domingo, 14 de junho de 2015

Lídia Jorge: Música e imagens gratificadoras

 
Lídia Jorge na biblioteca da sua casa, em Lisboa
Lídia Jorge fala sobre leitura, as histórias que lhe fizeram companhia ao longo da vida e o poder metafórico dos livros. “Neste momento”, diz, “há milhares de páginas a serem escritas que podem renovar o mundo”.
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Lídia Jorge senta-se na sua biblioteca para ser fotografada. Escolhe-se, para a fotografia, o canto onde tem imagens de escritores nas prateleiras, pequenos quadros cobrindo algumas lombadas da biblioteca. Senta-se e olha para a câmara, enquanto faz perguntas sobre os ângulos preferidos dos fotógrafos. A luz vem da janela à direita, alta sobre uma grande avenida de Lisboa. Lídia Jorge tem uma elegância que combina com aquelas imagens de escritores que guardou, faz pensar noutro tempo e, por outro lado, parece que o tempo não passa por ela, como uma xerazade que tivesse encontrado o segredo para entreteter o grande carrasco.
Foi comprando as fotografias a preto e branco, de Virginia Woolf, William Faulkner, Tennessee Williams, Samuel Beckett, Franz Kafka ou Camilo Pessanha, ao longo dos anos. Não tanto por admiração ou para procurar inspiração, mas como companhia. Escrever pode ser solitário. Ler, pelo contrário, é uma maneira de não estar sozinho. E ainda que os livros desapareçam, fiquem perdidos pelo caminho, entre mudanças de casas, de cidades ou de países, muitos problemas de espaço, a memória da leitura já será suficiente para se andar por qualquer lado com uma pequena multidão.

Foi sobre a memória de algumas leituras que fez durante a vida que falámos com Lídia Jorge. Isso, e a importância que continua a ter uma maneira de olhar para o mundo que é própria da literatura e que talvez seja insubstituível. Falar de livros é falar de metáforas e logo de realidade: de política, de amor, de guerra, de erotismo.
Lídia Jorge tem sido reconhecida como uma das mais importantes escritoras europeias e, em Portugal, faz parte de uma geração marcada pela experiência da ditadura, da relação colonial, da violência da guerra. Uma geração que viu tudo mudar e, depois, tanto permanecer.

Na parede em frente da pequena galeria de escritores, ou na parede atrás da câmara do fotógrafo para onde olha, está um pequeno quadro com uma citação do escritor argelino assassinado em 1993, Tahar Djaout: “Le silence c'est la mort / et toi si tu te tais / tu meurs / et si tu parles / tu meurs / alors dis et meurs” (“O silêncio é a morte / e tu se tu te calas / tu morres / e se tu falas / tu morres / então diz e morre”).
 As primeiras companhias

“Lembro-me muito bem do primeiro livro que li, Maria Tonta [como Eu]. Começava: 'Maria Tonta, Maria Tonta, Maria Tonta, de tanto ouvir repetir Maria Tonta já não se lembrava do verdadeiro nome, Maria Francisca, como a mãe lhe chamava quando era pequenina.' A Maria Tonta foi uma grande companheira. Foi o primeiro livro que aprendi a ler por mim mesma.”

Era a história de uma menina que parte de uma aldeia, que podia ser uma aldeia como a aldeia onde Lídia Jorge cresceu no Algarve, para a cidade, mas acaba por não se adaptar e regressa a casa.

“Eram tantas as asneiras que ela fazia que resolveu voltar para a terra e ao regressar, e ao ver os pinheiros da aldeia, pensa que não se importa que a chamem de Maria Tonta. Eu tinha pena dela, pena daquele destino. Sentia-me incomodada com aquela escolha – então agora já não se importa que a chamem de Maria Tonta – mas, por outro lado, achava que ali é que ela estava no sítio certo. Não conseguia decidir se ela tinha feito bem ou não. Até hoje, não consegui resolver essa questão. Acho que foi a primeira obra aberta que li.”
Lídia Jorge cresceu rodeada de mulheres. A mãe ensinou-a a ler, antes da escola. E com a avó, que lhe contava histórias tradicionais, aprendeu a ouvir.

“A minha avó tinha um regaço maravilhoso. Abria os dois joelhos e eu sentava-me na saia, fazia um balouço. Ficava a vê-la de baixo para cima. Ainda hoje, quando vejo uma criança a ouvir histórias penso nisso, na sabedoria que vinha do alto, da boca da minha avó.”

Assim que soube ler bem, começou a ler alto nos serões, para as outras mulheres da família. Cada noite lia mais um pouco de um romance, e cada noite as ouvintes seguiam a história, envolvendo-se com as personagens, alegrando-se, temendo, chorando lágrimas verdadeiras por elas. Foi assim, através desses livros que lia em voz alta, que começou a entrar, muito cedo, no mundo dos adultos.

Sujar as mãos

“Um personagem levantou-se e disse. Isto é uma história. E eu disse. Sim. É uma história.”, lê-se no início de O Dia dos Prodígios. O primeiro romance de Lídia Jorge foi publicado em 1980 quando percebeu que as personagens, como os mortos – os passados e os futuros – se levantavam, diziam coisas a quem ouvisse.

