sábado, 31 de janeiro de 2015

Uma carta para Thomas Merton

tradução: Sieni Maria Campos

Caro Padre Louis,

O sol passou por Aquário cem vezes desde o seu nascimento no “último dia de janeiro de 1915, sob o signo do Portador de Água, em um ano de uma grande guerra”. Faz quase três quartos de século que você entrou para a Abadia de Nossa Senhora de Getsêmani como postulante, penitente e convertido; encerrou-se nas “quatro paredes de liberdade” em 10 de dezembro de 1941, quando os Estados Unidos entravam na Segunda Guerra Mundial, um mês e meio antes do seu 27º aniversário. Você morreu em 10 de dezembro de 1968, exatamente 27 anos depois, após fazer uma palestra sobre “Marxismo e Perspectivas Monásticas” em uma reunião em Bancoc. Sua vida se divide em uma metade secular e outra religiosa; e esta é quase a única coisa a seu respeito que podemos equacionar nitidamente.

Ouvi falar de você pela primeira vez na infância, na periferia do movimento pacifista em Nova York; lembro-me de ouvir as queixas de alguns ativistas do Catholic Worker quando você se recusou a apoiar a queima das cartas de convocação para o serviço militar durante a guerra do Vietnã; você conseguia desconcertar até quem o considerava um profeta. Na época da faculdade, descobri os seus livros, das clássicas memórias, A Montanha dos Sete Patamares, às suas reflexões sobre Zen, Taoísmo e Sufismo. Você me convenceu de que a vida contemplativa continua sendo não só viável como essencial. Meu futuro marido imaginou que poderia me conquistar carregando no bolso um exemplar de
Contemplative Prayer; conseguiu. Nessa época você tinha se tornado o que o seu nome sugere em anagrama: mentor de milhões de pessoas que nunca tiveram a oportunidade de conhecê-lo face a face.

Mas desejamos conhecê-lo face a face; daí a profusão de biografias notáveis – entre as quais a investigação levemente psicanalítica de Monica Furlong, a escrita por Michael Mott cheia de fatos da vida cotidiana, os estudos empáticos de Lawrence Cunningham e William Shannon, o retrato de grupo traçado por Paul Elie que o relacionava com seus companheiros americanos de peregrinação Dorothy Day, Walker Percy e Flannery O’Connor, o filme biográfico de Paul Wilkes e Audrey Glynn – e os numerosos livros de fotos de Ed Rice, John Howard Griffin, Jim Forest e outros. Como você era fotogênico de hábito branco e escapulário preto contra o fundo dos campos de pasto e alfafa, ou de roupas de trabalho de jeans e chapéu de palha na varanda do seu eremitério, ou, livre das suas quatro paredes de liberdade, desfrutando da companhia dos novos irmãos Thich Nhat Hanh e Dalai Lama!

E, apesar de todos os seus escritos que o revelavam, como você era inescrutável! Você escreveu memórias dignas de serem comparadas com as Confissões de Agostinho – não fossem elas arranhadas por uma rebeldia metafísica - contemptus mundi – parecida com a do personagem Holden Caulfield de o Apanhador no Campo de Centeio. Você bebeu nas fontes da espiritualidade monástica por meio de erudição e reflexão sobre a Regra de São Bento, os Padres do Deserto, João Cassiano, Bernardo de Claraval, e depois traduziu essa espiritualidade em um idioma de autenticidade e distanciamento que agora parece antiquado. Você devolveu à contemplação o lugar central que lhe pertence de direito na vida cristã e fez muito “para assegurar ao mundo moderno que, na luta entre pensamento e existência, nós [monges] estamos do lado da existência, não da abstração”, e depois retratou a contemplação como um esvaziamento de si tão radical que esta perde muito de seu conteúdo especificamente religioso. Você lutou pelo privilégio de viver como eremita no terreno da abadia, mas permitiu que o eremitério se tornasse lugar de reunião para seus amigos não monásticos durante um período em que você estava (como disse a Rosemary Radford Ruether) “contrariado com os católicos e com medo deles”.
Em uma leitura psicanalítica reducionista, você era um órfão à procura dos pais perdidos, um amante reprimido, um narcisista se afogando em sua própria reflexão. Em uma leitura agostiniana com mais discernimento, contudo, você era um Homem Comum cujo coração está inquieto enquanto não repousa em Deus; em uma leitura monástica sensata, você era um dos milhares de monges essencialmente bons que se extraviaram mas mantiveram o rumo. Acredito que você de fato manteve o rumo. Se não tivesse sido pela falha do ventilador elétrico, ou pela falha no seu próprio coração, acredito que, depois de passadas as tempestades da juventude, você teria retornado a Getsêmani e seria um modelo de sabedoria monástica.

Você disse que o propósito do monaquismo não é sobrevivência, e sim profecia. O que você talvez não tenha percebido – pois sua entrada na vida monástica foi o ponto alto do renascimento desta durante a guerra e o pós-guerra – é que a sobrevivência do monaquismo é profecia, um tipo especial de profecia que serena as paixões políticas e sobrevive a elas.
 
O Diário da Ásia de Thomas Merton diz que as palavras com que você terminou sua intervenção na reunião de Bancoc foram “Então irei desaparecer”. No entanto, a citação completa de suas palavras lhes tira o sentido de despedida: “Então irei desaparecer de vista e todos poderemos tomar uma Coca-Cola ou algo parecido.” Então você morreu, com sua história inacabada. Mas, a partir de suas cartas, poemas, diários, romances, homilias e gravações de suas palestras aos seminaristas de Getsêmani, podemos montar a imagem de um escritor brilhante, monge comprometido e homem frágil que buscou a Deus com todo o seu coração e nos convida a fazer o mesmo.

Pax.
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Em português:  http://reflexoes-merton.blogspot.com.br/2015/01/uma-carta-para-thomas-merton.html
*Carol Zaleski is professor of world religions at Smith College in Northampton, Massachusetts.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Novos perfis de família


Frei Betto*


 A família do século XXI já não será apenas a que possui em comum características biológicas, e sim a que o amor 
aproxima e une pessoas comprometidas com um projeto comum de vida, que estabelece entre elas profundas 
relações de intimidade e reciprocidade.

Maria Antônia, bebê gaúcho, tem duas mães, um pai, seis avós! Nascida em Santa Maria, em setembro de 2014, o juiz Rafael Cunha autorizou seu registro de nascimento. 

Os pais são Fernanda, Mariani e Luis Guilherme, que engravidou uma das moças e fez questão de ter seu nome na certidão de nascimento. O juiz reconheceu legalmente que Maria Antônia nasceu em um "ninho multicomposto”. 

Desde que resolução do Conselho Federal de Medicina, em 2013, permitiu a utilização de técnicas de fecundação "in vitro” por casais homoafetivos, cresceu no Brasil o número de crianças registradas em nome de dois pais ou duas mães. 

O preconceito ainda impede que muitos reconheçam o óbvio: o perfil da família já não se restringe ao da relação monogâmica heterossexual. 

Quem melhor percebe essa mutação é o papa Francisco que, em vez de se fingir de cego, como papas anteriores frente aos fenômenos da pós-modernidade, convocou um sínodo para debater o tema. Precedido por reunião extraordinária em outubro de 2014, o Sínodo da Família terá lugar em Roma, em outubro deste ano. 

No questionário remetido a todas as dioceses do mundo, o papa pergunta como os católicos encaram casais recasados, a homossexualidade e outros temas considerados polêmicos no interior da Igreja. Francisco quis ouvir as bases, num gesto inédito de democratização da instituição eclesiástica. 

É o fim da família? A família é uma estrutura cultural, não natural. Tal como a conhecemos hoje, existe há apenas meio milênio. Aliás, hoje se multiplicam as famílias monoparentais, cujo "chefe” é a mãe. Em comunidades indígenas, a qualidade de proteção e afeto às crianças faz a todos nós, "civilizados”, corar de vergonha.

Para quem, como eu, foi educado no catolicismo à luz de estampas da Sagrada Família, não é fácil acolher os novos perfis de relações afetivas. Porém, ao abrir o Evangelho , nos deparamos com algo distinto do modelo devocional: o jovem Jesus que se desgarra do cuidado dos pais e abandona a caravana de peregrinos; o pregador ambulante que não merece a credibilidade de seus irmãos ( João 7,5) e a família o tem na conta de "louco” ( Marcos 3,21-31); o filho que parece rejeitar a própria família: "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” ( Mateus 12, 48). 

