segunda-feira, 22 de junho de 2015

DEUS, PÁTRIA...? NÃO, SÓ FAMÍLIA.


Namoraram, saíram de casa dos pais para casarem pela igreja, tiveram filhos antes dos 30. Já não são a família portuguesa mais comum. São agora fruto da liberdade de se escolher a família que se quer.

Luísa Cyrne tem 27 anos. É casada com Pedro Oliveira de 28. São ambos pais de Madalena, 3 anos, e António, de 1 ano. Há quatro anos tornaram-se marido e mulher, depois de outros tantos de namoro. Nunca viveram juntos. Casaram pela igreja. E ainda antes dos 30 anos tiveram dois filhos.

Se nas últimas décadas do século passado esta história soava familiar à maioria das pessoas, agora quase faz abrir bocas de espanto. Porque não é preciso ir consultar os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) para saber que casar antes dos 30, casar sem ter coabitado (sim, já ninguém diz amancebado), casar pela igreja e ter filhos aos 24 anos é cada vez mais raro. A família “tradicional” morreu? Não é pergunta que se faça. A família só deixou de ser vivida da mesma forma por toda a gente.
“Não estamos numa situação de crise na família, como muitos podem dizer, pelo contrário. A família, o casal e os filhos cada vez mais são importantes.”
“Não estamos numa situação de crise na família, como muitos podem dizer, pelo contrário. A família, o casal e os filhos cada vez mais são importantes. Há é diferentes formas de viver e pensar a vida familiar. Há uma grande diversidade de modelos, mas a família continua a ser o pilar para os portugueses e as portuguesas. É o seu objetivo, é a sua fonte de realização, é o seu desejo e portanto estamos muito longe de uma crise da família e dos valores da família.” A afirmação é de Sofia Marinho, socióloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais, um dos membros do Observatório das Famílias e das Políticas de Família.

As mudanças foram ocorrendo devagar, como acontece com todas as revoluções de mentalidades e modos de vida. Se bem que o termo devagar, aplicado a Portugal, não significa afinal tão devagar quanto isso. “Portugal tem uma história muito particular, na medida em que viveu, em 40 anos, aquilo que outros viveram em 100, razão pela qual no nosso país, do ponto de vista da mudança na família, que é sempre uma mudança lenta, e é sempre uma mudança em que há uma conjugação de modelos antigos com modelos novos, há muito hibridismo. Ou seja, há uma mistura, em que as pessoas vão buscar pedaços do que acham que é a família ideal e do que é ser homem e ser pai e ser mulher e ser mãe, a novos modelos e a anteriores modelos”, explica Sofia Marinho.

O pedido

Foi no segundo ano da faculdade de Direito, em Lisboa, que Pedro olhou pela primeira vez para Luísa. Ela tinha acabado de entrar para a faculdade. Passou o primeiro semestre, passou o segundo e chegaram as férias. “Foi no verão, eu conhecia a cara da Luísa da universidade, e acabámos por nos conhecer numa festa”, conta Pedro. Ela interrompe-o: “Mas já tinha andado a reparar em mim na faculdade o ano todo!” Ele ri e trocam um olhar cúmplice. “Pelo menos foi o que ele me disse”, acrescenta ela.

Namoraram então. Namoraram muito, entre férias, aulas, exames, códigos de processo penal e de processo civil, passeios na marginal de Cascais, nesse verão, no outono, no inverno, na primavera e nas outras estações todas do ano que se seguiram. E como o calendário solar, o passo de Luísa e Pedro foi sempre andando acertado. Luísa fala: “E éramos muito apaixonados e gostávamos muito um do outro, por isso a partir do terceiro ano já começámos a pensar nisso, mas sempre com a ideia de terminar o curso primeiro, para sermos independentes e podermos dar esse passo.”

Isso. O casamento. Na cabeça dos dois estava a ideia de casar. “Íamos falando, falávamos nisso. Nenhum de nós queria viver junto antes de casar”, esclarece Luísa. Porquê? “Porque para nós não nos faz muito sentido o experimentalismo, estar a experimentar. Já sabíamos o que queríamos para a vida, que nos queríamos um ao outro para a vida, que gostávamos um do outro para a vida, dentro do casamento. E por isso queríamos uma coisa para a vida, na sua totalidade, não queríamos estar a experimentar.” Pedro corrobora a ideia: “Quando se faz um pedido de casamento acho que tem de se ter a certeza.”

