sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

'Sentimento de união nacional não vai durar', diz cientista político francês sobre atentados

Para Stéphane Monclaire, professor da Universidade de Paris-Sorbonne, sociedade do país está abalada pelo individualismo e a crescente islamofobia
 

A violência do ataque armado contra a sede do jornal satírico francês Charlie Hebdo nesta quarta-feira (07/01) que deixou pelo menos 12 vítimas (três em estado gravíssimo) provocou uma emoção considerável na França. Milhares de pessoas se reuniram em solidariedade às vítimas do ato, empunhando cartazes onde se podia ler "Je Suis Charlie" (Eu sou Charlie). A população acabou se lembrando da importância, na sociedade francesa, de valores como a liberdade de expressão, e a democracia, avalia o cientista político Stéphane Monclaire, professor da Universidade de Paris-Sorbonne.

Ele, porém, não acredita na continuação deste sentimento numa sociedade abalada pelo individualismo e a crescente islamofobia. Lembrando que nunca na história do país uma redação inteira foi atacada desta maneira, ele diz esperar que os jornalistas, além da emoção, entendam a responsabilidade deles na criação de um forte sentimento antimuçulmano.

Opera Mundi: Como foi a percepção dos atentados no país? O senhor acha que deveria provocar uma união nacional, ou, ao contrário, ampliar as divisões dentro da população?
Stéphane Monclaire: A emoção dos franceses é profunda, palpável nas conversas informais ouvidas no metrô, no trabalho e em casa. Durante todo o dia de ontem, principalmente como resultado dos comentários unânime da mídia e dos líderes políticos, a população desenvolveu a sensação que estes assassinatos são um ataque violento à liberdade de imprensa e, de maneira mais ampla, um ataque à liberdade de pensamento e à democracia. Isso incentivou milhões de franceses a tomar consciência dos valores que são a base da sociedade, e do desejo de viver juntos. Essa emoção coletiva lembrou aos cidadãos a importância desses valores. E isso acaba também dando mais força ao sentimento nacional... por alguns dias. Porque, depois deste momento de consternação, de compaixão contagiosa, e da união nacional, vão surgir as perguntas e questões que dividem a consciência e, ao mesmo tempo, a opinião pública.

OM: Que são estas linhas divisoras?
SM:
Por exemplo, qual é a melhor maneira de identificar e monitorar os indivíduos mais propensos a cometer tais crimes? Dá para sacrificar os princípios do Estado de Direito para isso? Devemos reduzir a liberdade de expressão na internet, a fim de evitar a disseminação de mensagens que incitem ao ódio racial, ao antissemitismo e à matança de "infiéis"? Como desenvolver o secularismo sem ofender as culturas dos religiosos? Como integrar o islã, e ao mesmo tempo lutar contra todas as formas de fundamentalismo? Que tal dar o direito de voto aos estrangeiros para dar-lhes a oportunidade de se sentirem mais socialmente inseridos? Ou, ao contrário, esta medida poderia alimentar ainda mais o comunitarismo? Todas essas perguntas e, sobretudo, suas respostas, são nutridas por concepções antagônicas de sociedade, de nação e de alteridade. É por isto que eu não acredito que este raro momento de comunhão nacional dure muito. Também, acho que não vai ajudar a adoção de grandes reformas que poderiam fortalecer uma nação já muito abalada por várias décadas de ascensão do individualismo, do desemprego em massa e de crises econômicas.

OM: Qual é a capacidade da classe política francesa de responder a este desafio?
SM: Infelizmente, acho que os partidos políticos vão retomar rapidamente as tradicionais batalhas entre si. Cada líder vai querer tirar proveito destes eventos para mostrar sua diferença. Este foi o caso com cada um dos grandes atentados na França. Apesar de muitos meios de comunicação e políticos responsáveis advertirem os franceses da necessidade de não equipar estes assassinos e o Islã, a islamofobia provavelmente vai crescer um pouco mais. As declarações dos dirigentes do partido de extrema-direita Frente Nacional ajudam ainda mais essa tendência desastrosa.


OM: Qual é a importância da islamofobia na sociedade francesa hoje, e qual é a responsabilidade da mídia nisso? SM: Primeiro, tem que dizer que nunca existiu uma idade de ouro da aceitação do islã na França. As tensões eram evidentes já na década de 1960, marcada pela guerra da Argélia, a volta da metrópole dos colonizadores franceses, e a importação maciça de uma mão de obra barata proveniente da África do Norte e da África negra. Agora, há muitos anos que a islamofobia está se espalhando, e a mídia tem uma grande responsabilidade neste ódio crescente. Durante quinze anos, muitas reportagens de rádio ou de televisão muitos artigos na imprensa escrita explicaram que os problemas sociais do país tinham uma raiz étnica, acabando apontando o dedo para os muçulmanos e dando uma imagem falsa do islã. É só ver hoje o espaço cedido peles meios de comunicação para as teses racistas de um jornalista como Eric Zemmour ou para os delírios xenófobos do escritor Michel Houellebecq. O último livro dele, Soumission, imagina uma França que daqui a poucos anos elege um presidente muçulmano e adota costumes como a poligamia e o uso do véu por todas as mulheres. Tudo isso alimenta e banaliza o medo em relação dos muçulmanos.

OM: Nunca na historia da França, um jornal foi atacado de tal maneira. Qual será o impacto sobre a mídia?
SM:
 Na história, há políticos envolvidos no jornalismo que foram mortos. O mais famoso deles é Jean Jaurès, o líder socialista e fundador do diário L'Humanité. Seu assassino não aceitava suas ideias pacíficas, enquanto a Europa e o resto do mundo estavam prestes a entrar no pesadelo da Primeira Guerra Mundial. Mas nunca uma equipe editorial tinha sido atacada e dizimada deste jeito. E a redação de Charlie Hebdo encarnava o espírito de liberdade. Hoje, os jornalistas franceses estão profundamente chocados, tanto pelo corporativismo que como resultado de uma emoção cidadã. Espero que este trágico evento gere debates críticos dentro de muitas redações da mídia influentes para que percebem os riscos de continuar ver nas diferenças culturais e religiosas a fonte de todos os problemas da França. Seria muito importante, mas confesso não acreditar muito que isso vai acontecer.
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Reportagem por Lamia Oualalou | Rio de Janeiro - 08/01/2015 - 12h23
Fonte:  http://operamundi.uol.com.br/conteudo/entrevistas/39083

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