Quando exclamaram a Jesus "Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram”, ele não desmentiu, mas assinalou a diferença: "Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam.” ( Lucas 11, 27-28). 

Jesus enfatizou que não são os laços de sangue que mais aproximam as pessoas, e sim o projeto comum que elas assumem. 

Projetos alternativos criam conflitos. Jesus chegou a falar em "odiar” a própria família ( Lucas 14, 26). O verbo grego miseo (=odiar) pode ser traduzido por "amar menos”: "Se alguém quer me seguir e não prefere a mim mais que a seu pai e sua mãe...” 

Frente ao modelo de família-gueto, centrada no umbigo de seus membros e avessa a estranhos e necessitados, Jesus propôs um modelo de família aberta, centrada no afeto, na gratuidade e na abertura ao próximo. 

A família do século XXI já não será apenas a que possui em comum características biológicas, e sim a que o amor aproxima e une pessoas comprometidas com um projeto comum de vida, que estabelece entre elas profundas relações de intimidade e reciprocidade. 

E há que lembrar que, em sua recente visita à Ásia, o papa Francisco rogou aos fiéis católicos que evitem "ser como coelhos”, procriando irresponsavelmente. Um sinal de que os métodos contraceptivos, como o uso do preservativo, serão afinal aceitos pela Igreja Católica?
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* Frade dominicano. Escritor.
Fonte: Adital, 30/01/2015
 

Jane Hawking: “Acho um milagre que ele ainda esteja vivo”

a teoria de tudo
De passagem por Lisboa, a ex-mulher de Stephen Hawking admitiu que "A Teoria de Tudo" não mostra um quarto das dificuldades por que passou. 
E que a vida do cientista ateu,  para ela, é um milagre.


“Ver o filme pela primeira vez foi bastante perturbador. O Stephen era tão real!”, disse
Getty Images

Jane Wilde, mais conhecida como Jane Hawking, esteve em Lisboa para promover a biografia que inspirou o filme “A Teoria de Tudo”, que se estreia esta quinta-feira nos cinemas portugueses. Acompanhada pelo atual marido Jonathan Jones, que conheceu no coro da igreja, a autora da biografia que deu origem ao filme admitiu que há falhas factuais na história, focada mais nas conquistas do que nos períodos difíceis. Que foram muitos.

25 anos de vida em comum (30 anos de casamento) condensados em apenas duas horas. O realizador aproveitou bem aqueles 123 preciosos minutos de filme, mas haverá sempre coisas que ficam para trás. “O filme é uma celebração das nossas conquistas”, disse Jane aos jornalistas, admitindo que no grande ecrã o público vê apenas “um quarto das dificuldades” por que passou durante o casamento. Para saber mais sobre os períodos negros é preciso ler Viagem ao Infinito. Lançado em Portugal pela editora Marcador, é naquelas páginas que Jane conta a história de um dos mais consagrados cientistas da atualidade, mas também a história dos que estiveram com ele durante o aparecimento e o desenvolvimento da doença.

O casal conheceu-se na Universidade de Cambridge, a 80 quilómetros de Londres, ainda o diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica não era conhecido. Aos 21 anos, os sintomas apareceram em força e os médicos deram a Stephen Hawking dois a três anos de vida, mas Jane quis casar-se com ele apesar de todas as dificuldades que estavam para vir. Passaram dois, doze, vinte e dois anos. Stephen Hawking continuou vivo. Conta hoje 73 anos.

“A Teoria de Tudo” nunca pretendeu ser uma biopic, mas Jane chegou a mandar para trás o argumento, por exemplo por causa de cenas que temporalmente não batiam certo, já que se tinham passado em Oxford e não em Cambridge. Mas a certa altura, a equipa de James Marsh teve de usar a carta da liberdade artística inerente ao projeto. Já o desempenho do elenco não podia estar mais próximo da realidade. Tanto o realizador como Felicity Jones (no papel de Jane Hawking) e Eddie Redmayne (que dá vida a Stephen Hawking) passaram muito tempo com o ex-casal.

Quando Jane viu algumas das cenas pela primeira vez, chegou ao pé de Eddie Redmayne e despenteou-o. “Ele parecia muito arrumadinho” em comparação com o Stephen Hawing dos anos 60, contou. À parte disso, nada mais a assinalar, a não ser a emoção de viajar no tempo sem ser através da poesia medieval espanhola, tema em que se doutorou. “Ver o filme pela primeira vez foi bastante perturbador. O Stephen era tão real!”. Jonathan Jones, o atual marido, também está “muito bem retratado”, ainda que fisicamente “não se pareça nada” com ele.

Ela estudava poesia medieval espanhola, ele traçava um caminho que se confirmaria brilhante na matemática, na física e na cosmologia. Ela é anglicana e Deus é uma certeza, ele é ateu e ainda recentemente disse que “não há Deus nenhum”.

Sobre o primeiro contraste, nada a declarar, a não ser elogios. “A ciência do Stephen entusiasmava-me”, disse Jane, que sempre se sentiu fascinada pelo céu, ainda que no sentido poético e não científico, como Stephen. “Ele descrevia a sua ciência de forma simples”, como pegar numa ervilha para representar a física quântica e numa batata para a teoria da relatividade, cena que pode ser vista no filme.

Mas o segundo potencial conflito, ciência versus religião, acabou por se tornar uma realidade. “No início o Stephen respeitava a minha fé”, disse Jane. “Mas com os anos ele tornou-se mais provocador”. Um dos momentos mais polémicos foi quando Hawking disse em Madrid, no ano passado, que Deus não existe. “Sou ateu. A religião acredita em milagres, mas estes são incompatíveis com a ciência”.

Não deixa de ser irónico que Jane, para quem a fé era, e ainda é, “uma coisa muito importante”, ache “um milagre que ele ainda esteja vivo”. Hoje com 71 anos, Jane define-se, não como religiosa, mas sim pessoa de fé e espiritualidade. “Não tento converter as outras pessoas, nem espero que tentem mudar-me”, disse. Talvez por isso algumas atitudes ao longo da vida em comum com Hawking a tivessem perturbado. Como quando o cientista esteve em Jerusalém para receber um prémio e disse, num dos locais do mundo mais associados ao sagrado, que não acreditava em Deus.

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“Viagem ao Infinito” foi a biografia que deu origem ao filme

“Escrever o livro foi como tirar um peso dos ombros”

“Eu era jovem, estava cheia de energia”. A justificação de casar mesmo sabendo da doença do futuro marido chega sem que lhe seja feita a pergunta, embora seja esta a questão que vai passar pela cabeça dos vários espectadores em todo o mundo. “Tinha fé no que estava a fazer, era a coisa certa”. “Apenas sentia que era a minha missão na vida. E ele correspondeu”, acrescentou mais tarde.
 
Hawking correspondeu aos sacrifícios tornando-se “o cientista vivo mais brilhante da atualidade”. Mas quando o autor de Uma Breve História do Tempo decidiu sair de casa para se juntar com a enfermeira (atual mulher), Jane sentiu-se magoada. “Escrever o livro foi como tirar um peso dos ombros. Fi-lo para superar estas memórias, caso contrário não conseguiria prosseguir com a minha vida. E como o Stephen era muito famoso, éramos todos afetados”, disse, confessando que se adiantou antes que alguém escrevesse por ela a história do casal. A partir desta quinta-feira, uma parte importante dessa história está nos cinemas portugueses. A 22 de fevereiro vai saber-se se “A Teoria de Tudo” vence algum dos cinco Óscares para que está nomeado, entre os quais melhor filme dramático, melhor atriz e melhor ator.
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Reportagem por
Fonte: http://observador.pt/2015/01/29/jane-hawking-acho-um-milagre-que-ele-ainda-esteja-vivo/

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

"Eu não sou mais ateu".

  Entrevista com Michel Houellebecq


 Eu levo a sério a necessidade espiritual. Acho que é muito chato sociologizar as coisas. Nem todos os jovens estão 
à deriva, como estamos dispostos a dizer.

