Meca, Arábia Saudita | D.R.
A cultura do encontro proposta pelo papa Francisco na exortação
apostólica “A alegria do Evangelho” é a chave para uma relação fecunda
entre islão e ocidente. Mas o mundo muçulmano é chamado a fazer uma
revolução cultural para se reconciliar com a modernidade e rejeitar, com
clareza, o fundamentalismo e a violência.
O jornal italiano “Avvenire” entrevistou Samir Khalil Samir, egípcio,
jesuíta, estudioso do islão internacionalmente reconhecido e professor
no Pontifício Instituto Oriental, em Roma.
O terrorismo de matriz islâmica está a usar com grande
eficácia as redes sociais como instrumento de recrutamento de novos
adeptos. A internet está a substituir as mesquitas…
No mundo muçulmano as mesquitas continuam a desenvolver um papel
fundamental na formação das consciências. A esmagadora maioria considera
definitivo o que é dito durante a “khutba”, a pregação das
sextas-feiras, que – a propósito – pesa geralmente muito mais do que as
homilias pronunciadas pelos padres nas igrejas. E infelizmente muitos
imãs propõem uma leitura fundamentalista do Corão, que chega a
justificar o recurso à violência em nome de Deus. Tudo isto resulta de
uma orientação radical que é proposta na maior parte das universidades
islâmicas, onde desde há décadas se espalhou como um vírus o pensamento
wahhabita nascido na Arábia Saudita e depois propagado – também graças a
enormes financiamentos – a outros países islâmicos e também ao
ocidente.
Porque fala de vírus?
Porque o grande problema do mundo muçulmano está na incapacidade de
conjugar a fé e a modernidade. Quando se lê o Corão é necessário usar a
razão, e assim dar espaço à interpretação, à exegese, ao espírito
crítico, como soube fazer a Igreja ao longo dos séculos. No islão, ao
contrário, continua a prevalecer uma perspetiva “mecanicista”, que
impele a praticar uma espécie de “cópia e cola”, através da qual alguns
versículos do livro sagrado dos muçulmanos, escritos no século VII, são
repropostos como se fossem receitas para responder às questões colocadas
pela atualidade. E assim o recurso à violência, que ao tempo de Maomé
era largamente praticado – como demonstra a história da expansão
islâmica nos primeiros decénios a seguir à sua pregação – é legitimado
e, sobretudo, exaltado. Mas isto correspondia à mentalidade daquele
tempo.
Mas há quem no mundo islâmico se oponha a esta orientação…
É verdade, mas os pensadores esclarecidos são ainda demasiado poucos,
isolados, muitas vezes criticados e escassamente influentes sobre as
massas. As quais – não podemos esquecê-lo – padecem de uma ignorância
que está disseminada (no Egito 40% da população é analfabeta), e
portanto confiam-se às interpretações propostas pelos imãs. Por isso
estou convencido de que a questão fundamental é a necessidade de uma
nova hermenêutica, de uma nova aproximação ao Corão e à tradição, que
deveria ser ensinada aos imãs.
Algo está já a acontecer, e neste sentido retenho como muito
importantes as palavras pronunciadas pelo presidente egípcio, Al-Sissi,
na universidade de Al-Azhar, que é o principal centro de irradiação do
pensamento sunita a nível mundial, e forma anualmente milhares de imãs
que operam no Egito e em muitos outros países. Al-Sissi pediu um esforço
direto contra as más interpretações do islão, que incitam à violência e
ao fechamento em relação às outras comunidades, e perguntou-se como é
possível que a religião islâmica seja percecionada como «fonte de
preocupação, perigo, morte e destruição» pelo resto do mundo. Ou como
possa estar entre os muçulmanos quem pensa que a segurança só pode ser
obtida eliminando os outros sete mil milhões de habitantes do mundo.
Palavras significativas, mesmo se temo que demorem muito tempo para se
tornarem num pensamento generalizado e cheguem a forjar a mentalidade e
os comportamentos das pessoas. Mas o islão deve fazer a sua revolução
cultural, em vez de continuar a olhar para trás.
Como se explica a forte capacidade de atração que estão a
exercer as tendências fundamentalistas, inclusive entre os muçulmanos
que vivem há muito na Europa?
Penso que é justo explicitar, antes de tudo, que a maioria das
comunidades não se reconhece nestas tendências. A força de atração
exercida pelos extremistas depende principalmente de dois fatores: a
fraqueza de propostas ideais por parte do ocidente, que é visto como uma
civilização decadente, cada vez mais distante de um verdadeiro
sentimento religioso, e o fascínio exercido por palavras de ordem
essenciais, que veiculam “slogans” eficazes, prometem paraísos
(inexistentes), veiculam a ilusão de uma regeneração pessoal e coletiva.
E então mesmo a violência é aceite para se chegar ao objetivo. Quando
uma promessa barata se aninha num raciocínio enfraquecido, o resvalar
para o fundamentalismo torna-se mais fácil.
Com os tempos que correm o diálogo parece ser uma utopia, ou
algo que pertence mais aos círculos intelectuais do que à realidade
diária. Todavia há uma interpenetração cada vez mais estreita entre
islão e ocidente, que são obrigados à coexistência. De onde é que é
possível construir uma verdadeira convivência?
O ponto de partida é a comum humanidade que nos constitui. Somos
antes de tudo pessoas, e na vida quotidiana são muitas as ocasiões em
que cristãos e muçulmanos se encontram lado a lado e aprendem pela
experiência como se pode viver juntos. Há alguns dias [sábado,
24.1.2015], o papa voltou a afirmá-lo claramente ao receber os membros
do Pontifício Instituto de Estudos Árabes e Islamismo: «No princípio do
diálogo está o encontro. Dele se gera a primeira consciência do outro».
Uma das indicações mais recorrentes deste pontificado, a cultura do
encontro, é a chave para fundar a construção de uma convivência sólida.
Partindo da redescoberta do eu, da própria identidade vivida como
recurso para encontrar o outro, mais do que como “arma” para se
contrapor. É um desafio vertiginoso, mas parece-me o único caminho que
pode dar frutos. Quem propõe a contraposição frontal faz o jogo dos
carrascos do Estado Islâmico.
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Giorgio Paolucci
In "Avvenire"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 28.01.2015
In "Avvenire"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 28.01.2015
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