J.J. Camargo*
Dizem que viver muito habilita o vivente a conviver com a ideia da
morte. Pode ser. Os velhos que adoecem — e as famílias dos velhos que
morrem — veem a morte com uma naturalidade que explica até a conversa
animada durante o café da madrugada, um momento sempre dissimuladamente
agradável nos velórios na casa grande dos senhores da terra.
Conheci seu Sabino muito antes de ele ser o protagonista desse
encontro familiar indesejado, quando suspiros esparsos eram as maiores
manifestações de inconformismo com o ocorrido. Todos tinham um ar
moderadamente grave, mas sem choros incontroláveis nem espaço para
faniquitos, nem ninguém anunciando a intenção de ir com ele no caixão
que foi fechado com o respeito que ele fez por merecer, sem indagações
espalhafatosas sobre o destino dos que ficaram para trás.
Dez anos antes, quando sentou à minha frente para a primeira
consulta, tinha aquele ar de poucas dúvidas dos homens sábios que beiram
os 80 e ouvem as opiniões de quem quer que seja com cara de "não tente
me impressionar".
Tinha um nódulo de pulmão com menos de 2cm de diâmetro, o que o
colocava no estágio I, o grupo ideal para o tratamento cirúrgico do
câncer de pulmão, mas lamentavelmente raro, porque depende de uma busca
planejada ou de um achado acidental, por ser sempre assintomático.
Com o objetivo de conduzir a consulta de modo que ele concluísse que
devíamos operá-lo, mostrei a lesão na tomografia, expliquei como crescia
e com que velocidade, e apontei a vizinhança do lobo inferior porque,
se fosse invadido, seria necessário remover mais pulmão para extirpar o
tumor.
Para não deixar nenhum contra-argumento a descoberto, antecipei-me em
esclarecer que o fato de ele não sentir nada se devia à ausência de
inervação no interior do pulmão, e que isso significava que, em todo
tumor pulmonar com sintomas como dor, por exemplo, queria dizer que a
doença invadira alguma estrutura fora do pulmão, e, então, a chance de
cura era menor.
Apresentadas as justificativas, parei, à espera de uma resposta. Ele
ficou um longo tempo em silêncio e resumiu: "Vou me entregar, mas não
pense que é por medo dessa bolinha que duvido muito possa matar um homem
como eu, criado no rigor do campo. Acontece que tenho 12 netos, e não
tenho vergonha de dizer que um deles me enfeitiçou, e até faço uma força
danada pros outros não perceberem. Pois justo esse entrou na Faculdade
de Medicina agora em janeiro. Não posso me atrasar por doença e perder a
formatura do guri! Imagina depois, então, ter um doutor só pra eu
acreditar, e sem necessidade de florear tanto sobre a minha doença! Se
me dá essa garantia, pode me cortar!".
Cuidar dele foi a dádiva de descobrir o amigo mais puro, capaz de
falar sobre todas as coisas, com a espontaneidade de quem tinha uma
enciclopédia no coração.
No velório, 10 anos depois, a filha disse que o pai sempre referia
uma dívida que tinha com o médico sem nunca contar o que era. Com a
nossa conversa remota bem viva na memória, achei melhor enterrar a nossa
combinação em segredo. Talvez um dia eu sentisse que valia a pena
contar esta história. Então sentiria saudade dele.
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* Médico
Fonte: ZH online, 07/06/2015
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