E Pedro tinha. Portanto naquele dia, durante o passeio na Guia, em Cascais, num sítio onde costumavam estar muitas vezes, Pedro ajoelhou-se e fez a pergunta para a qual já estava certo da resposta que ia ter. Trazia o anel no bolso e foi só ouvir o “sim”.

Em 2014, a maioria dos casamentos registados em Portugal deram-se entre pessoas que já viviam juntas - 51, 7% contra 48, 3% daqueles que casaram sem nunca terem coabitado. A inversão destes números deu-se neste ano. Até 2013, sempre foram mais as pessoas que passaram do namoro ao casamento sem antes terem vivido juntas. 
A coabitação é de facto a tendência que marca a maior diferença na evolução da forma como os processos de constituição de família em Portugal foram e vão mudando. “É preciso ter em conta que a coabitação sempre existiu, só que noutros moldes. Se nós olharmos para trás, nos anos 60 havia os casais mais pobres, que não tinham acesso ao casamento e portanto coabitavam. Hoje há uma maior aceitação — e mesmo banalização da coabitação — e acaba por acontecer que, do ponto de vista do percurso de vida das pessoas, a coabitação passou a ter um lugar normal”, sustenta a socióloga Sofia Marinho.
“A coabitação no pós-divórcio é aceite como sendo igual ao casamento. As pessoas não sentem necessidade de oficializar essa relação.”
Hoje em dia, “o namorar e o viver junto acaba por acontecer ao mesmo tempo, a coabitação passa a ser um passo do namoro, quando se percebe que se calhar vale a pena investir nessa relação”, relata Sofia Marinho. Depois, há os casos das pessoas divorciadas que voltam a ter relacionamentos e que, na maioria dos casos, não oficializam a relação através do casamento. “A coabitação no pós-divórcio é aceite como sendo igual ao casamento. As pessoas não sentem necessidade de oficializar essa relação. Não tem a ver com o facto de o casamento anterior não ter corrido bem. Não é relevante.” A socióloga explica como se deu esta mudança: “O casamento era visto como a institucionalização da entrada na vida adulta, a constituição da família, a separação dos pais — sempre foi ao longo do tempo — e de certa forma, para muitas pessoas esse passo, essa institucionalização, deixou de ser necessária, não é relevante, pura e simplesmente.”

Mas quando se fala de coabitação, Portugal tem uma peculiaridade. Se nos países nórdicos, por exemplo, a coabitação significa uma vida de casal sem filhos, entre os portugueses não é bem assim. “Ao contrário de outros países em que a coabitação está ligada ao não se ter filhos, a taxa de mulheres que optam por viver sozinhas e não ter filhos é muito pequena. O normal é ter-se um filho, quer se case quer se coabite”, explica Sofia Marinho.
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Em 2014, quase metade do total de nascimentos aconteceu “fora do casamento” (49, 3%, quando em 2009 era 38, 1%). A maioria destas crianças tinha os pais a viver na mesma casa, apenas 15, 8% nasceram sem coabitação dos pais. Ainda assim, o dobro do registado em 2009.

O casamento

“Se calhar somos um bocadinho mais conservadores em relação às ideias atuais, que são mais abertas, ou de mais liberdade de experimentar. Não condenamos essa maneira de estar, mas nós temos a nossa e encaramos a vida desta forma. Faz-nos sentido assim, não pensámos muito nisso, não estamos vinculados a nenhum programa. Gostamos um do outro, para quê adiar? Vamos casar, vamos ter uma família”, conta Pedro.

