segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Sobre o islamismo: nem Zizek e nem Coutinho, mas redescrição rortiana

 Paulo Ghiraldelli*
 

Sobre as críticas de Coutinho a Zizek. Sobre proposta rortiana para enfrentar o problema dos conflitos entre 
mundo islâmico e o Ocidente. 

O texto de Zizek “Pensar o atentado ao Charlie Hebdo” contém uma verdade básica e velha. Mas não é isso que incomoda. O que incomoda é que o texto dá a impressão de que Zizek usaria a tal verdade para qualquer outro evento (a esquerda tem esse defeito sim!). O que ele diz é que a democracia liberal ocidental não tem mecanismos de autoproteção eficazes. Ora, um comunista sempre diz isso e, então, logo aponta para a salvação do que seriam os melhores valores da democracia: o socialismo. Se não diz diretamente, deixa nas entrelinhas. Notei isso e vi na Folha de S. Paulo que o português Pereira Coutinho percebeu algo semelhante.

Todavia, a crítica de Pereira Coutinho no texto “Não é o ocidente que deve mudar, mas o Islã” sofre de um problema semelhante ao de Zizek. Todo  conservador liberal diz aquilo que ele disse, contra Zizek. Afirma que os estados não ocidentais ligados ao islamismo estão errados, e que o certo é se ocidentalizarem, ou seja, separarem o estado da religião. O Ocidente não precisa mudar, ele diz – e faz isso, me parece, sem rubor na face! Quem precisa mudar é o Oriente, afirma mesmo! De quebra, repete mais um jargão que é tão batido quanto o de Zizek: nossa história mostra que radicalismos de direita e de esquerda deixaram um rastro de cadáveres no século XX. Falando isso, assume algo mais ou menos assim: chegamos no fim da história e tudo que temos para oferecer é o paraíso do liberalismo que oscila entre ser mais tradicional ou mais social democracia. Que coisa pequena!

Zizek é de 1949. Agora já é um filósofo da velha guarda. Coutinho ainda é menino, tem 38 anos. Isso deve ser ponderado. São gerações diferentes, além de formações em estágios atuais bem diferentes. Então, quando equalizo os erros de ambos, faço uma abstração dessas diferenças.

Coutinho não percebe que ele coloca uma fé na democracia liberal sem notá-la como uma posição política a mais; ele a expõe como a vida correta que, enfim, se for maculada, o será por conta da esquerda e da direita assassinas. Ora, sabemos muito bem que a democracia liberal ocidental jogou duas bombas atômicas no Japão, sabemos do Vietnã e conhecemos também os cotidianos dos regimes em que vivemos. Em nossas democracias liberais há a matança de minorias em uma quantidade que se aproxima do que pode ser chamado de genocídio (o Brasil tem índices de violência contra negros, homossexuais e mulheres inauditos – e com uma estatística que mostra a participação do Estado). Glorificar o Ocidente por meio de jactância tola? Não é comigo! Deveríamos pensar nas Cruzadas, no colonialismo francês, português, espanhol e inglês. Na escravidão negra. Aliás, deveríamos notar o sangrento neocolonialismo. Vamos esquecer a Guerra do Ópio? Aliás, temos de pensar no que fizemos com o Paraguai, um massacre de crianças e mulheres, uma dizimação, algo que fez daquele país o lugar pobre que é. Há mais crimes no Ocidente contra si mesmo e contra o exterior que podemos contar. O Ocidente não é o paraíso e muito menos a democracia liberal, que nele vingou, tem autoridade para falar grosso perante seus críticos. Gostamos dela porque somos ocidentais e a ideia de privacidade burguesa nos conquistou! Isso basta para nós, mas não basta para outros.

O outro detalhe é a ocidentalização que Coutinho exige do Oriente. Podemos legitimamente pedir para o mundo árabe, talvez especificamente o mundo do Islã, tentar ver que metralhadora e lápis não se equalizam. Podemos sugerir a eles algo como “vocês também podem fazer cartuns e ter um pouco de irreverência a oferecer”. Afinal, os árabes também leram Platão e eles é que nos devolveram Aristóteles. Conhecem bem a ironia de Sócrates. O cinema árabe mostra isso. Agora, não faz sentido dizermos para eles que seus estados teocráticos ou semi-teocráticos são ruins por natureza. É ridículo exigir deles que simplesmente separem Igreja e Estado como fizemos, ou como dissemos que fizemos, simplesmente porque o nosso modelo, como alguns pensam, é que é o correto. Aí realmente Coutinho tropeça e cai de joelhos diante de uma posição sua de direita, que tem pouco de democrática. Essa posição está mais para o xenofobismo um tanto pueril da extrema direita europeia.

Não tenho vocação para viver em um lugar com Estado e Igreja unidos. Mas não tenho nenhum apreço intelectual por quem não sabe que um estado teocrático não é sinônimo de opressão pelas razões de ser um estado teocrático. Se hoje há tentativas de grupos de criarem algo como o Estado Islâmico, que na base do terrorismo quer nos tirar do mundo porque somos os ocidentais capitalistas, ou seja, os pecaminosos que não ganharão aquele montão de virgens no Céu (felizmente!), deveríamos lembrar que, entre nós, até pouco tempo, tínhamos também grupos parecidos. Ou já esquecemos que até pouco tempo o terrorismo era ocidental? Esquecemos as Brigadas Vermelhas? Temos simplesmente de escamotear tudo dizendo, então coisas como “não eram ocidentais, eram pessoas que, no fundo, nem marxistas eram, nem de esquerda eram, eram totalitários que importavam o totalitarismo do mundo não ocidental, ou seja, no fundo vinham do sovietismo.” Sim, durante muito tempo combatemos o comunismo o acusando de ser oriental. Criamos até uma expressão ridícula na academia: “marxismo ocidental”. Era uma forma de dizer que se era marxista sem, no entanto, ser czarista no estilo dos herdeiros de Lênin.

Ocidente e Oriente e suas divisões internas possuem riquezas imensas mantendo-se como Ocidente e Oriente. Valem exatamente como são. Mostram que nós, os bípedes sem penas, não diferimos somente no tempo, mas no espaço. Compreender a vida em Teerã sob o islamismo e saber que dali, naquele lugar, os persas de Dario já amedrontavam os gregos, nossos pais, e que esses espelhos, um voltado para o outro, é que nos fez habitantes do planeta, vai além dessas bravatas imperialistas de Coutinho. Essa fórmula é um tanto ridícula, pois o que ela afirma é algo pueril, acredita-se que “os do lado de lá”, por terem grupos terroristas que nós tivemos aqui, são os que devem mudar se transformando no que “é certo”. Não! Essa é uma tese fraca em si, nem mesmo para combater o requentado de Zizek é boa.

Diante do terrorismo o combatemos como estamos fazendo. Lutamos pela liberdade de expressão e, nisso, temos de proteger nossos cartunistas incondicionalmente. Agora, nós filósofos temos outra missão, em conjunto com diretores de cinema, historiadores, antropólogos, romancistas e gente desse tipo. Nosso papel (como Rorty certamente diria) é o de pararmos de bater de frente.  Isso não significa acompanhar o papa na frase que deu margem para a intocabilidade de todas as religiões. Temos é de encontrar narrativas para fazer os muçulmanos investigarem melhor se há em suas próprias histórias o que se pode aproveitar para o florescimento de uma cultura do humor provocativo. É uma tarefa mais dura que o comum. Mas, não temos nenhum direito de, para além dessa sugestão, dizer para eles, os muçulmanos, que a organização do estado teocrático é uma abominação política e moral.
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* Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.
Fonte: Site do autor
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