Desde a publicação de Submission (Submissão), uma nova Batalha de Hernani está sendo travada. Como de costume, os juízos de valor sobre a pessoa de Michel Houellebecq (foto) se misturam com os de alguns dos seus personagens. Mas, desta vez, as considerações sobre a literatura se misturam com um debate quente sobre o Islã e a islamofobia. Parte da crítica literária julga o livro medíocre ou grosseiro. Outros acham que é perturbador ou excelente. Na maioria dos casos, a questão do declínio do cristianismo, ainda central no romance, é evitada, até mesmo completamente esquivada. Para ver o coração líquido, nós enfrentamos durante três horas o nevoeiro de cigarro, laconismo e ambiguidade que envolve e esconde o estranho sr. Houellebecq, costurando o fio de uma verdadeira conversa. Cabe ao leitor julgar suas palavras. Ele tem agora a peça do dossiê que lhe faltava: o próprio autor. Seguem trechos de uma entrevista exclusiva a ser publicada nesta quinta-feira, 29 de janeiro, na revista La Vie.



Você está com raiva?
A declaração do Papa após os ataques contra o Charlie me deixou estarrecido. Quando ele diz "Se você falar mal da minha mãe, eu lhe dou um soco", ele legitima a resposta a uma agressão escrita com uma agressão física. Não estou plenamente de acordo, e eu ainda teria preferido que tivesse ficado em silêncio. A religião não deve limitar a liberdade de expressão. Se há limites, não são dessa ordem, mas relacionados à difamação, aos atentados à privacidade, etc. E eu sei do que estou falando por ter sido perseguido muitas vezes. Mesmo por La Carte et le Territoire, eu tive direito a um processo na Alemanha movido pela associação Dignitas, favorável à eutanásia – que o editor também ganhou. (...)

Faz muito tempo que você está fascinado pela religião...
Sim. Na literatura, em meu primeiro livro, Rester Vivant (1991), que é fortemente influenciado por Paulo e sua insolência. E depois havia Les Particules Élémentaires e meu eventual batismo em La Carte et le Territoire. Mas eu já falei sobre a minha tentativa de conversão no livro escrito com Bernard-Henri Lévy, Ennemis Publics. Durante a minha infância, na casa dos meus avós, não havia nada de religião. Sem verdadeira antipatia – ao contrário dos seus amigos comunistas, que eram mais antipadres. Para eles, o Reino e o progresso eram deste mundo. Mas a religião entrou na minha vida desde aos menos aos 13 anos de idade. Um amigo da minha classe tentou me converter na época. Eu guardei a Bíblia que ele me deu. Eu a tenho lido muito nos últimos tempos. (...) Eu tenho uma visão da religião mais próxima da magia. O milagre me impressiona! O meu momento religioso favorito de todo o cinema é o final de A Palavra (Ordet), o filme de Dreyer, que termina com um milagre. Isso é o que me abala. (...) Eu quero saber se o mundo tem um organizador e como ele é organizado. Fiz estudos científicos. Há uma verdadeira curiosidade em mim pela maneira como tudo funciona. De modo que hoje eu não me defino mais como ateu. Eu me tornei agnóstico, a palavra é mais correta. Um dos amigos de meu pai lhe havia dito que ele queria ser cremado, que ele não queria uma cerimônia religiosa. Meu pai lhe respondeu: "Eu te acho muito presunçoso". De certa forma, é o sentido da aposta de Pascal.

Seguindo o seu romance, no entanto, podemos concluir que o cristianismo está morrendo...
Não, acho que não. Foi apenas o ponto de vista de um personagem, o Rediger. E há um aspecto positivo dos católicos no romance: quando os jovens vêm para assistir à leitura de Péguy. O orador de "face aberta e fraterna" impressiona o narrador. Eu tive a oportunidade de ver o rosto desses jovens em uma Jornada Mundial da Juventude, a de Paris, para a qual eu fui por curiosidade. No geral, eu não estou convencido de que as perspectivas para o catolicismo sejam apenas negativas no meu livro. Hoje, a ideia de um cosmos organizado é ainda mais pertinente do que na época de Voltaire: o argumento do grande relojoeiro evidencia uma organização de todo o Universo. As descobertas científicas reforçam mais a impressão de uma organização geral do que o seu contrário... (...)

Por este romance, você foi acusado de islamofobia. Ora, podemos fazer-lhe a acusação contrária: você retoma a apologética tradicional do Islã ao dizer que o cristianismo acabou. (...) E, de qualquer maneira, você vê o Islã de forma mais favorável do que antes. O que fez você evoluir nessa visão?
A leitura do Alcorão e de vários livros, incluindo os de Bernard Lewis, e, mais recentemente, os de Gilles Kepel. E, além disso, muitas coisas atribuídas ao Islã são anteriores a ele, o que é inegável. O Islã não inventou o apedrejamento (uma das cenas mais conhecidas do Evangelho é a que diz "Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra"), nem a ablação, nem a escravidão. Eu li o Alcorão para escrever este romance. Eu tinha acabado de esmiuçá-lo antes. A questão também foi para avaliar seu grau de periculosidade. Saí bastante sossegado. Minha leitura resultou em conclusões relativamente otimistas, mesmo que na verdade eu não acho que os muçulmanos leem mais dessa maneira o Alcorão, assim como católicos não leem a Bíblia. Assim, o papel do clero é fundamental em ambos os casos. Precisamos de intérpretes, de um clero. Eu não posso imaginar a religião sem sacerdotes, sem intérpretes.

Você acredita que o problema do Islã, hoje, é que não tem intérprete competente?
Em primeiro lugar, que não tenha papa! O papa elimina os desvios. Se houvesse um papa muçulmano, a questão do jihadismo seria erradicada em 20 anos. Como castigo: quanto maior o direito de participar das orações, maior o direito de entrar nas mesquitas... Em suma, uma forma de excomunhão. Na ausência de uma tal organização, que não pode ser montada em dois anos, deve incentivar alguns imãs.

Os jovens que vão fazer a jihad fazem-no por motivos religiosos? Ou por que estamos nesta sociedade que você descreve, onde não há mais sentido? Você acredita que esses jovens têm um sentido?
Eu os levo a sério. Eu levo a sério a necessidade espiritual. Acho que é muito chato sociologizar as coisas. Nem todos os jovens estão à deriva, como estamos dispostos a dizer. Eles pertencem, certamente, à classe média. Devemos evitar vê-los apenas somente como desequilibrados. Seu desconforto é mais profundo do que isso. Em todo caso, a sedução do islamismo não tem nada a ver com a política, mas com a religião, ao contrário do que ouvimos. Para mim, esta é claramente uma variante da interpretação do Islã. O senso comum está do meu lado: tivemos ocasionalmente mártires na política, mas ainda é muito mais comum na religião...

O que você diria para aqueles que acusam você de agitar a bandeira vermelha da islamização?
Aqueles que gostariam que eu me sintisse responsável? Bem, não... Não, não sou. Observo um enfraquecimento intelectual em alguns dos meus interlocutores. Conceitos claramente distinguidos antes, como islamofobia e racismo, não o são mais.

A própria palavra islamofobia é polêmica. Como você interpreta isso?
O fato é que meu livro não é islamofóbico. São os jihadistas que procuram provocar a islamofobia no verdadeiro sentido da palavra, isto é, para provocar o medo. Todas as suas ações não têm outro propósito.

Você acredita na necessidade da religião como um sistema para ligar a pessoas?
Sim, a religião ajuda muito a formar sociedade. Como Auguste Comte, eu penso que a longo prazo, uma sociedade não pode subsistir sem religião. E, de fato, vemos hoje sinais de erosão de um sistema que surgiu há alguns séculos. Mas eu acredito no retorno do religioso. Embora eu não saiba te dizer por que isso acontece agora. Mas eu sinto isso. Em todas as religiões. No judaísmo, eu vejo que os jovens são mais crentes e praticantes que seus pais. Entre os católicos, há sinais – a Jornada Mundial da Juventude, a Manif pour tous [referência à ONG Manifestação para todos, que reúne grupos contrários ao casamento gay na França].
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 * A entrevista é de Marie Chaudey e Jean-Pierre Denis e publicada no sítio da revista francesa La Vie, 28-01-2015. A tradução é de André Langer.
Fonte: IHU online, 29/01/2015

Islão deve fazer a sua revolução cultural e reler o Corão com outros olhos, considera professor do Pontifício Instituto Oriental

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 Meca, Arábia Saudita | D.R.

A cultura do encontro proposta pelo papa Francisco na exortação apostólica “A alegria do Evangelho” é a chave para uma relação fecunda entre islão e ocidente. Mas o mundo muçulmano é chamado a fazer uma revolução cultural para se reconciliar com a modernidade e rejeitar, com clareza, o fundamentalismo e a violência.

