Por que o “Charlie Hebdo” foi atacado. As manifestações e o risco
de mais xenofobia na Europa. Os sinais
de um sistema em crise profunda
Pela Redação de Outras Palavras
Uma das hipóteses mais lúgubres do sociólogo Immanuel Wallerstein
concretizou-se, em parte, esta manhã em Paris. Dois homens encapuzados e
vestidos de negro, aparentando (ou simulando) ser fundamentalistas
islâmicos, invadiram a sede de um jornal satírico francês, o Charlie Hebdo, e
executaram, a rajadas de metralhadoras, ao menos doze pessoas. Entre os
mortos estão o editor da publicação e outros três chargistas de enorme
talento e renome internacional. Charlie Hebdo é irreverente,
inclinado à esquerda e crítico às instituições religiosas. Esta postura
levou-o, algumas vezes, a provocar o islamismo, religião de milhões de
imigrantes oprimidos e discriminados na Europa.
Sejam quais forem os responsáveis pelo atentado, as consequências são
potencialmente trágicas: aumento da onda xenófoba – especialmente
anti-islâmica – na Europa. Crescimento dos partidos de extrema-direita.
Reforço à postura ultra-agressiva que os Estados Unidos, com notável
apoio da França, já adotam no Oriente Médio. Risco ampliado de guerras
de provocação. Wallerstein adverte que a crise do capitalismo é
profunda, mas poderá abrir espaço tanto para um sistema mais democrático
e igualitário quanto para o oposto. Ao entrar em declínio, a ordem hoje
hegemônica liberta a emergência e expansão de valores de um
pós-capitalismo; mas engendra, ao mesmo tempo, riscos de um mundo ainda
mais hierarquizado, violento e desigual. As circunstâncias do atentado e
seu contexto parecem validar a hipótese.
Armados de fuzis, os dois assassinos chegaram à redação de Charlie Hebdo, no centro de Paris, por volta das 11h. Sob ameaça, obrigaram a cartunista Corrine Rey (“Coco”),
que entrava com sua filha, a abrir a porta do prédio. Ela relatou que
falavam “um francês perfeito” e disseram pertencer à Al-Qaeda. Subiram
dois andares e começaram a fuzilaria.
Chegaram num momento preciso. Às quartas pela manhã, a redação
reunia-se, para definir a pauta do número seguinte. Estavam presentes o
diretor, Charb, mais três cartunistas – Cabu, Tignous e Wolinski (este último mais conhecido do público brasileiro, por publicar, em abril de 2011, em Piauí, a sequência “Meio século de sexo”)
– e quatro redatores (entre eles, o economista Bernard Maris, ex-membro
do Conselho Científico do movimento ATTAC, em favor do controle social
sobre o sistema financeiro).
Todos foram mortos na hora, junto com mais dois funcionários do jornal e dois policiais. Os assassinos teriam gritado,
segundo testemunhas que os jornais franceses não identificam
claramente, “Allahu Akbar” [“Alá é o Maior”] e se vangloriado de que
“vingamos o Profeta”. Mas fugiram de carro, ao invés de se
auto-martirizarem, como é comum em atentados cometidos pelo terror
islâmico. Além disso, até o fechamento deste texto, nenhum grupo havia
assumido o ato.
Fundado em 1992, o atual Charlie Hebdo (que resgata o nome de uma publicação anterior) não é
um jornal de extrema-esquerda, ao contrário do que se afirmou no
Brasil. Parte de sua equipe esteve presente em revistas humorísticas
ligadas à revolta de 1968. Mas seu foco central não são os grandes temas
políticos franceses ou mundiais – mas a crítica às instituições
religiosas e à ultradireita.
Nos últimos anos, voltou-se especialmente contra o islamismo. Em 2005, reproduziu uma série de charges publicadas originalmente no jornal dinamarquês Jyllands Posten, consideradas
ofensivas ao profeta Maomé. Manteve a mesma postura por anos a fio, o
que despertou críticas de analistas importantes do Islã – como Alan
Gresh, redator do Le Monde Diplomatique. Num texto publicado em 2012, ele defendeu, obviamente, a liberdade de expressão do Charlie Hebdo, mas
criticou sua linha anti-islâmica. Lembrou que, além de discriminados,
os muçulmanos sofrem, há anos, restrições às liberdades políticas (em
2014, o governo francês chegaria a proibir manifestação contra o ataque israelense aos palestinos da Faixa de Gaza). Diante deste contexto, Gresh indagava:
seria correto, em 1931, em plena ascensão do nazismo, uma publicação
alemã de esquerda estampar charges ridicularizando aspectos retrógrados
da religião judaica?
A hipótese de que o atentado de hoje seja de autoria de
fundamentalistas islâmicos é real. Num sinal da descoesão ocidental,
apontada por Wallerstein, o New York Times lembra
hoje que, entre os militantes do grupo ultrafundamentalista ISIS,
criador de um califado no Iraque, há milhares de europeus (além de
norte-americanos, seria justo acrescentar…).
Mas a pergunta clássica – cui profit, a quem beneficia o crime
– sugere não ficar apenas nesta hipótese. Quase quinze anos após os
atentados de 11 de Setembro, não foram respondidas as teorias
segundo as quais a derrubada das Torres Gêmeas não poderia ocorrer sem
algum tipo de participação das agências de inteligência dos Estados
Unidos, nem as crônicas sobre o estranho comportamento do presidente George W. Bush ao ser informado de sua derrubada.
Mais de 100 mil pessoas saíram às ruas esta noite, em dezenas de cidades francesas, em solidariedade à redação de Charlie Hebdo. O
clima foi de óbvia consternação e de defesa das liberdades.
Manifestaram-se os que se sentem próximos de um jornal irreverente e
sarcástico. Mas e a Europa profunda? Na própria França, as pesquisas
colocam em primeiro lugar, na preferência dos eleitores para a próxima
eleição à Presidência, Marinne Le Pen, da Frente Nacional, xenófoba e de
extrema-direita. Na Alemanha, ressurgem,
pela primeira vez depois da II Guerra Mundial, manifestações contra
estrangeiros, articuladas por um movimento que se apresenta como
contrário à suposta “islamização do Ocidente”. Que efeito terá o
atentado de hoje sobre estes sentimentos já em ascensão?
As doze vítimas de hoje merecem tantas homenagens quanto cada um dos mais de 500 mil mortos no Iraque, desde a invasão norte-americana, ou as mais de 2.400 pessoas seletivamente assassinadas pelo governo norte-americano, por meio de drones, só entre 2009 e 2014.
Porém, mais que os mortos, está em questão o futuro do humanidade. Para Wallerstein, é impossível saber,
hoje, o que virá após o declínio do capitalismo. É uma disputa que se
prolongará por décadas e será definida em “uma infinidade de nano-ações,
adotadas por uma infinidade de nano-atores, em uma infinidade de
nano-momentos”.
O atentado de hoje chama atenção para os riscos inerentes a este cenário de crise. Mas pode, num sentido oposto, ecoar o apelo à ação
feito, na sequência, pelo mesmo sociólogo. Ele diz: “Em algum ponto, a
tensão entre as duas soluções alternativas vai pender definitivamente em
favor de uma ou outra. É o que nos dá esperança. O que cada um de nós
fizer a cada momento, sobre cada assunto imediato, importa”.
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Fonte: http://outraspalavras.net/capa/morte-em-paris/
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