Paulo Ghiraldelli*
Sobre as críticas de
Coutinho a Zizek. Sobre proposta rortiana para enfrentar o problema dos
conflitos entre
mundo islâmico e o Ocidente.
O texto de Zizek “Pensar o atentado ao Charlie Hebdo”
contém uma verdade básica e velha. Mas não é isso que incomoda. O que
incomoda é que o texto dá a impressão de que Zizek usaria a tal verdade
para qualquer outro evento (a esquerda tem esse defeito sim!). O que ele
diz é que a democracia liberal ocidental não tem mecanismos de
autoproteção eficazes. Ora, um comunista sempre diz isso e, então, logo
aponta para a salvação do que seriam os melhores valores da democracia: o
socialismo. Se não diz diretamente, deixa nas entrelinhas. Notei isso e
vi na Folha de S. Paulo que o português Pereira Coutinho percebeu algo semelhante.
Todavia, a crítica de Pereira Coutinho no texto “Não é o ocidente que deve mudar, mas o Islã”
sofre de um problema semelhante ao de Zizek. Todo conservador liberal
diz aquilo que ele disse, contra Zizek. Afirma que os estados não
ocidentais ligados ao islamismo estão errados, e que o certo é se
ocidentalizarem, ou seja, separarem o estado da religião. O Ocidente não
precisa mudar, ele diz – e faz isso, me parece, sem rubor na face! Quem
precisa mudar é o Oriente, afirma mesmo! De quebra, repete mais um
jargão que é tão batido quanto o de Zizek: nossa história mostra que
radicalismos de direita e de esquerda deixaram um rastro de cadáveres no
século XX. Falando isso, assume algo mais ou menos assim: chegamos no
fim da história e tudo que temos para oferecer é o paraíso do
liberalismo que oscila entre ser mais tradicional ou mais social
democracia. Que coisa pequena!
Zizek é de 1949. Agora já é um filósofo
da velha guarda. Coutinho ainda é menino, tem 38 anos. Isso deve ser
ponderado. São gerações diferentes, além de formações em estágios atuais
bem diferentes. Então, quando equalizo os erros de ambos, faço uma
abstração dessas diferenças.
Coutinho não percebe que ele coloca uma
fé na democracia liberal sem notá-la como uma posição política a mais;
ele a expõe como a vida correta que, enfim, se for maculada, o será por
conta da esquerda e da direita assassinas. Ora, sabemos muito bem que a
democracia liberal ocidental jogou duas bombas atômicas no Japão,
sabemos do Vietnã e conhecemos também os cotidianos dos regimes em que
vivemos. Em nossas democracias liberais há a matança de minorias em uma
quantidade que se aproxima do que pode ser chamado de genocídio (o
Brasil tem índices de violência contra negros, homossexuais e mulheres
inauditos – e com uma estatística que mostra a participação do Estado).
Glorificar o Ocidente por meio de jactância tola? Não é comigo!
Deveríamos pensar nas Cruzadas, no colonialismo francês, português,
espanhol e inglês. Na escravidão negra. Aliás, deveríamos notar o
sangrento neocolonialismo. Vamos esquecer a Guerra do Ópio? Aliás, temos
de pensar no que fizemos com o Paraguai, um massacre de crianças e
mulheres, uma dizimação, algo que fez daquele país o lugar pobre que é.
Há mais crimes no Ocidente contra si mesmo e contra o exterior que
podemos contar. O Ocidente não é o paraíso e muito menos a democracia
liberal, que nele vingou, tem autoridade para falar grosso perante seus
críticos. Gostamos dela porque somos ocidentais e a ideia de privacidade
burguesa nos conquistou! Isso basta para nós, mas não basta para
outros.