O jornal italiano “Avvenire” entrevistou Samir Khalil Samir, egípcio, jesuíta, estudioso do islão internacionalmente reconhecido e professor no Pontifício Instituto Oriental, em Roma.

O terrorismo de matriz islâmica está a usar com grande eficácia as redes sociais como instrumento de recrutamento de novos adeptos. A internet está a substituir as mesquitas…
No mundo muçulmano as mesquitas continuam a desenvolver um papel fundamental na formação das consciências. A esmagadora maioria considera definitivo o que é dito durante a “khutba”, a pregação das sextas-feiras, que – a propósito – pesa geralmente muito mais do que as homilias pronunciadas pelos padres nas igrejas. E infelizmente muitos imãs propõem uma leitura fundamentalista do Corão, que chega a justificar o recurso à violência em nome de Deus. Tudo isto resulta de uma orientação radical que é proposta na maior parte das universidades islâmicas, onde desde há décadas se espalhou como um vírus o pensamento wahhabita nascido na Arábia Saudita e depois propagado – também graças a enormes financiamentos – a outros países islâmicos e também ao ocidente.

Porque fala de vírus?
Porque o grande problema do mundo muçulmano está na incapacidade de conjugar a fé e a modernidade. Quando se lê o Corão é necessário usar a razão, e assim dar espaço à interpretação, à exegese, ao espírito crítico, como soube fazer a Igreja ao longo dos séculos. No islão, ao contrário, continua a prevalecer uma perspetiva “mecanicista”, que impele a praticar uma espécie de “cópia e cola”, através da qual alguns versículos do livro sagrado dos muçulmanos, escritos no século VII, são repropostos como se fossem receitas para responder às questões colocadas pela atualidade. E assim o recurso à violência, que ao tempo de Maomé era largamente praticado – como demonstra a história da expansão islâmica nos primeiros decénios a seguir à sua pregação – é legitimado e, sobretudo, exaltado. Mas isto correspondia à mentalidade daquele tempo.

Mas há quem no mundo islâmico se oponha a esta orientação…
É verdade, mas os pensadores esclarecidos são ainda demasiado poucos, isolados, muitas vezes criticados e escassamente influentes sobre as massas. As quais – não podemos esquecê-lo – padecem de uma ignorância que está disseminada (no Egito 40% da população é analfabeta), e portanto confiam-se às interpretações propostas pelos imãs. Por isso estou convencido de que a questão fundamental é a necessidade de uma nova hermenêutica, de uma nova aproximação ao Corão e à tradição, que deveria ser ensinada aos imãs.

Algo está já a acontecer, e neste sentido retenho como muito importantes as palavras pronunciadas pelo presidente egípcio, Al-Sissi, na universidade de Al-Azhar, que é o principal centro de irradiação do pensamento sunita a nível mundial, e forma anualmente milhares de imãs que operam no Egito e em muitos outros países. Al-Sissi pediu um esforço direto contra as más interpretações do islão, que incitam à violência e ao fechamento em relação às outras comunidades, e perguntou-se como é possível que a religião islâmica seja percecionada como «fonte de preocupação, perigo, morte e destruição» pelo resto do mundo. Ou como possa estar entre os muçulmanos quem pensa que a segurança só pode ser obtida eliminando os outros sete mil milhões de habitantes do mundo. Palavras significativas, mesmo se temo que demorem muito tempo para se tornarem num pensamento generalizado e cheguem a forjar a mentalidade e os comportamentos das pessoas. Mas o islão deve fazer a sua revolução cultural, em vez de continuar a olhar para trás.

Como se explica a forte capacidade de atração que estão a exercer as tendências fundamentalistas, inclusive entre os muçulmanos que vivem há muito na Europa?
Penso que é justo explicitar, antes de tudo, que a maioria das comunidades não se reconhece nestas tendências. A força de atração exercida pelos extremistas depende principalmente de dois fatores: a fraqueza de propostas ideais por parte do ocidente, que é visto como uma civilização decadente, cada vez mais distante de um verdadeiro sentimento religioso, e o fascínio exercido por palavras de ordem essenciais, que veiculam “slogans” eficazes, prometem paraísos (inexistentes), veiculam a ilusão de uma regeneração pessoal e coletiva. E então mesmo a violência é aceite para se chegar ao objetivo. Quando uma promessa barata se aninha num raciocínio enfraquecido, o resvalar para o fundamentalismo torna-se mais fácil.

Com os tempos que correm o diálogo parece ser uma utopia, ou algo que pertence mais aos círculos intelectuais do que à realidade diária. Todavia há uma interpenetração cada vez mais estreita entre islão e ocidente, que são obrigados à coexistência. De onde é que é possível construir uma verdadeira convivência?
O ponto de partida é a comum humanidade que nos constitui. Somos antes de tudo pessoas, e na vida quotidiana são muitas as ocasiões em que cristãos e muçulmanos se encontram lado a lado e aprendem pela experiência como se pode viver juntos. Há alguns dias [sábado, 24.1.2015], o papa voltou a afirmá-lo claramente ao receber os membros do Pontifício Instituto de Estudos Árabes e Islamismo: «No princípio do diálogo está o encontro. Dele se gera a primeira consciência do outro». Uma das indicações mais recorrentes deste pontificado, a cultura do encontro, é a chave para fundar a construção de uma convivência sólida. Partindo da redescoberta do eu, da própria identidade vivida como recurso para encontrar o outro, mais do que como “arma” para se contrapor. É um desafio vertiginoso, mas parece-me o único caminho que pode dar frutos. Quem propõe a contraposição frontal faz o jogo dos carrascos do Estado Islâmico.
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Giorgio Paolucci
In "Avvenire"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 28.01.2015

Questões para quem crê e não crê: Deus pai e mãe?

Card. Gianfranco Ravasi* 
 Imagem
  O mundo moderno, sensível «à reciprocidade e à complementaridade» dos sexos, mencionadas várias
 vezes pelo papa João Paulo II, encorajou esta 
interpretação dos textos bíblicos.

João Paulo I dizia que Deus é mãe. As feministas suprimem da Bíblia as formas "machistas". Por outro lado, a Bíblia não será talvez tão radical na sua supremacia masculina, e João Paulo II falava de «reciprocidade e complementaridade» dos sexos, apoiando-se nas Sagradas Escrituras. Então porque se há de ter medo de dizer que Deus é pai e mãe?

Num ensaio de título evocador, "Gott - Vater und Mutter" ("Deus, pai e mãe"), Hanna-Barbara Gerl, intelectual alemã, elenca uma vintena de representações femininas de Deus na Bíblia, face a quatro vezes vinte imagens masculinas. 

Tomemos dois exemplos do livro de Isaías: «Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria» (49, 15); «Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei» (66, 13). O Antigo Testamento atribui regularmente a Deus «entranhas maternais», sinal de amor espontâneo, instintivo, absoluto.

Pode legitimamente falar-se de uma dimensão maternal de Deus, não esquecendo que se trata sempre de um antropomorfismo, de um símbolo, como a dimensão paternal, para exprimir o mistério divino inefável e representar a realidade do Incognoscível. 

Palavra de Deus incarnada, a Bíblia privilegia o rosto paternal de Deus aos olhos dos condicionalismos culturais onde se manifestou. É por isso lícito retomar determinadas leituras demasiado literais do machismo de Deus sem negar os valores que Ele exprime, como é necessário voltar a situar Jesus na sua época histórica sem negar a sua masculinidade, como é devido ajustar certa linguagem eclesiástica exclusivamente ligada a modelos e formas machistas.

O mundo moderno, sensível «à reciprocidade e à complementaridade» dos sexos, mencionadas várias vezes pelo papa João Paulo II, encorajou esta interpretação dos textos bíblicos. Inevitavelmente surgiram excessos, especialmente nos países anglo-saxónicos, onde se desenvolveu um feminismo cristão bastante agressivo. 

Chegou-se ao ponto da recusa total da Bíblia sob o pretexto de "falocratismo"; outros seguiram o caminho de um desalinho total, chegando a banalidades como a transcrição da Trindade em «Mãe-Filho-Sobrinho» (!); outros, ainda, introduziram um processo, nem sempre sereno, de "despatriarcalização" da tradição judaico-cristã. A obra "Em memória dela", da teóloga Elisabeth Schüssler Fiorenza (publicada em 1983), é significativa. Em 1895 já tinha aparecido nos EUA "A Bíblia da mulher", um livro polémico.

