Gustavo Cardoso*
Beck
foi um dos grandes sociólogos europeus contemporâneos, uma categoria
que partilha com seus pares e amigos como o catalão Manuel Castells, os
ingleses Anthony Giddens e John Thompson ou o francês Michel Wieviorka. A
sua obra A Sociedade de Risco, traduzida em mais de 30
línguas, coloca-o entre os três grandes sociólogos alemães do pós-guerra
com maior influência mundial, a par de Jürgen Habermas e de Claus Offe.
Beck
fazia parte da geração de sociólogos europeus do pós-guerra que
conheceram uma Alemanha dividida, que viveram a criação da Comunidade
Europeia e que se habituaram ao mundo dividido por uma "cortina de
ferro" com início na Europa.
A geração de Beck foi iniciada, na
sua carreira de sociólogos, numa abordagem marxista, mas acabou por
viver a queda do Muro de Berlim e compreender que apenas o recurso ao
conceito de luta de classes não lhes permitiria compreender as
desigualdades e as forças em oposição num mundo cada vez mais
globalizado. Beck, tal como muitos outros alemães, viveu o fim da Guerra
Fria, mas esteve sempre ciente que esse fim estava muito longe de
anunciar o fim da História e das contradições entre quem exerce o poder e
aqueles que vivem o dia-a-dia das consequências das decisões políticas e
económicas nas nossas sociedades.
A obra mais conhecida de Beck, A Sociedade de Risco,
foi publicada originalmente em 1986, mas existem outras obras suas
igualmente fundamentais na influência do pensamento sociológico e
político contemporâneo, como por exemplo: Ecological Politics in An Age of Risk (1995), Democracy without Enemies (1998), What Is Globalization? (1999) e Power in the Global Age
(2005). Beck estudou temáticas tão diferentes, mas inter-relacionadas,
como a modernização, a reflexividade, a globalização, a
individualização, a transferência de poder do trabalho para o capital ou
o cosmopolitismo.
Beck tentou sempre responder a como poderia a
sociologia lidar com a transformação radical global introduzida nas
nossas sociedades pelas crises financeiras globais, pela destruição
ambiental em larga escala, pelo aquecimento global ou pelo
enfraquecimento da democracia, dos estados e das suas instituições.
A
sociologia nasceu para o estudo das sociedades no quadro dos
estados-nação. Beck questionou ao longo de toda a sua obra como lidar
com a vida em sociedade quando a acção e as decisões se deslocam para o
plano global mas a maioria das populações continua a viver localmente.
Beck
foi um sociólogo do seu tempo. Nasceu em 1944 num território então
alemão e que hoje é polaco. Viveu o despontar dos interesses ecológicos
nas sociedades contemporâneas europeias e a consciencialização do perigo
da acção humana sobre o ambiente em função da experiência vivida
através de grandes catástrofes ambientais ou da generalização de que a
acção humana na modernidade pode colocar em causa a própria vida no
planeta.
Sociedade de risco
Foi esse viver contemporâneo alemão e depois europeu que o levou a desenvolver a sua teoria da sociedade de risco. A importância do conceito de sociedade de risco pode passar desapercebida no nosso dia-a-dia, mas cada vez que lemos um jornal ou vemos um telejornal estamos a viver essa sociedade de risco, pois temos a noção do perigo que é viver na nossa época.
Temos
a noção dos perigos que corremos por via das alterações climáticas, da
poluição produto da radioactividade das centrais nucleares que explodem
ou podem explodir, das contaminações alimentares em larga escala, das
epidemias modernas ou renascentes. No entanto, não entramos em pânico
perante o risco, vivemo-lo e assimilamo-lo, seja opondo-nos às suas
causas, seja exigindo que quem governa, quem detém a produção, quem é
proprietário cumpra as suas responsabilidades para com os restantes,
protegendo-os do risco. Esta visão do mundo, que é a nossa, é
radicalmente diferente de outras épocas em que o risco não era “nosso
conhecido”. A reflexividade inerente ao conhecimento do risco era
ausente e Beck soube explicar-nos porque o nosso mundo era
diametralmente diferente e qual o poder que nos era conferido, ao
podermos agir sobre o risco e mudar as nossas sociedades.
Beck foi
um sociólogo e investigador mas também um intelectual europeu activo.
Foi-o quando aceitou em 2011 o convite da socialista Martine Aubry para
escrever no livro Pour changer de civilisation, dissertando
sobre a necessidade de uma política interna global que rompa com as
“cinco cegueiras” associadas à política nacional na era de globalização.
A
primeira das “cinco cegueiras” políticas, segundo Beck, é a “cegueira
global”, sintetizada na expressão “não se pode fazer política contra os
mercados”, uma afirmação que esconde o facto de serem as próprias acções
dos políticos que criam essa pretensa impotência política.
A
segunda é a cegueira “nacional”, ou seja, o excesso de confiança na
acção ao nível nacional. Assenta na ideia de que será possível regressar
a uma bem-sucedida gestão interna, através de políticas dirigidas
exclusivamente ao espaço nacional.
A terceira cegueira é a
“neoliberal”, ou seja, acreditar que com o fim da Guerra Fria a
globalização neoliberal solucionaria tudo – ideia profundamente
arrogante e errada. Os riscos globais de mudança climática, as crises
financeiras, o terrorismo e as catástrofes ecológicas, como as do Golfo
do México, demonstram que essa perspectiva é um erro de proporções
bíblicas.
A quarta cegueira reside no “neomarxismo”, ou seja, na
defesa de princípios que nos impedem de ver o “novo”: por exemplo, a
transferência de poder do norte para o sul do planeta, do Atlântico para
o Pacífico, do dólar para o euro ou a quebra de estatuto do velho
centro euro-americano enquanto exemplo e autoridade moral.
E, por
último, a “quinta cegueira”, a da ilusão tecnocrática, trocando
processos por resultados e menorizando a importância da democracia e da
liberdade.
Desde o início da crise global de 2008 que Ulrich Beck
assumiu um papel público de crítica ao funcionamento das instituições
alemãs na gestão da crise nos estados periféricos do Euro. Para Beck a
chanceler alemã, Angela Merkel, exemplifica um princípio de orientação
política que pode ser designado por “merkiavelismo”. Como dizia Beck, o
que vemos na crise do euro é a construção europeia de uma Europa alemã.
No fim de contas, a defesa da austeridade constitui um pilar da prática
do “merkiavelismo”, com vista à construção de uma Europa e de um euro
alemães.
A sociologia é o estudo das sociedades e o papel dos
sociólogos é duplo. Por um lado, dar atenção ao que os rodeia e
compreendê-lo; por outro, ajudar à mudança social fazendo uso do seu
conhecimento sobre a realidade. Ulrich Beck foi um sociólogo em pleno.
--------------
Gustavo Cardoso é investigador do CIES-IUL em Lisboa e investigador associado do Collège d'études mondiales da FMSH em Paris
Fonte: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/uma-sociedade-de-risco-um-sociologo-em-pleno-1681173?page=-1
Nenhum comentário:
Postar um comentário