Por entre as dezenas de livros que povoam a enorme estante da casa de Luísa e Pedro é preciso ter olho clínico para descobrir a fotografia tirada há quatro anos, Luísa vestida de branco, Pedro de fato escuro, os dois de braço dado e com o mesmo sorriso que têm hoje quando olham um para o outro. Casaram pela igreja.
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Os casamentos católicos têm vindo a diminuir de ano para ano. Foi em 2007 que se deu a viragem: os casamentos civis passaram a ser em maior número que os casamentos católicos. No ano passado, do total de casamentos realizados no nosso país, 19.816 foram civis e apenas 11.178 foram católicos.
E se Luísa e Pedro fizeram tudo “como mandava a lei” — namorar, casar, ter filhos — em Portugal é cada vez mais comum que o casamento surja quando se faz a transição para a parentalidade. E isto, explica a socióloga, “tem a ver com a importância que é dada à família”. Para muitos portugueses, “não faz sentido ter filhos fora de uma relação e querem institucionalizar a relação para a criança, mais do que para eles próprios”.

Os filhos

Pouco depois do casamento Luísa engravidou de Madalena, que tem agora 3 anos. “Nós gostamos muito de crianças e queríamos muito partilhar a experiência de ter filhos. Queríamos ter energia para cuidar dos filhos, fazer os programas novos. A minha mãe já me teve aos 36 anos e eu queria partilhar nova as experiências dos meus filhos”, conta Luísa, que quando engravidou ainda estudava para passar os exames da Ordem dos Advogados.

“Por acaso foi um stresse com a Madalena. A seguir ao último exame na Ordem comecei com contrações e até fui parar ao hospital. Depois tive de estar de repouso, porque foi um momento de grande stresse. Eu estava a estudar, o escritório tinha-me dado umas semanas para estudar, mas foi muito stressante porque tinha mesmo de passar aos exames da Ordem e foram umas semanas muito intensas de estudo. Do António já foi mais tranquilo, já estava habituada.” Sim, porque durante o tempo em que esteve em exames para se tornar advogada de papel passado, Luísa teve dois filhos.
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A idade média das mulheres portuguesas quando têm o primeiro filho está agora nos 30 anos, mais seis do que Luísa tinha quando nasceu Madalena. É preciso recuar ao início da década de 90 do século passado para colocar Luísa na média.

E há vários fatores que explicam esta mudança. Tudo é feito mais tarde. Estuda-se até mais tarde, arranja-se emprego mais tarde, ter emprego nem sempre significa ter independência financeira, mas, se calhar, mais determinante que tudo isto é a forma como se encara a maternidade e a paternidade. “A criança tornou-se um elemento da identidade dos pais. Passou-se de uma situação em que se tinha filhos para continuar o nome a a família para uma realidade em que a criança aparece num contexto de busca do amor incondicional e de uma realização do indivíduo”, sublinha Sofia Marinho.

Mas esta situação nem sempre é vantajosa. Há o reverso da medalha. “Se por um lado é muito bom poder-se escolher, por outro lado pode ser um constrangimento. A natalidade tem os constrangimentos económicos, ao nível do mercado de trabalho e legislação, ao nível da alteração nas políticas de apoio à natalidade, com o desemprego, a instabilidade, a incerteza, mas depois há esta questão de que para os portugueses ter filhos é equacionado no âmbito da relação conjugal. E isso também pode ser um obstáculo.”, revela a socióloga. Ou seja: “Se essa relação não existe, ou mesmo se existe a relação mas as pessoas não estão seguras dela, se não sabem se é com aquela pessoa que querem ter filhos, isso é uma questão que pode funcionar como um entrave à maternidade”.
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Portugal não é a Grécia

Quando comparamos os dados da conjugalidade, quando olhamos para a constituição das famílias e para os filhos que os portugueses desejam ter — e que não são os mesmos que realmente têm — com os restantes países da Europa, verificamos que estamos muito mais perto dos modelos de organização de família das sociedades nórdicas do que daquelas que nos são tão mais próximas, quer geograficamente, quer a outros níveis, como Espanha, Grécia ou Itália.

“Quando se fala da Europa do Sul acha-se que Portugal é igual, mas não é nada. Mesmo do ponto de vista dos papéis da igualdade de pais e mães, de homens e mulheres, dentro da família, Portugal aproxima-se mais dos países nórdicos do que de Espanha ou Itália”, refere Sofia Marinho.

Porquê? “Nós sempre tivemos uma legislação muito moderna, digamos assim, comparativamente a outros países do Sul, no que diz respeito à família e à igualdade de direitos.” A isto junte-se a enorme taxa de atividade feminina e a quantidade cada vez maior de mulheres licenciadas, com uma geração filha do 25 de Abril, cujos pais “viram à sua frente todo um patamar de possibilidades e foram transmitindo isso aos seus filhos”.