No que diz respeito à feminilidade, o Antigo Testamento oferece um ensinamento muito mais aberto do que se pensa. É evidente que a incarnação da Palavra de Deus deixa aparecer o contexto sociocultural do antigo Israel que leva Sirácida, um sábio do séc. II a.C., a escrever que «menos dano te causará a malvadez de um homem do que a bondade de uma mulher» (42, 14).

Mas pensemos na intervenção de figuras femininas como Sara, Raquel, Débora, Rute, Ana, Judite, Ester, a mulher do capítulo 31 dos Provérbios, a extraordinária protagonista do Cântico dos Cânticos, ou ainda Maria e a Mulher do Apocalipse, do Novo Testamento.

A bipolaridade sexual é celebrada na sua plenitude especialmente no Génesis. O famoso «lado» de Adão não é o sinal de uma dependência mas de uma identidade de natureza, ao ponto de os sumérios empregarem uma mesma palavra, "ti", para designar o lado e a feminilidade, sem esquecer o canto final de Adão: «É o osso dos meus ossos e a carne da minha carne, [...] ambos serão uma só carne», manifestando precisamente a identidade estrutural. 

Não é anódino ter-se recorrido a um jogo etimológico para explicar os dois termos hebraicos que significam «homem» e «mulher»: "'ish" e "'isshah", a mesma palavra no masculino e no feminino (Génesis 2, 23-24).

A outra célebre afirmação do Génesis é igualmente significativa. «Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou» (1, 27). A constituição do texto segundo as regras estilísticas hebraicas identifica a imagem divina em nós com o ser «homem e mulher»; não que Deus seja sexuado, mas em virtude do valor simbólico da sexualidade, a capacidade de amar e de procriar (a geração) através da comunhão entre homem e mulher, capacidade que oferece uma analogia com o Deus criador.

João Paulo II afirmava na carta "Mulieris dignitatem" ("A dignidade da mulher"), de 1988: «A imagem e semelhança de Deus no homem, criado como homem e mulher (pela analogia que se pode presumir entre o Criador e a criatura), exprime portanto também a "unidade dos dois" na comum humanidade. Esta "unidade dos dois", que é sinal da comunhão interpessoal, indica que na criação do homem foi inscrita também uma certa semelhança com a comunhão divina».

Pode por isso reconhecer-se a legitimidade de uma nova interpretação da Bíblia e da Tradição que simplifica os elementos socioculturais ao mesmo tempo que conserva o valor teológico da paternidade e da maternidade de Deus, da masculinidade e da feminilidade humanas e das suas unidade e diversidade. Goethe afirmava muito acertadamente que «nós podemos falar de Deus de forma antropomórfica (sobre o modo humano) porque somos teomórficos (em forma divina)».

Card. Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "150 questions à la foi", ed. Mame
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 28.01.2015

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O DIRETOR SUMIU

Marta Suplicy*

  Se tivesse havido transparência na condução da economia 
no governo Dilma, dificilmente a presidente 
teria aprofundado os erros que nos trouxeram a 
esta situação de descalabro.

Tenho pensado muito sobre a delicadeza e a importância da transparência nos dias de hoje. Temos vivido crises de todos os tipos: crise econômica, política, moral, ética, hídrica, energética e institucional. Todas elas foram gestadas pela ausência de transparência, de confiança e de credibilidade. 

Se tivesse havido transparência na condução da economia no governo Dilma, dificilmente a presidente teria aprofundado os erros que nos trouxeram a esta situação de descalabro. Não estaríamos agora tendo de viver o aumento desmedido das tarifas, a volta do desemprego, a diminuição de direitos trabalhistas, a inflação, o aumento consecutivo dos juros, a falta de investimentos e o aumento de impostos, fazendo a vaca engasgar de tanto tossir. 

Assim que a presidenta foi eleita, seu discurso de posse acompanhou o otimismo e reiterou os compromissos da campanha eleitoral: "Nem que a vaca tussa!". 

Havia uma grande expectativa a respeito do perfil da equipe econômica que a presidenta Dilma Rousseff escolheria. Sem nenhuma explicação, nomeia-se um ministro da Fazenda que agradaria ao mercado e à oposição. O simpatizante do PT não entende o porquê. Se tudo ia bem, era necessário alguém para implementar ajustes e medidas tão duras e negadas na campanha? Nenhuma explicação.



Imagina-se que a presidenta apoie o ministro da Fazenda e os demais integrantes da equipe econômica. É óbvio que ela sabe o tamanho das maldades que estão sendo implementadas para consertar a situação que, na realidade, não é nada rósea como foi apresentada na eleição. Mas não se tem certeza. Ela logo desautoriza a primeira fala de um membro da equipe. Depois silencia. A situação persiste sem clareza sobre o que pensa a presidenta. 

Iniciam-se medidas de um processo doloroso de recuperação de um Brasil em crise. Até onde ela se propõe a ir? Até onde vai o apoio à equipe econômica? 

Para desestabilizar mais um pouco a situação, a Fundação Perseu Abramo, do PT, critica as medidas anunciadas, o partido não apoia as decisões do governo e alguns deputados petistas vociferam contra elas. Parte da oposição, por receio de se identificar com a dureza das medidas, perde o rumo criticando o que antes preconizou. 

O PT vive situação complexa, pois embarcou no circo de malabarismos econômicos, prometeu, durante a campanha, um futuro sem agruras, omitiu-se na apresentação de um projeto de nação para o país, mas agora está atarantado sob sérias denúncias de corrupção. 

Nada foi explicado ao povo brasileiro, que já sente e sofre as consequências e acompanha atônito um estado de total ausência de transparência, absoluta incoerência entre a fala e o fazer, o que leva à falta de credibilidade e confiança. 

É o que o mercado tem vivido e, por isso, não investe. O empresariado percebe a situação e começa a desempregar. O povo, que não é bobo, desconfia e gasta menos para ver se entende para onde vai o Brasil e seu futuro. 

Acrescentem-se a esse quadro a falta de energia e de água, o trânsito congestionado, os ônibus e metrôs entupidos, as ameaças de desemprego na família, a queda do poder aquisitivo, a violência crescente, o acesso à saúde longe de vista e as obrigações financeiras de começo de ano e o palco está pronto. 

A peça se desenrola com enredo atrapalhado e incompreensível. O diretor sumiu. 
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* MARTA SUPLICY é senadora pelo PT-SP. Foi prefeita de São Paulo (2001-2004), ministra do Turismo (2007-2008) e ministra da Cultura (2012-2014) 
Fonte: Folha online, 28/01/2015
Imagem: 

Paulo Branco


O que é a morte de Deus e o niilismo


 


O louco anuncia a morte de Deus
 
Leitura do aforismo 125 de A Gaia Ciência.*
 

Quem pronuncia a frase “Deus morreu!” não é Nietzsche, ao contrário do que os leitores desavisados e os leigos em filosofia afirmam. Trata-se de um personagem da nossa história como história do niilismo: o louco. Nietzsche se vê apenas como um seu porta-voz.

O louco aparece no aforismo 125 de A Gaia Ciência.[1] O aforismo começa com uma pergunta: “Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’?” Quem é ele?

Levando em consideração que o aforismo todo, mantendo suas características de um bom texto nietzschiano, respeita a história da filosofia, não é difícil ver que a figura em questão lembra Diógenes, o cínico. É ele e somente ele que, na história da filosofia, procura um homem honesto com uma lanterna em pleno dia. Mas, levando em conta que na história da filosofia aquele que procurou o saber divino – as respostas corretas, e não somente exemplos, para suas perguntas do tipo “O que é X?” – e não o encontrou foi Sócrates, não deveria ser ele, então, o louco? Ora, Platão disse que Diógenes foi “o Sócrates tornado louco”. Assim, o aforismo inicia-se da maneira mais correta possível.

Para quem o louco fala? Para crentes que ficariam chocados? Não! Na maioria, os que ali estão, no mercado, são descrentes, ateus. São eles que o escutam. Eis o resultado: “E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada.” Esses homens cultos, sofisticados, os que não acreditam em Deus, o tomam como criança perdida ou navegador a esmo ou um tipo de estrangeiro. Mas o louco salta no meio deles e olhando para eles todos, destrambelha-se:

‘Para onde foi Deus? (…) já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis?’

