Os profetas e as mulheres, o bem e o mal
DAVID COIMBRA*
Digamos que você seja poderoso e invencível. Ninguém pode reprimi-lo,
ninguém pode batê-lo. O que o impedirá de pegar o que quiser, quando
quiser? O outro tem uma mulher que você deseja? Você a toma. Aquela casa
é melhor do que a sua? Você expulsa quem nela mora e lá se instala.
Você não gosta de um vizinho? Resolve o incômodo metendo-lhe uma bala na
têmpora.
O que o impediria de fazer isso, se você fosse poderoso, se estivesse fora do alcance do braço da lei?
Talvez apenas a percepção de que essas ações são erradas. De que são... pecados.
Eis aí uma noção importante na formação do espírito civilizado do ser humano: a noção do pecado.
Os
hebreus inventaram o pecado, mais especificamente os profetas hebreus,
por volta do oitavo século antes de Cristo. Até então, as religiões não
tinham sentido moral. Mesmo o judaísmo pioneiro não tinha sentido moral.
Os homens tentavam agradar a seus deuses com sacrifícios e com adoração
a fim de obter benesses ou evitar infortúnios, mas não precisavam ter
bom comportamento ou respeitar o próximo.
É verdade que Moisés
fez uma tentativa de estabelecimento de padrões éticos antes do ano 1000
a.C., com os 10 Mandamentos, mas logo os hebreus voltaram aos velhos
hábitos. Foram os profetas, sobretudo os três Isaías, que reenquadraram o
judaísmo e fundaram a ética ocidental. Foram eles, inclusive, que
estabeleceram o domínio masculino no mundo. Todas as religiões tinham
poderosas deusas-mães, e o judaísmo também: Aserá era a deusa consorte
de Javé, chamada de “a rainha dos céus”. O culto a Aserá foi sufocado
para que os homens sufocassem as mulheres, mas isso é assunto para outra
crônica. Quero voltar aos três profetas Isaías. O Primeiro Isaías era
um Lênin de sandálias. Ele pregava:
“Lavem-se! Limpem-se! Removam
suas más obras para longe das minhas vistas! Parem de fazer o mal!
Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça! Acabem com a opressão! Lutem
pelos direitos do órfão! Defendam a causa da viúva! Que pretendeis ao
oprimir o meu povo e esmagar o rosto dos pobres? Ai dos que acumulam
casa sobre casa e ajuntam terras e mais terras! Ai dos que promulgam
decretos injustos para negar justiça aos necessitados, defraudam o
direito dos pobres para explorar as viúvas e roubar os órfãos!”.
Pela
primeira vez na História, os pobres, os oprimidos, os órfãos e as
viúvas tinham voz. Pela primeira vez, alguém criticava os excessos de
acumulação de propriedade. Isaías antecipou-se a Thomas Piketty em 28
séculos!
A partir dos profetas hebreus, as religiões tornaram-se
morais. O homem não cometia más ações para não desagradar a Deus. Foi
uma extraordinária evolução na história da Humanidade.
As
religiões não são um mal, apesar de os homens muitas e muitas vezes as
utilizarem para o mal. Os terroristas que atacaram a Charlie Hebdo, em
Paris, o fizeram em nome da sua crença, mas eles são uma degeneração,
como o foram os cruzados cristãos, mil anos atrás.
A Charlie
Hebdo é uma revista que critica religiões, todas as religiões, e para
isso não se vale da racionalidade ou da ponderação. Ao contrário: as
charges da Charlie Hebdo são agressivas, ofensivas e, talvez o pior, sem
graça. Há muito a se criticar nos padrões morais que começaram a ser
construídos pelos profetas hebreus há 2,8 mil anos. A dominação
masculina, iniciada com o banimento de Aserá, por exemplo, oprime
mulheres, mutila-as e as mata historicamente. Ou seja: faz o Mal. Mas
até nisso o caráter moral da religião pode ser um aliado. A Charlie
Hebdo erra no seu ataque desrespeitoso às religiões. Os fanáticos
religiosos erraram muitíssimo mais no ataque à Charlie Hebdo. Podemos
fazer esse julgamento porque tentamos, todos os dias, refletir sobre o
que é certo ou errado. Porque aprendemos isso há mais de dois mil e
quinhentos anos, com os profetas andrajosos do Oriente Médio.
* Jornalista. Cronista da ZH Fonte: ZH online, 10/01/2015 Imagem da Internet
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