domingo, 11 de janeiro de 2015

Troca impossível e definições exacerbadas

Juremir Machado da Silva*

 
Há quem deseje aproveitar o momento para misturar tudo.

Ou tudo humor é livre ou tudo humor é condenável.

Ou se pode zombar de negros, gays e religiões ou não se pode zombar de ninguém.

Muitos dos que adoram humilhar negros e gays acham que não se pode zombar de Maomé.

O contrário também existe.

Não é aceitável humor racista nem humor pedófilo.

De resto, não se trata de proibir, mas de criticar.

Humoristas brasileiros, porém, nem sempre recebem bem as críticas ao que fazem.

Reclamam do politicamente correto.

O politicamente correto é esse outro que não aceita mais passivamente ser humilhado.

É fácil ser politicamente incorreto quando não se é o objeto da humilhação.

Charlie Hebdo não zombava de muçulmanos. Zombava da ignorância e da superstição.

Não ironizava a religião como fato da vida privada. Atacava o fanatismo.

Há uma diferença abissal entre atacar a cor de uma pessoa ou sua inclinação sexual e atacar a intolerância.

Daí  reflexão:

Poucos intelectuais interpretaram tão profundamente o terrorismo quanto o francês Jean Baudrillard. Em “Power inferno”, ele traduziu os paradoxos do terror: “Se o objetivo do terrorismo é desestabilizar a ordem mundial exclusivamente pelas suas forças, então ele é absurdo: a relação de forças é tão desigual – e, de qualquer maneira, já há tanta desordem nessa ordem mundial e tanta desregulação – que é inútil tentar produzir mais”. O Ocidente está acostumado a negociar. A negociação exige que o outro queira receber algo em troca para mudar o seu comportamento. Os terroristas não têm valor de troca. Sabem que vão morrer. Morrem para existir. Não negociam.

O Ocidente está habituado a oferecer a preservação da vida como moeda forte a todos que o atacam. Baudrillard observa: “O terrorismo não inventa nem inaugura nada. Leva simplesmente as coisas ao extremo, ao paroxismo”. Leva ao extremo a ruptura do terrorista com o seu bem mais precioso: a própria vida. Os homens que atacaram Charlie Hebdo tornaram-se reféns de si mesmos a partir da primeira morte. Era o que buscavam.

A execução do policial sobre a calçada sintetizou esse corte.

Qualquer um se pergunta: o que eles querem para parar? Nada. Daí a conclusão de Baudrillard: “Aquilo que ressuscita o terrorismo é alguma coisa que não se negocia num sistema de diferenças e de trocas generalizadas”. Esse é o problema. Não há campo possível de entendimento. Os fundamentalistas transformam o ponto forte das sociedades democráticas – a tolerância – em ponto fraco: sabem que o Ocidente não pode responder na base do olho por olho dente por dente para não cair na intolerância que rejeita. Não há mais limite. Essa é a consequência.

O terrorismo toma o Ocidente inteiro como refém, obriga-o a suspeitar de todo mundo e produz uma obsessão pela segurança. O que pretendem dizer com seus atos inomináveis? Que sentido desejam dar a esses atos? Baudrillard mostra que é mais complicado: “Os terroristas atentam contra um sistema de realidade integral através de um ato que não tem, no seu momento de realização, nem sentido nem referência verdadeiros num outro mundo”. Inexiste utopia no ato terrorista. Somente refutação abstrata. O poder do terrorismo está na sua ausência de sentido. A única saída para eles e para o Ocidente é a possibilidade da morte como desfecho da caçada policial.

A espiral do terror deixa um saldo que vai além do número imediato de mortos. Segundo Baudrillard, “se a guerra virtual já tinha sido vencida pela potência mundial, restando apenas a confirmação da real, é o terrorismo quem ganha no plano simbólico por meio do advento da desordem generalizada”. A ordem do iluminismo acabou. Michel Maffesoli, amigo de Baudrillard, falando de Michel Houellbecq para o jornal Le Figaro – resumiu: “As Luzes apagaram-se”. – Houellebecq foi capa da última edição de Charlie Hebdo com seu livro sobre a possível islamização da França até 2022. A troca com terror é impossível. Só resta ao Ocidente eliminá-lo pela força.

Alguns já aproveitam para justificar todos os atos de Israel contra palestinos.

Nem todo palestino em luta contra Israel é terrorista.

Os terroristas devem ser combatidos.

O combate ao terrorismo não deve permitir a eliminação de alvos civis inocentes nem o assentamento de novos colonos em territórios palestinos. Há uma diferença fundamental dos palestinos em relação aos terroristas que atacaram Charlie Hebdo: os palestinos têm um valor de troca. Eles sabem o que querem: um Estado palestino. Alguns, condenáveis, querem a supressão do Estado de Israel. Estão errados. Mas ainda é um valor de troca.

Na loucura dos terroristas da semana passada, um deles tomou uma mercearia judaica cruzando os temas, os conflitos, as situações desesperadoras e os impasses. A conclusão é uma só: hoje, existe um outro que não aceita a regra do jogo. Esse outro assassino precisa ser controlado. Mas a raiz do mal está em outro lugar. Está no descaso do Ocidente com situações como a do Oriente Médio. Enquanto o Ocidente não se decidir a resolver, de fato, a contenda entre israelenses e palestinos estará chocando o ovo da serpente. Por outro lado, num mundo relativista, em que a verdade depende de cada ponto de vista, fanáticos morrem por uma verdade sem fundamento.

Será preciso convencer que a verdade mais profunda é a do respeito à diferença que respeita a diferença.
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* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Correio do Povo online, 11/01/2015
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