A notícia é clara: a morte de Deus não é por ato de um ou outro ou de um povo, é algo de “vocês e eu”. Todos! A humanidade é responsável pela morte de Deus. Mas, enfim, não se mata um deus facilmente, ainda mais Deus, exatamente aquele que era o Deus da Guerra dos judeus, que se tornaram monoteístas por um ato de prestígio a seu Deus. Por isso, o louco, se dando conta da monstruosidade do ato de matar Deus, não pode não tentar explicar como que isso se deu.

Tendo em mente vários outros aforismos e textos de Nietzsche, em especial os reunidos no “De como o mundo-verdadeiro se tornou uma fábula” de O crepúsculo dos ídolos, não é difícil ver de que maneira as figuras do absoluto filosófico foram consumidas. Eis as três passagens que culminaram com Deus agonizante morto.

Primeiro, bebemos todo o mar. Tudo é água, disse Tales no início da filosofia. Mas secamos o arkhé inicial. Ora, não seria necessário atingir outro tipo de arkhé. Consumindo o primeiro, todos os outros nunca passaram de substituição falsa. Se Tales foi desautorizado porque o princípio que rege o mundo foi bebido por nós, por que tentar encontrar outro? Respiraríamos todo o ar e comeríamos no almoço qualquer apeiron, por mais sutil que fosse sua constituição. Comer e coçar é só começar, diz o ditado.
Em segundo lugar, ganhamos uma esponja para apagar a linha do horizonte. Não fabricamos a esponja, nós a ganhamos. Quem poderia ter nos dado algo suficientemente pecaminoso de modo a nos tirar o sentido do mundo, sua conformação, apagando um traço tão importante do desenho? Só o instigador máximo do pecado desafiaria Deus. Apagar a linha do horizonte é antes de tudo atingir Deus à medida que atinge aquilo que ele faz de melhor, que é pintar. Tomás de Aquino foi o filósofo que mostrou Deus não como quem deveria ser descoberto por prova lógica. Fazia mais sentido, para ele, perceber sua criação como obra de artista. Os exemplos dessa situação são sempre simples e eficazes: pegamos uma joaninha, olhamos de perto aquele ponto vermelho com pintas pretas, e temos a certeza de que aquela pintura foi feita com as mãos da perfeição, portanto, as mãos de Deus. Apagamos linhas feitas pela mão de Deus. Retiramos o horizonte da paisagem, como poderia existir qualquer paisagem se as linhas de fuga de qualquer desenho determina já a existência, para que o desenho exista, uma linha do horizonte?

Finalmente, desatamos o fio que ligava a Terra ao Sol. Copérnico! O mundo moderno é inaugurado com a visão de que o Sol não gira em torno da Terra se adotamos um ponto de referência neutro, nem na Terra e nem no Sol, de modo a poder ver que a Terra se afastado Sol ou vice versa. Uma órbita elíptica permite isso. O espaço se mostra aterrorizantemente infinito, colocando Pascal em vertigem. Pascal sentiu que “vagamos como que através de um nada infinito”. Ele tremeu ao sentir “na pele o sopro do vácuo”. O sol de Platão, o ponto do absoluto metafísico par excellence, representante do Bem no âmbito da alegoria do filósofo, se desgarra de nós.

Tales, Aquino, Pascal e Platão ou, melhor, toda e qualquer filosofia metafísica está então desautorizada. Por isso agora aparecem as estações e podemos sentir o frio. O frio vem porque não há mais sol e, então, não havendo mais o Bem, como dizer que algo é bom ou não? Desvalorização de todos os valores à medida que um calor máximo se afasta. Um mundo frio emerge. Um mundo frio é um mundo em que então, por se apresentar com névoa, permite que alguns tenham de “acender lanternas de manhã”. O ato de loucura torna-se ato comum. O louco pode aparecer em qualquer mercado.

Falando diante de ateus que, enfim, nunca deixaram de funcionar como os maiores garantidores de Deus, não consegue mesmo ser ouvido – o louco. E ele conclui que veio cedo demais avisar os homens do que eles mesmos já teriam feito. Eles ainda não tinham sentido o cheiro do cadáver divino – e olha lá que um cadáver do tamanho do de Deus deveria gerar uma putrefação daquelas!

Deus morto e não sabido morto pelos homens permite então que o louco, naquele mesmo dia, entre em igrejas. Há gente lá. São pessoas que não sabem que estão orando em lugares que nada mais são que ‘mausoléus e túmulos de Deus’.

Deus é morto como uma estrela: vemos a luz dela, mas há milhões de anos ela já se apagou. A metáfora da viagem da luz da estrela, usada no aforismo, não é à toa. Aparece para que o assassinato de Deus pelos homens seja posto na dimensão temporal de um tempo sem tempo. Afinal, sempre haverá quem, como o louco, possa falar da morte de Deus para os acreditam em Deus. A história em Nietzsche ocorre e está sempre ocorrendo, de modo que o retorno contínuo possa sempre ser vislumbrando, quase que como um elemento transhistórico.

O problema deixado pelo louco:

Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!”

pai no telhadoNa mitologia grega só um deus mata outro deus. Talvez os homens possam se colocar  
como deuses e, então, terem alguma condição de reivindicarem para si, com alguma dignidade, o ato tão grandioso de matar Deus. Afinal, a pior coisa para um assassino é cometer um assassinato grandioso, matar um verdadeiro superstar, e jamais ser lembrado sequer como um grande assassino. Há condição do homem ser um deus?

No século de Nietzsche o positivismo anunciou a substituição da religião pela ciência, e sendo esta o fim de todo e qualquer absoluto, por sua própria dinâmica interna, independente das crenças e vontades dos cientistas, seria então o homem, com esse instrumento na mão, um novo deus? Seria um deus esquisito, ou seja, o deus do perecível, do mutável, do relativo, do que está sempre ampliando o consumo e o descarte e, assim, ampliando o vazio – o nada. O niilismo.

Mas, o que é o niilismo? Grosso modo é a desvalorização de todos os valores mais básicos e fundamentais.  É a chegada do nada. Em sua reflexão sobre o niilismo nietzschiano, O Peter Sloterdijk cita um conto infantil chamado de A história interminável, de Michel Ende. Neste, há três duendes que aterrorizam o herói. O primeiro duende anda sobre as mãos, pois lhe faltam as pernas e o baixo ventre. O segundo tem um buraco enorme no peito, dando vistas para o outro lado do corpo. O terceiro pula sobre a única perna, a direita, pois todo o seu lado esquerdo é inexistente. Os duendes explicam que aquelas falhas haviam sido produzidas pela vinda do espalhamento da destruição, a vinda do nada. Eles são os que não quiseram fugir da floresta, sua terra natal, e foram pegos pelo nada. O herói pergunta então se aquelas faltas lhes trazem dor, e eis que todo o segredo do vazio é revelado: ‘não, a gente não sente nada. Apenas lhe falta qualquer coisa. E, cada dia, lhe falta mais, quando se está atacado por isto. Em breve, já cá não estaremos de todo’.[2]

* Texto elaborado no âmbito do curso “Nietzsche: Deus está morto” ocorrido no Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA) – cefa.pro.br – entre 21 e 24 de janeiro de 2015.

[1] O aforismo em questão, na versão utilizada, está em: <http://ghiraldelli.pro.br/o-homem-louco/> Consultado em 24/01/2015

[2] Sloterdijk, P. A mobilização infinita. Lisboa: Relógio D’Água, 2002, p. 119.
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*Paulo Ghiraldelli. Doutor e mestre em filosofia pela USP. Doutor e mestre em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Bacharel em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-doutor em Medicina Social pela UERJ. Professor titular e livre docente pela Unesp. Atualmente professor da UFRRJ, diretor do CEFA e co-produtor do Hora da Coruja da Flix TV. Coordenador do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da ANPOF.

Conhecer os mitos judeus.

Gianfranco Ravasi*

Um aforismo popular afirmava que cada palavra da Torá, os cinco primeiros livros sagrados das Sagradas, tem 70 rostos, isto é, tem múltiplas iridescências semânticas, de natureza especialmente espiritual. Também se dizia que o texto sagrado é semelhante a uma pedra que, atingida pelo martelo, despedaçando-se, espirra milhares de centelhas de luz.


