Card. Gianfranco Ravasi*
Não compreendo porque é que alguns livros são
considerados como apócrifos. O que é que permite dizer que um livro é
inspirado ou não por Deus? Parece-me que os apócrifos foram excluídos
da Bíblia porque se apoiavam em lendas e davam asas à imaginação. O
Génesis e o Apocalipse não fazem o mesmo?
Tecnicamente falando, trata-se da "canonicidade" da Sagrada
Escritura, questão que atormentou a Igreja dos primeiros séculos e que
estava ligada à necessidade de elaborar uma unidade de medida teológica -
daí a palavra "cânone", que remete, em grego, para a régua que
permite efetuar medições, uma espécie de metro primordial - para
evidenciar qual é a Palavra de Deus autêntica colocada por escrito.
Esta verificação não podia ser unicamente histórica e literária,
como refere a questão, ao supor que certos livros chamados apócrifos,
ou seja, "ocultos", e por isso relegados para as margens da comunidade
eclesial, foram rejeitados porque se apoiavam em lendas e deixavam
espaço importante à imaginação.
Se nesse caso se tratasse de aplicar um metro ou um cânone de
medida, poder-se-ia, com justiça, questionar outras páginas tidas por
"canónicas" que comportam elementos míticos (mesmo se esses elementos
foram rearranjados), servindo-se da imaginação através de narrativas ou
parábolas para transmitir a verdade.
A medida também não é a da espiritualidade: os apócrifos judeus e
cristãos comportam páginas de forte conotação mística, com grande
moralidade e ascese (como as famosas "narrativas gnósticas").
A historicidade também não é discriminatória em si: os próprios
Evangelhos canónicos misturam a história e a fé; quanto aos evangelhos
apócrifos, incluem evocações históricas provavelmente autênticas sobre
Jesus de Nazaré (como é o caso de algumas palavras de Cristo
conservadas no "Evangelho de Tomé").
Trata-se, na realidade, de uma escolha concretizada segundo
critérios teológicos e eclesiais rigorosos, com a implicação de questões
problemáticas, como a inspiração divina das Escrituras, a Tradição da
Igreja, a presença do Espírito Santo como intérprete vivo da Palavra de
Deus.
Observemos, antes de mais, como é que a Igreja chegou à
definição do cânone bíblico. O problema já se tinha colocado no judaísmo
para as Escrituras hebraicas. A diáspora judaica tinha acrescentado
aos livros bíblicos escritos em hebraico sete outras obras compostas ou
vindas até nós em língua grega (Tobias, Judite, primeiro e segundo
livro dos Macabeus, Sabedoria, Sirácida [Eclesiástico] e Baruc), bem
como algumas passagens gregas situadas nos livros hebraicos de Ester e
de Daniel. Trata-se do famoso "cânone alexandrino", adicionado à antiga
versão grega da Bíblia em Alexandria, no Egito.
Este cânone alargado foi definitivamente acolhido pela Igreja
católica no Concílio de Trento (1546), enquanto que as Igrejas
protestantes optaram pelo cânone exclusivamente "hebraico". Algumas
décadas depois, um teólogo, Sisto de Siena, qualificará estes sete
livros de "deuterocanónicos" (segundo cânone), ao passo que os
protestantes os definiriam como "apócrifos", relegando-os para uma
categoria inferior, extra-canónica.
Surgem duas interrogações. Em primeiro lugar no plano histórico:
que cânone a Tradição cristã antiga acolheu? Das 350 citações
veterotestementárias [do Antigo Testamento] presentes no Novo
Testamento, pelo menos 300 vêm diretamente da versão grega antiga, dita
dos "Setenta". Pode deduzir-se que os autores do Novo Testamento
consideravam inspirados os sete livros deuterocanónicos pertencentes à
Bíblia.
Esta convicção foi partilhada por toda a Igreja dos três
primeiros séculos, à exceção de um autor do séc. II, Militão de Sardes,
fiel ao cânone hebraico. Um autor tão importante como Orígenes, do séc.
III, afirmava explicitamente a necessidade de utilizar igualmente os
livros deuterocanónicos como Palavra de Deus.
Esta harmonia foi estilhaçada no séc. IV, quando alguns Padres
da Igreja - Atanásio, Cirilo de Jerusalém, Hilário de Poitiers, e
sobretudo Jerónimo, o tradutor latino da Bíblia - regressaram ao cânone
hebraico, à "Hebraica veritas", às raízes hebraicas das Escrituras,
como dizia S. Jerónimo. Acabou por ser a primeira versão que prevaleceu
na Igreja, apesar de algumas tensões que foram resolvidas pelo Concílio
de Trento para a Igreja católica, e de outra maneira pela Reforma.
Daqui surge a segunda interrogação, decisiva: sobre que
fundamento um livro é reconhecido como inspirado por Deus, e portanto
"canónico" e fonte da revelação divina?
Na perspetiva católica, um livro é canónico quando a Tradição da
Igreja, iluminada e guiada pelo Espírito Santo para salvaguardar o
património da revelação, acolheu esse livro como inspirado por Deus, e
assim se manteve no seu ensinamento, para além de algumas hesitações
temporais. A fé eclesial, na sua globalidade e na sua continuidade, com
a presença do Espírito Santo nela, torna-se a pedra angular teológica.
A posição luterana diverge: a Escritura não pode ser
interpretada contra Cristo mas para Cristo, escrevia Lutero; das duas,
uma: ou bem que a Escritura se refere a Cristo, ou bem que não pode ser
considerada como verdadeira Escritura. Esta via cristológica é
importante mas comporta um risco porque tende a colocar de lado a lenta
progressão histórica das Escrituras, a partir do Antigo Testamento,
através do longo processo de evolução composto por múltiplas
ramificações, até à tensão messiânica final e, portanto cristológica.
Por seu lado, Calvino considera como sinal da canonicidade de um
livro bíblico o testemunho direto do Espírito Santo no interior do
crente, explicitado e confirmado pelos frutos espirituais que ele
produz. Reconhecendo que o Espírito ilumina os fiéis, esta visão
arrisca-se a ser demasiado "subjetiva" e reter apenas as páginas
"espirituais".
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* Card. Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In " 150 questions à la foi", ed. Mame
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 15.01.2015 - http://www.snpcultura.org/os_escritos_canonicos.html
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In " 150 questions à la foi", ed. Mame
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 15.01.2015 - http://www.snpcultura.org/os_escritos_canonicos.html
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