O outro detalhe é a ocidentalização que
Coutinho exige do Oriente. Podemos legitimamente pedir para o mundo
árabe, talvez especificamente o mundo do Islã, tentar ver que
metralhadora e lápis não se equalizam. Podemos sugerir a eles algo como
“vocês também podem fazer cartuns e ter um pouco de irreverência a
oferecer”. Afinal, os árabes também leram Platão e eles é que nos
devolveram Aristóteles. Conhecem bem a ironia de Sócrates. O cinema
árabe mostra isso. Agora, não faz sentido dizermos para eles que seus
estados teocráticos ou semi-teocráticos são ruins por natureza. É
ridículo exigir deles que simplesmente separem Igreja e Estado como
fizemos, ou como dissemos que fizemos, simplesmente porque o nosso
modelo, como alguns pensam, é que é o correto. Aí realmente Coutinho
tropeça e cai de joelhos diante de uma posição sua de direita, que tem
pouco de democrática. Essa posição está mais para o xenofobismo um tanto
pueril da extrema direita europeia.
Não tenho vocação para viver em um lugar
com Estado e Igreja unidos. Mas não tenho nenhum apreço intelectual por
quem não sabe que um estado teocrático não é sinônimo de opressão pelas
razões de ser um estado teocrático. Se hoje há tentativas de grupos de
criarem algo como o Estado Islâmico, que na base do terrorismo quer nos
tirar do mundo porque somos os ocidentais capitalistas, ou seja, os
pecaminosos que não ganharão aquele montão de virgens no Céu
(felizmente!), deveríamos lembrar que, entre nós, até pouco tempo,
tínhamos também grupos parecidos. Ou já esquecemos que até pouco tempo o
terrorismo era ocidental? Esquecemos as Brigadas Vermelhas? Temos
simplesmente de escamotear tudo dizendo, então coisas como “não eram
ocidentais, eram pessoas que, no fundo, nem marxistas eram, nem de
esquerda eram, eram totalitários que importavam o totalitarismo do mundo
não ocidental, ou seja, no fundo vinham do sovietismo.” Sim, durante
muito tempo combatemos o comunismo o acusando de ser oriental. Criamos
até uma expressão ridícula na academia: “marxismo ocidental”. Era uma
forma de dizer que se era marxista sem, no entanto, ser czarista no
estilo dos herdeiros de Lênin.
Ocidente e Oriente e suas divisões
internas possuem riquezas imensas mantendo-se como Ocidente e Oriente.
Valem exatamente como são. Mostram que nós, os bípedes sem penas, não
diferimos somente no tempo, mas no espaço. Compreender a vida em Teerã
sob o islamismo e saber que dali, naquele lugar, os persas de Dario já
amedrontavam os gregos, nossos pais, e que esses espelhos, um voltado
para o outro, é que nos fez habitantes do planeta, vai além dessas
bravatas imperialistas de Coutinho. Essa fórmula é um tanto ridícula,
pois o que ela afirma é algo pueril, acredita-se que “os do lado de lá”,
por terem grupos terroristas que nós tivemos aqui, são os que devem
mudar se transformando no que “é certo”. Não! Essa é uma tese fraca em
si, nem mesmo para combater o requentado de Zizek é boa.
Diante do terrorismo o combatemos como
estamos fazendo. Lutamos pela liberdade de expressão e, nisso, temos de
proteger nossos cartunistas incondicionalmente. Agora, nós filósofos
temos outra missão, em conjunto com diretores de cinema, historiadores,
antropólogos, romancistas e gente desse tipo. Nosso papel (como Rorty
certamente diria) é o de pararmos de bater de frente. Isso não
significa acompanhar o papa na frase que deu margem para a
intocabilidade de todas as religiões. Temos é de encontrar narrativas
para fazer os muçulmanos investigarem melhor se há em suas próprias
histórias o que se pode aproveitar para o florescimento de uma cultura
do humor provocativo. É uma tarefa mais dura que o comum. Mas, não temos
nenhum direito de, para além dessa sugestão, dizer para eles, os
muçulmanos, que a organização do estado teocrático é uma abominação
política e moral.
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* Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.
Fonte: Site do autor
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