"Ouviu-se uma voz do céu: Moisés, chegou o fim da tua hora... O Senhor disse a Moisés: Cruza as pernas! Moisés obedeceu. Agora cruza os braços sobre o peito! Moisés obedeceu. Feche os olhos! Moisés fechou os olhos. Depois, o Senhor falou à sua alma: Minha filha, 120 anos eu tinha te atribuído para viver dentro do corpo deste santo homem. Não demora mais, minha filha. Chegou a hora. A alma respondeu: Tu me criaste e colocaste no corpo deste santo homem: existe, talvez, no mundo um corpo mais puro e imaculado e santo do que este? Eu estou bem aqui, não quero ir embora! Mas o Eterno repetiu: Não demora, minha filha, o teu fim já chegou... Quando percebeu que a alma se recusava a sair dele, Moisés se despediu da sua alma com estas palavras: Volta, alma minha, para a tua paz, porque o Senhor foi bom contigo! E foi assim que o Santo, bendito seja Ele, tomou a alma de Moisés, beijando-o na boca... Deus mesmo chorou pela morte de Moisés. Não choro por Moisés – explicou o Senhor –, mas por aquilo que os filhos de Israel perderam com a sua partida..."

Sintetizamos um capítulo mais amplo de uma obra cuja arquitetura monumental se articula em nada menos do que sete tornos, que o judeu lituano, que imigrou para os Estados Unidos na juventude, Louis Ginzberg (1873-1953), compôs e publicou entre 1909 e 1938.

A cena citada – sobretudo na sua escrita integral –, em certos aspectos, é até mesmo comovente. Já abandonado pela própria inspiração divina, deixado sozinho por aquele Deus com quem havia dialogado como um amigo fala com o seu amigo, para usar uma locução bíblica, colocado no cume do Monte Nebo diante daquela terra prometida por Deus a Israel, ao término da peregrinação de aproximação que durou 40 anos no deserto, o ultracentenário Moisés sentiu a vida fluir para fora do seu corpo.

É estupendo o diálogo entre a alma desse grande líder de Israel e Deus mesmo: ela não se resigna a ter que se retirar daquele corpo santo para retornar ao Criador e tenta quase negociar uma maior permanência em uma pessoa tão nobre e justa.

Mas, no fim, é Deus quem toma a iniciativa e, através de um beijo, suga dos lábios de Moisés a sua alma. E é poderosa a cena final de um Deus que chora com os filhos de Israel, compartilhando a sua dor, sobretudo porque ele também não teria mais um mediador como Moisés para dialogar com um povo tão difícil e rebelde.

Ora, se nos atemos à Bíblia, o fim daquele que os judeus chamam de Morenû, "o nosso mestre", é descrita de modo bem mais seco e sem nenhuma concessão ao sentimento. Lê-se, de fato, no livro do Deuteronômio:

"Moisés, servo do Senhor, morreu aí mesmo [o monte Nebo], na terra de Moab, conforme a palavra do Senhor. Foi sepultado no vale, na terra de Moab, na frente de Bet-Fegor. Até hoje, ninguém sabe onde fica a sepultura dele. Moisés tinha 120 anos quando morreu. Sua vista não tinha enfraquecido, nem se esgotara seu vigor. Os israelitas choraram por Moisés, nas estepes de Moab, durante 30 dias, até que terminou o luto por Moisés" (34,5-8).

Naturalmente, a tradição literária e teológica judaica posterior não se contentou com essas poucas linhas quase de crônica e – como acontece com outras páginas bíblicas – bordou ao redor delas uma série de fios narrativos de intenso impacto emotivo e espiritual. Na prática, era uma expansão quase "oratória" (para usar a linguagem cristã, "homilética"), de corte parenético e figurativo, a fim de envolver o leitor da Bíblia em uma adesão mais íntima.


Afinal, um aforismo popular afirmava que cada palavra da Torá, os cinco primeiros livros sagrados das Sagradas, tem 70 rostos, isto é, tem múltiplas iridescências semânticas, de natureza especialmente espiritual. Recorrendo a uma imagem do profeta Jeremias (23, 29), segundo o qual a palavra divina é "como um martelo que quebra a rocha", também se dizia que o texto sagrado é semelhante a uma pedra que, atingida pelo martelo, despedaçando-se, espirra milhares de centelhas de luz.

Ginzberg pacientemente colecionou e comparou essas obras teológico-narrativas ou jurídicas judaicas que, como um arco-íris, estendiam-se sobre as Sagradas Escrituras e as tinha recomposto em uma espécie de comentário contínuo. Agora, com este volume (veja abaixo), que é o quinto da série de sete previstos, abrangem-se tanto os eventos principais do percurso de Israel no deserto, depois de deixar para trás a opressão faraônica, quanto a chegada à Terra Santa.

Tem-se, assim, o início com a tensão dramática da escolha idolátrica do bezerro de ouro e do confronto entre Deus e Israel e o seu sacerdote Arão (o pensamento se volta também para Moses und Aaron, incompleto mas admirável oratório moderno de Schönberg).

Entra-se, depois, no complexa ritualidade relacionada com a preparação do santuário móvel com a arca da aliança; multiplicam-se, posteriormente, os golpes de cena das rebeliões de um povo cansado e duvidoso, assistem-se a tentativas de golpe de Estado contra Moisés (Coré, Datã e Abirão), cruzam-se estranhos profetas pagãos (Balaão), e assim por diante, em uma sequência ininterrupta de vicissitudes que, a partir da base da narrativa bíblica, florescem em criações apócrifas surpreendentes.
Em 1995, com muita coragem, a editora Adelphi empreendeu a versão italiana do setenário de Ginzberg e agora, como se dizia, depois de quatro tornos, chegou à conclusão do ciclo dedicado à Torá, com a epopeia final de Moisés. A tradução italiana – com todo o aparato necessário de referências às fontes judaicas, que são a mina em que o autor vasculha, com o marco das notas de complemento, com um glossário indispensável para o leitor não judeu (em particular, leiam-se os vocábulos 'aggadah, halakha, midrash, mishnah, talmud, targum) – foi confiada à grande competência e à fineza interpretativa de Elena Loewenthal.

Lendo essas e as outras páginas anteriores da coleção de Ginzberg, tem-se a confirmação mais incisiva, mas, paradoxalmente, também mais fluida da definição heideggeriana da hermenêutica: Auslegen ist das ungesagte sagen, "interpretar é dizer o não dito" de um texto.

 Louis Ginzberg. Le leggende degli ebrei. Verso la terra promessa. Organizado por Elena Loewenthal. Milão: Adelphi, 449 páginas.

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* A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 25-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 28/01/2015

A lição do Holocausto: «Nunca mais odiar»

Marco Impagliazzo*
 Imagem
A 27 de janeiro de 1945 tropas russas entraram em Auschwitz, epicentro do sistema nazi de extermínio. Libertaram 2819 prisioneiros reduzidos à exaustão, entre os quais 180 crianças, muitas das quais vítimas das experimentações do médico Josef Mengele. É um pequeno número, diante dos milhões de pessoas tragadas por aquele enorme “lager” [campo] (com os judeus morreram também milhares de polacos, russos e pessoas de muitas nacionalidades), verdadeira fábrica de morte. 

Nos armazéns os soldados soviéticos encontraram igualmente os despojos que os nazis tinham recolhido para deles receber dinheiro: milhares de pares de óculos, mais de 800 mil vestidos de mulher, montanhas de sapatos, acumulações de cabelos. Nos meses e anos seguintes, a Europa haveria de tomar consciência da enormidade da “Shoah”, com os seis milhões de judeus mortos e a criação de um sistema concentracionário que não tem igual na história humana. 

Hoje é o 70.º aniversário da libertação de Auschwitz, o Dia da Memória, instituído há 10 anos pela ONU. Não faltam interrogações em torno deste aniversário, porque por vezes se tem a impressão de que as celebrações são de circunstância, pouco participadas a nível popular. Alguns colocaram o risco de uma “hipertrofia da memória”, devida à multiplicação de eventos, a maior parte de carácter político ou académico, com escassa incidência na cultura e na consciência dos povos. 

Todavia, recordar é um imperativo. É necessário fazer com que o Dia da Memória não se reduza a uma reevocação do passado, mas nos interrogue também sobre o presente e sobre a realidade das sociedades europeias. Com efeito, o antissemitismo, que foi a antecâmara dos “lager”, permanece ainda hoje um problema europeu. Não só por causa dos recentes e trágicos acontecimentos de Paris, em que além da sede do “Charlie Hebdo” foi atingida uma loja judaica, com quatro vítimas. 

