Juremir Machado da Silva*
Há quem deseje aproveitar o momento para misturar tudo.
Ou tudo humor é livre ou tudo humor é condenável.
Ou se pode zombar de negros, gays e religiões ou não se pode zombar de ninguém.
Muitos dos que adoram humilhar negros e gays acham que não se pode zombar de Maomé.
O contrário também existe.
Não é aceitável humor racista nem humor pedófilo.
De resto, não se trata de proibir, mas de criticar.
Humoristas brasileiros, porém, nem sempre recebem bem as críticas ao que fazem.
Reclamam do politicamente correto.
O politicamente correto é esse outro que não aceita mais passivamente ser humilhado.
É fácil ser politicamente incorreto quando não se é o objeto da humilhação.
Charlie Hebdo não zombava de muçulmanos. Zombava da ignorância e da superstição.
Não ironizava a religião como fato da vida privada. Atacava o fanatismo.
Há uma diferença abissal entre atacar a cor de uma pessoa ou sua inclinação sexual e atacar a intolerância.
Daí reflexão:
Poucos intelectuais interpretaram tão profundamente o terrorismo
quanto o francês Jean Baudrillard. Em “Power inferno”, ele traduziu os
paradoxos do terror: “Se o objetivo do terrorismo é desestabilizar a
ordem mundial exclusivamente pelas suas forças, então ele é absurdo: a
relação de forças é tão desigual – e, de qualquer maneira, já há tanta
desordem nessa ordem mundial e tanta desregulação – que é inútil tentar
produzir mais”. O Ocidente está acostumado a negociar. A negociação
exige que o outro queira receber algo em troca para mudar o seu
comportamento. Os terroristas não têm valor de troca. Sabem que vão
morrer. Morrem para existir. Não negociam.
O Ocidente está habituado a oferecer a preservação da vida como moeda
forte a todos que o atacam. Baudrillard observa: “O terrorismo não
inventa nem inaugura nada. Leva simplesmente as coisas ao extremo, ao
paroxismo”. Leva ao extremo a ruptura do terrorista com o seu bem mais
precioso: a própria vida. Os homens que atacaram Charlie Hebdo
tornaram-se reféns de si mesmos a partir da primeira morte. Era o que
buscavam.
A execução do policial sobre a calçada sintetizou esse corte.
Qualquer um se pergunta: o que eles querem para parar? Nada. Daí a
conclusão de Baudrillard: “Aquilo que ressuscita o terrorismo é alguma
coisa que não se negocia num sistema de diferenças e de trocas
generalizadas”. Esse é o problema. Não há campo possível de
entendimento. Os fundamentalistas transformam o ponto forte das
sociedades democráticas – a tolerância – em ponto fraco: sabem que o
Ocidente não pode responder na base do olho por olho dente por dente
para não cair na intolerância que rejeita. Não há mais limite. Essa é a
consequência.
O terrorismo toma o Ocidente inteiro como refém, obriga-o a suspeitar
de todo mundo e produz uma obsessão pela segurança. O que pretendem
dizer com seus atos inomináveis? Que sentido desejam dar a esses atos?
Baudrillard mostra que é mais complicado: “Os terroristas atentam contra
um sistema de realidade integral através de um ato que não tem, no seu
momento de realização, nem sentido nem referência verdadeiros num outro
mundo”. Inexiste utopia no ato terrorista. Somente refutação abstrata. O
poder do terrorismo está na sua ausência de sentido. A única saída para
eles e para o Ocidente é a possibilidade da morte como desfecho da
caçada policial.
A espiral do terror deixa um saldo que vai além do número imediato de
mortos. Segundo Baudrillard, “se a guerra virtual já tinha sido vencida
pela potência mundial, restando apenas a confirmação da real, é o
terrorismo quem ganha no plano simbólico por meio do advento da desordem
generalizada”. A ordem do iluminismo acabou. Michel Maffesoli, amigo de
Baudrillard, falando de Michel Houellbecq para o jornal Le Figaro –
resumiu: “As Luzes apagaram-se”. – Houellebecq foi capa da última edição
de Charlie Hebdo com seu livro sobre a possível islamização da França
até 2022. A troca com terror é impossível. Só resta ao Ocidente
eliminá-lo pela força.
Alguns já aproveitam para justificar todos os atos de Israel contra palestinos.
Nem todo palestino em luta contra Israel é terrorista.
Os terroristas devem ser combatidos.
O combate ao terrorismo não deve permitir a eliminação de alvos civis
inocentes nem o assentamento de novos colonos em territórios
palestinos. Há uma diferença fundamental dos palestinos em relação aos
terroristas que atacaram Charlie Hebdo: os palestinos têm um valor de
troca. Eles sabem o que querem: um Estado palestino. Alguns,
condenáveis, querem a supressão do Estado de Israel. Estão errados. Mas
ainda é um valor de troca.
Na loucura dos terroristas da semana passada, um deles tomou uma
mercearia judaica cruzando os temas, os conflitos, as situações
desesperadoras e os impasses. A conclusão é uma só: hoje, existe um
outro que não aceita a regra do jogo. Esse outro assassino precisa ser
controlado. Mas a raiz do mal está em outro lugar. Está no descaso do
Ocidente com situações como a do Oriente Médio. Enquanto o Ocidente não
se decidir a resolver, de fato, a contenda entre israelenses e
palestinos estará chocando o ovo da serpente. Por outro lado, num mundo
relativista, em que a verdade depende de cada ponto de vista, fanáticos
morrem por uma verdade sem fundamento.
Será preciso convencer que a verdade mais profunda é a do respeito à diferença que respeita a diferença.
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* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Correio do Povo online, 11/01/2015
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