Não
existe nenhuma “ditadura do padrão de beleza da mídia”. Existe a moda,
que atinge a vestimenta de tecidos, inclusive o cutâneo. E a moda está
ficando mais que volátil e plural. Volátil porque não dura nem mesmo um
verão. Plural porque é feita por tribos.
A TV tentou durante um tempo “lançar
moda”. Mas perdeu a guerra para os anônimos que, por sua vez, venceram
os artistas. Poucos destes conseguiram manter sua grife, lançada com
toda a pompa para durar só meses. Quem vai comprar hoje um “estilo
Sabrina Sato”? Nem em loja de rodoviária! As tribos dão o tom das peles,
carnes, cabeças, olhos e partes pudendas. Não foi a TV que inventou a
febre da depilação artística. Nem mesmo a Internet. A TV e a rede social
ainda não podem apresentar uma xoxota cara a cara. Mas hoje há um
frenesi em torno desse quesito de beleza corporal, especificamente
genital. Coisa nova? Não! As noivas de antes dos anos sessenta conheciam
bem essa prática. A diferença é que agora há a tendência de se desenhar
os pelos de modo criar uma quase tatuagem.
Tatuagem? Pois é: eis aí uma moda
underground que pegou para fora de guetos. Fran, eu e Pitoko somos os
únicos seres não tatuados do planeta – deste planeta! E o Pitoko nem
tanto, talvez seja microchipado por esses dias! Aliás, diga-se de
passagem, ele mesmo vai à Cobase para escolher suas coleiras, roupas de
frio e bolinhas. Os pais podem reclamar do consumo das crianças, mas vão
se adaptar aos desejos dos filhos peludos – já estão se adaptando. É a
beleza necessária. É a moda canina e mais ainda humana. Não há hoje um
cão que não vão ao cabelereiro, até mesmos os vira latas!
A
moda diz quem é bonito, feio e mais-ou-menos? Diz um pouco. Talvez diga
até mais do que possamos admitir. Mas aí entra um outro elemento.
Também nesse caso é nos microgrupos sociais, quase que aleatoriamente,
que os gostos se definem. Foi uma determinada tribo gay que fez os
homens atuais serem todos sem pelos. As mulheres odiavam, até ontem.
Hoje “todas elas são bichas” – adoram homem depilado e, talvez,
depenado, como diz um gay old school, amigo meu. De um tipo de pornô gay
para o mundo feminino e para a TV. Quando voltarão os homens peludos?
Ninguém sabe. Mas não será pelo poder econômico das fábricas e bancos. A
ilusão de que essas instâncias do capitalismo dominam a produção de
tudo é efetivamente uma ilusão. Organizar não é propriamente criar. Os
fluxos que o mundo dos negócios permite e facilita se fazem a
posteriori.
Em um mundo assim, onde esculpir-se pode fazer até de gente não loira uma Andressa Urach, trocar de roupa e colocar uma prótese é tudo a mesma coisa. Há
nos Estados Unidos pessoas que querem perder um membro para ficar na
moda de um determinado grupo, ou então fingir que se perdeu um membro
para o mesmo caso, mas que cabe em outro grupo (os pretenders).
Não estou falando aqui de freak show ou o que alguns chamam de “tara
sexual”. Estou falando de moda. O corpo como vestimenta já se imiscuiu
de tal maneira à moda que as coisas ultrapassaram as questões
primeiramente estéticas, passando para questões éticas e, obviamente,
jurídicas. Há grupos nos Estados Unidos de lésbicas surdas que
reivindicam na justiça o direito de terem filhas, só filhas, e surdas –
que obviamente serão criadas para serem lésbicas, se possível. Há quem
diga que esse grupo tem pensado em requisitar de Obama uma ilha, para
criarem ali uma comunidade. O debate na justiça tem como argumento
favorável a ideia de que para quem é surdo e usufrui de uma outra
linguagem, a de sinais, surdez não é deficiência, é quase que um tipo de
etnia. Ora, nada mais legítimo que um grupo étnico use vestimentas
características.
Tudo funciona segundo a atualidade da
“política do reconhecimento”. Nesse sentido, a “dialética do senhor e do
escravo”, na célebre parte da Fenomenologia do Espírito de
Hegel, é ainda o texto que inicia a cobertura do problema. Pois o que
está em causa aqui é o reconhecimento. Há vida para quem é reconhecido. E
ser reconhecido é algo do indivíduo que tem sua individualidade
chancelada antes por uma tribo ou subgrupo que por um grupo social
tradicional. Não se trata de classe social ou grupo étnico autêntico.
Trata-se de tribo mesmo. Tribo urbana, formada pelas situações geradas
pelas mais diversas confluências. Às vezes uma tribo se forma apenas
pelo lugar que frequenta, e não o oposto. É como se tudo se passasse
ainda à moda das divisões e isolamentos geográficos do mundo
pré-histórico, capazes de contribuir para o processo evolutivo. A vida
urbana das grandes metrópoles tem proliferado as possibilidades da moda
que pode não moldar, mas efetivamente modula. Na modulação estabelece-se
a ressonância interna que fomenta o reconhecimento nesse campo e, do
grupo, diante o campo maior, a sociedade como um todo. Tudo isso de uma
maneira altamente veloz.
Está cada vez mais difícil para os
jornalistas entenderem isso. Eles se perdem porque está cada vez
problemático para os sociólogos estudarem isso – eles estão sem base.
Fora do Brasil quem estuda isso é antropólogo. Aqui os antropólogos ou
vivem de visita à Funai ou estão perdidos em uma formação fraca, ou as
duas coisas ao mesmo tempo. Os filósofos? Ora, os filósofos ficaram
especialistas em pelos da orelha direita de Wittgenstein ou Quine, não
sabem ler Rorty e Sloterdijk, ou seja, não estudam nada que implica em
alguma erudição. Perderam a noção do que é estudar ética, estética,
epistemologia, metafísica, história da filosofia e história da cultura.
Ou seja, tudo isso que está embutido nessa total transformação rápida da
moda que permite a existência atual de um guarda roupa de carnes e
ossos, lhes é desconhecido.
Talvez por isso vários professores e
comentadores avalizados não conseguiram entender o quanto foi importante
como acontecimento o jogo de olhares e a nova caracterização do poder,
por meio de carnes e roupas, o evento da posse da Dilma comentado como
foi comentado.
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* Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.
Fonte: Blog do autor.
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