Na altura da Guerra Colonial, Lídia Jorge estava em Moçambique e sobre esse período e essa memória escreveria em A Costa dos Murmúrios. Não estava na frente da batalha, mas tudo era uma frente naquela altura. Sozinha, sem muitas pessoas que conhecesse e ainda menos pessoas com quem partilhasse interesses, lia. “Vivia aquele mundo com uma espécie de silêncio.” Ler era um pequeno refúgio mas, simultaneamente, um ampliar de mundo. “Foram leituras que me abriam o mundo, ao mesmo tempo que eu estava a abrir o meu mundo”, conta.

Noutra paisagem, noutra cultura, tão distante da visão central europeia, fazia sentido procurar outras literaturas. Embora já conhecesse alguma da literatura norte-americana que a influenciou, sobretudo  Faulkner, foi em África que leu os sul-americanos. A exuberância daquela literatura condizia com a exuberância da paisagem. “Lembro-me de uma viagem que fiz entre a Beira e Maputo, com o Rayulea, o Jogo da Amarelinha, do Cortázar. Ia a meio do livro e lembro-me do desejo que tinha de chegar para continuar a ler.”

De certa forma, O Dia dos Prodígios é um livro sob a influência de Juan Rulfo ou de Gabriel García Márquez ou Julio Cortázar – ou mesmo William Faulkner – não tanto porque procurasse neles um estilo ou uma escola, mas porque foram autores que a ajudaram a acreditar na sua própria história.

“O que eles me vieram dizer era que o imaginário que eu trazia comigo era válido literariamente. Havia um imaginário do romance francês, na moda na altura, que me parecia um luxo. Porque eu tinha uma história bárbara, uma vida semi-selvagem atrás de mim, no lugar onde tinha crescido, e em África onde tinha tido uma experiência tão forte. Eles mostraram-me que não era preciso lavar demasiado as mãos. Mesmo com as mãos sujas, podia escrever. Não era tanto o estilo mas a posição deles: a crença de que as raízes contam.”

Lídia Jorge tinha desde sempre conhecido a sua Comala ou o seu Macondo, isto é, a nossa Comala ou Macondo, e lançou O Dia dos Prodígios na muito jovem democracia que era então Portugal, em que tudo parecia estar a mudar, quase de um dia para outro.

“Acho que escrevi esse primeiro romance como uma espécie de ultra-reportagem – de um povo que ia mudar”, diz. “Depois não mudou assim tanto.”

Terreno para caminhar

Há livros que são, para um escritor, como mapas. Não mapas precisos fabricados com a mais alta tecnologia, mas mapas em processo, mapas de quando ainda de desconheciam partes do mundo e iam sendo marcados na água os lugares onde se descobria que afinal ali havia terra firme.

Desde pequena que parecia natural a Lídia Jorge que os livros fossem escritos por homens ou por mulheres, e que fossem lidos por homens e por mulheres. Foi só em adulta que entendeu que não era tão simples.

Tinha lido a Agustina Bessa-Luís, a Isabel de Nóbrega, a Sophia de Mello Breyner, mas foi sobretudo com a Maria Teresa Horta, a Maria Velho da Costa e a Maria Isabel Barreno, e as Novas Cartas Portuguesas, publicado em 1972 e logo banido pelo regime, que Lídia Jorge começou a pensar sobre esse espaço de conquista e no tempo de falar do corpo ou da intimidade.

“A nossa diferença de idade não é muita, mas eu tive a ideia de que era um terreno conquistado, que estava feito. E fui completamente tomada pela questão da História. Creio que as escritoras da minha geração tiveram outra urgência: a de falar das mulheres no seu papel na História.”

E esse é o terreno que ela talvez tenha aplanado para os escritores – e leitores – seguintes. Vivemos num mundo pós-colonial, mas foi preciso primeiro escrever – e ler – o mundo colonial.

“Acho que essa experiência que então se chamava Ultramar foi a experiência cultural mais marcante do último século e meio para Portugal”, diz. Para Lídia Jorge é essa relação com os outros continentes e a experiência da violência da guerra que une os escritores da sua geração, os que foi lendo ao mesmo tempo que fazia o seu percurso como escritora, até perceber, mais tarde, que era talvez esse o contributo que estavam a dar: abrir portas para o imaginário do outro, o que lhe parece cada vez mais relevante num mundo onde nos podemos deslocar com uma velocidade estonteante, e onde essa velocidade física nem sempre vai a par com a mudança de mentalidades.

Hoje, acha, “desprenderam-se as amarras” da política, das escolas, de género, e interessa-lhe, como leitora também, a individualidade que a escrita permite. Como lhe interessa continuamente uma ideia de literatura em que o pensamento metafórico é capaz de nos transportar para os mistérios, resolvê-los ou deixá-los enigmáticos, mas sempre fazendo-nos comungar da humanidade. Continua a procurar nos autores novos, a descoberta, mas também a companhia. E a segurança de que, enquanto está aqui sentada a dar uma entrevista, “há milhares de páginas a serem escritas que podem renovar o mundo”.

“O que procuro nos livros que leio hoje: uma música e uma imagem gratificadora”, diz. Recentemente, descobriu um livro chamado La lucina, de António Moresco, e gostava de o ver traduzido. Um homem parte para uma floresta para viver isolado. E no entanto, à noite, na floresta onde julgava estar completamente só, uma pequena luz acende-se.
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REPORTAGEM por

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