portugal”, diz. Para Lídia Jorge é essa relação com os outros
continentes e a experiência da violência da guerra que une os escritores
da sua geração, os que foi lendo ao mesmo tempo que fazia o seu
percurso como escritora, até perceber, mais tarde, que era talvez esse o
contributo que estavam a dar: abrir portas para o imaginário do outro, o
que lhe parece cada vez mais relevante num mundo onde nos podemos
deslocar com uma velocidade estonteante, e onde essa velocidade física
nem sempre vai a par com a mudança de mentalidades.
Hoje, acha,
“desprenderam-se as amarras” da política, das escolas, de género, e
interessa-lhe, como leitora também, a individualidade que a escrita
permite. Como lhe interessa continuamente uma ideia de literatura em que
o pensamento metafórico é capaz de nos transportar para os mistérios,
resolvê-los ou deixá-los enigmáticos, mas sempre fazendo-nos comungar da
humanidade. Continua a procurar nos autores novos, a descoberta, mas
também a companhia. E a segurança de que, enquanto está aqui sentada a
dar uma entrevista, “há milhares de páginas a serem escritas que podem
renovar o mundo”.
“O que procuro nos livros que leio hoje: uma música e uma imagem gratificadora”, diz. Recentemente, descobriu um livro chamado La lucina,
de António Moresco, e gostava de o ver traduzido. Um homem parte para
uma floresta para viver isolado. E no entanto, à noite, na floresta onde
julgava estar completamente só, uma pequena luz acende-se.
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