Basta recordar o ataque à escola judaica de Toulouse, a 19 de março de 2012, com quatro mortos, dos quais três crianças, ou ao Museu Judaico de Bruxelas, a 24 de maio de 2014, também com quatro vítimas. São os episódios mais graves, mas muitos, demasiados, são os de menor dimensão. Em 2014 mais de cinco mil judeus franceses optaram por transferir-se para Israel. Cerca de 15 mil foram os judeus que deixaram outros países europeus. A retomada da emigração judaica é sinal de profunda incerteza. A Europa arrisca-se a perder a estrada da convivência entre pessoas de fés religiosas, culturas e tradições diferentes. 

Em 2015, Auschwitz pode parecer longínquo. Há poucas semanas morreu um dos últimos sobreviventes da “Shoah”, Enzo Camerino, que a 16 de outubro de 1943 foi deportado, com apenas 14 anos. Recentemente contou de maneira simples a sua história, para a transmitir aos jovens, aos quais repetia as palavras que o pai lhe disse no “lager”: «Nunca mais odiar». É um ensinamento a não perder. 

Como transmitir às novas gerações a memória da “Shoah”, agora que os últimos testemunhos desaparecem? As visitas das escolas a Auschwitz têm um grande significado. Os meios de comunicação podem dar um contributo. Sobretudo, no entanto, é preciso ligar a memória da guerra e da “Shoah” à realidade do nosso tempo, para compreender como o racismo e o antissemitismo foram elementos de uma catástrofe para a Europa, e como, hoje, é urgente reencontrar o fio de uma sociedade em que todos possam viver juntos de maneira pacífica. Políticas de longo alcance, boa informação, envolvimento dos líderes religiosos numa rede de encontro e diálogo, atenção às periferias, são alguns dos passos a dar rumo a uma sociedade da convivência onde haja espaço para todos. 

Que Auschwitz, lugar que talvez mais do que todos viu manifestar-se a força do mal na história, seja ocasião de uma reflexão sobre a Europa. A pluralidade, elemento ineludível das sociedades contemporâneas, pode conduzir ao conflito ou, pelo contrário, ser o fundamento da civilização do conviver. Era o sonho que João Paulo II confiou ao mundo e às religiões em Assis, em 1986, e que hoje é o caminho a percorrer para a Europa: uma cultura da convivência na paz, no sentido do bem comum universal e no respeito das diferentes identidades.
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* Consultor do Pontifício Conselho da Cultura e do Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes; presidente da Comunidade de Santo Egídio
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 27.01.2015

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

As religiões e o terrorismo

 Leonardo Boff*
 Na verdade, mais importante que as religiões, é a espiritualidade que se apresenta como 
a dimensão do humano profundo.
Os principais conflitos do final do século XX e dos inícios do novo milênio possuem um transfundo religioso. Assim na Irlanda, em Kosovo, na Kachemira, no Afeganistão, no Iraque e no novo Estado Islâmico, extremamente violento. Ficou claro em Paris com o assassinato dos cartunistas e outras pessoas por fundamentalistas islâmicos. Como nisso entra a religião?

Não sem razão escreveu Samiuel P. Huntington em seu conhecido livro O choque de civilizações: ”No mundo moderno, a religião é uma força central, talvez a força central que motiva e mobiliza as pessoas….O que em última análise conta para as pessoas não é a ideologia política nem o interesse econômico; mas aquilo que com que as pessoas se identificam são as convicções religiosas, a família e os credos. É por estas coisas que elas combatem e até estão dispostas a dar a sua vida” (1997, p.79). Ele critica a política externa norte-americana por nunca ter dado o devido peso ao fator religioso, considerado algo passado e ultrapassado. Ledo engano. É o substrato dos mais graves conflitos que estamos vivendo.

Quer queiramos ou não, e não obstante o processo de secularização e o eclipse do sagrado, grande parte da humanidade se orienta pela cosmovisão religiosa, judaica, cristã, islâmica, xintoista, budista e outras.

Como já afirmava Christopher Dawson(1889-1970), o grande historiador inglês das culturas:”as grandes religiões são os alicerces sobre os quais repousam as civilizações”(Dynamics of World History,1957,p.128). As religiões são o “point d’honneur” de uma cultura, pois através dela projeta seus grandes sonhos, elabora seus ditames éticos, confere um sentido à história e tem uma palavra a dizer sobre o fins últimos da vida e do universo. Somente a cultura moderna não produziu religião nehuma. Encontrou subtituivos com funções idolátricas, como a Razão, o progresso sem fim, o consumo ilimitado, acumulação sem limites e outros. A consequência foi denunciada por Nietzsche que proclamou a morte de Deus. Não que Deus tenha morrido, pois não seria Deus. É o fato de que os homens mataram Deus. Com isso queria significar que Deus não é mais ponto de referência para valores fundamentais, para uma coesão por cima entre os humanos. Os efeitos os estamos vivendo em nível planetário: uma humanidade sem rumo, uma solidão atroz e o sentimento de desenraizamento, sem saber para onde a história nos leva.

Se quisermos ter paz neste mundo precisamos resgatar o sentimento do sagrado, a dimensão espiritual da vida que estão nas origens das religiões. Na verdade, mais importante que as religiões, é a espiritualidade que se apresenta como a dimensão do humano profundo. Mas a espiritualidade se exterioriza sob a forma de religiões, cujo sentido é alimentar, sustentar e impregnar a vida de espiritualidade. Nem sempre o realiza porque quase todas as religiões, ao se institucionalizarem, entram no jogo do poder, das hierarquias e podem assumir formas patológicas. Tudo o que é sadio pode ficar doente. Mas é pelo “sadio” que medimos as religiões, bem como as pessoas e não pelo “patológico”.  E aí vemos que elas preenchem uma função insubstituível: a tentativa de dar um sentido último à vida e oferecer um quadro esperançador da história.

Ocorre que hoje o fundamentalismo e o terrorismo que são patologias religiosas, ganharam relevância. Em grande parte se deve ao devastador processo de globalização (na verdade é ocidentalização do mundo) que passa por cima das diferenças, destrói identidades e impõe hábitos estranhos a eles.

Geralmente, quando isso ocorre, os povos se agarram àquelas instâncias que são os guardiães de sua identidade. É nas religiões que guardam suas memórias e seus melhores símbolos. Ao se sentirem invadidos como no Iraque e no Afeganistão, com milhares de vítimas, refugiam-se em suas religiões como forma de resistência. Então a questão não é tanto religiosa. Ela é antes política que usa da religião para se auto-defender. A invasão gera raiva e vontade de vingança. O fundamentalismo e o terrorismo encontram nesse complexo de questões seu nicho de origem. Daí os atentados do terror.

Como superar este impasse civilizacional? Fundamental é viver a ética da hospitalidade, dispor-se a dialogar e aprender com o diferente, viver a tolerância ativa, sentir-se humanos.

As religiões precisam se reconhecer mutuamente, entrar em diálogo e buscar convergências mínimas que lhes permitem conviver pacificamente.

Antes de mais nada importa reconhecer o pluralismo religioso, de fato e de direito. A pluralidade se deriva de uma correta comprensão de Deus. Nenhuma religião pode pretender enquadrar o Mistério, a Fonte originária de todo ser ou qualquer nome que quisermos dar à Suprema Realidade, nas malhas de seu discurso e de seus ritos. Se assim fora, Deus seria um pedaço do mundo, na realidade, um ídolo. Ele está sempre mais além e sempre mais acima. Então, há espaço para outras expressões e outras formas de celebrá-lo que não seja exclusivamente através desta religião concreta.

Os onze primeiros capítulos do Gênesis encerram uma grande lição. Neles não se fala de Israel como povo escolhido. Refere-se aos povos da Terra, todos como povos de Deus. Sobre eles paira o arco-iris da aliança divina. Esta mensagem nos recorda ainda hoje que todos os povos, com suas religiões e tradições, são povos de Deus, todos vivem na Terra, jardim de Deus e que formam a única Espécie Humana composta de muitas famílias com suas tradições, culturas e religiões.
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 * Leonardo Boff é colunista do JBonline, filósofo e teólogo
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Fonte: Site do autor. https://leonardoboff.wordpress.com/2015/01/26/as-religioes-e-o-terrorismo/