Mas se nas formas de constituir família os portugueses interiorizaram a total liberdade de escolha — há famílias de todas as formas e para todos os gostos — houve algo que permaneceu intacto. E isso faz do nosso país um exemplo muito particular no meio das civilizações ocidentais.

“Apesar de existir toda esta multiplicidade — o divórcio, as pessoas não casarem logo à partida, estar a aumentar o número de casais que querem experimentar viverem juntos primeiro — por trás disso tudo está a importância que é dada à família, a ter uma relação que funcione, a ter um casal que esteja lá para os filhos, a que se dê o melhor aos filhos. Todas estas mudanças e toda esta diversidade acontecem neste enquadramento”, explica Sofia Marinho.

Daí que a socióloga especialista em questões de família recuse a ideia de que a família está em crise em Portugal. “A democracia não é só política. Com ela vem a democracia ao nível das relações familiares. O que marca as sociedades modernas é a escolha e a responsabilidade dessa escolha. É preciso olhar para a vida familiar e para a família como um percurso. É uma trajetória da vida das pessoas, quer elas decidam viver sozinhas, ou casar, ou viver junto, ou separar-se, ou ser pais. As pessoas têm essa possibilidade de encontrarem, com o seu companheiro ou companheira, a melhor forma de construírem a sua família e os seus timings para serem pais, para se casarem, para se divorciarem, para voltarem a ter filhos. Ou seja, há vários valores relativos à família. Estamos é longe de um pensamento único, entre aspas.”

"Quando essas pessoas começarem a ter filhos 
vamos estar nós a vermo-nos livres deles e 
a poder gozar da nossa liberdade 
e voltar a viajar e a sair à noite. 
Ainda frescos!" 
 Luísa Cyrne 
A maioria dos amigos de Luísa e Pedro não está casada e muito menos tem filhos. “Hoje há muita gente que quer aproveitar os primeiros anos de casamento, quer aproveitar a sua liberdade, porque de facto a vida muda completamente quando se tem filhos. Também vemos os nossos amigos aqui e ali, a viajar, a sair à noite, e também pensamos: que bom! Mas pronto, nós também temos outras coisas que são ótimas e não nos arrependemos nem por um segundo”, diz Luísa.

Pedro levanta-se de repente porque António decidiu tentar o equilibrismo em cima do sofá, mas continua a ideia da mulher: “Eles também devem olhar para nós e dizer: calma, também quero estar aqui no meu sossego”. Luísa, que continuou serenamente sentada no sofá, ri. “Quando essas pessoas começarem a ter filhos vamos estar nós a vermo-nos livres deles e a poder gozar da nossa liberdade e voltar a viajar e a sair à noite. Ainda frescos!”

ALGUNS COMENTÁRIOS NO SITE, sobre o texto.

Xico da CUF 21 Jun 2015
“(sim, já ninguém diz amancebado),”
NÃO É VERDADE!
Eu oiço imensas vezes o termo “amancebado”.
E mais, quando estou com os nativos da minha aldeia (e estou muitas vezes) oiço o termo “aputado”

Ex: fulano vive aputado com sicrana

"Penso deste modo que os dados contrariam completamente as conclusões da socióloga: a família está em crise porque nos seus modelos alternativos actuais ao casamento católico não oferece as condições indispensáveis a ser o que uma família deve ser para cumprir o seu fim."

 Eu Mesmo 21 Jun 2015
Um unicórnio perdido na floresta, parabéns Pedro e Luísa.

David Pinheiro 21 Jun 2015
“8% nasceram sem coabitação dos pais”
Hummm, parece que 8% são espertos. Têm melhores possibilidades de acesso a abono de família, prioridade no acesso ao infantário, preço mais baixo no infantário, maior devolução no IRS, subsídio social de desemprego, …, do que se declarassem a mesma morada fiscal.
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REPORTAGEM POR  Rita Ferreira
Fonte: Site de Portugal:  http://observador.pt/especiais/deus-patria-nao-so-familia/ acesso 22/06/2015
OBS.Texto redigindo em português de Portugal.

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