quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Os feios, os bonitos e os remendados – o guarda roupa de carnes da modernidade

Não existe nenhuma “ditadura do padrão de beleza da mídia”. Existe a moda, que atinge a vestimenta de tecidos, inclusive o cutâneo. E a moda está ficando mais que volátil e plural. Volátil porque não dura nem mesmo um verão. Plural porque é feita por tribos.

A TV tentou durante um tempo “lançar moda”. Mas perdeu a guerra para os anônimos que, por sua vez, venceram os artistas. Poucos destes conseguiram manter sua grife, lançada com toda a pompa para durar só meses. Quem vai comprar hoje um “estilo Sabrina Sato”? Nem em loja de rodoviária! As tribos dão o tom das peles, carnes, cabeças, olhos e partes pudendas. Não foi a TV que inventou a febre da depilação artística. Nem mesmo a Internet. A TV e a rede social ainda não podem apresentar uma xoxota cara a cara. Mas hoje há um frenesi em torno desse quesito de beleza corporal, especificamente genital. Coisa nova? Não! As noivas de antes dos anos sessenta conheciam bem essa prática. A diferença é que agora há a tendência de se desenhar os pelos de modo criar uma quase tatuagem.

Tatuagem? Pois é: eis aí uma moda underground que pegou para fora de guetos. Fran, eu e Pitoko somos os únicos seres não tatuados do planeta – deste planeta! E o Pitoko nem tanto, talvez seja microchipado por esses dias! Aliás, diga-se de passagem, ele mesmo vai à Cobase para escolher suas coleiras, roupas de frio e bolinhas. Os pais podem reclamar do consumo das crianças, mas vão se adaptar aos desejos dos filhos peludos – já estão se adaptando. É a beleza necessária. É a moda canina e mais ainda humana. Não há hoje um cão que não vão ao cabelereiro, até mesmos os vira latas!

A moda diz quem é bonito, feio e mais-ou-menos? Diz um pouco. Talvez diga até mais do que possamos admitir. Mas aí entra um outro elemento. Também nesse caso é nos microgrupos sociais, quase que aleatoriamente, que os gostos se definem. Foi uma determinada tribo gay que fez os homens atuais serem todos sem pelos. As mulheres odiavam, até ontem. Hoje “todas elas são bichas” – adoram homem depilado e, talvez, depenado, como diz um gay old school, amigo meu. De um tipo de pornô gay para o mundo feminino e para a TV. Quando voltarão os homens peludos? Ninguém sabe. Mas não será pelo poder econômico das fábricas e bancos. A ilusão de que essas instâncias do capitalismo dominam a produção de tudo é efetivamente uma ilusão. Organizar não é propriamente criar. Os fluxos que o mundo dos negócios permite e facilita se fazem a posteriori.

Brazilian-TV-presenter-Andressa-Urach

Em um mundo assim, onde esculpir-se pode fazer até de gente não loira uma Andressa Urach, trocar de roupa e colocar uma prótese é tudo a mesma coisa. Há nos Estados Unidos pessoas que querem perder um membro para ficar na moda de um determinado grupo, ou então fingir que se perdeu um membro para o mesmo caso, mas que cabe em outro grupo (os pretenders). Não estou falando aqui de freak show ou o que alguns chamam de “tara sexual”. Estou falando de moda. O corpo como vestimenta já se imiscuiu de tal maneira à moda que as coisas ultrapassaram as questões primeiramente estéticas, passando para questões éticas e, obviamente, jurídicas. Há grupos nos Estados Unidos de lésbicas surdas que reivindicam na justiça o direito de terem filhas, só filhas, e surdas – que obviamente serão criadas para serem lésbicas, se possível. Há quem diga que esse grupo tem pensado em requisitar de Obama uma ilha, para criarem ali uma comunidade. O debate na justiça tem como argumento favorável a ideia de que para quem é surdo e usufrui de uma outra linguagem, a de sinais, surdez não é deficiência, é quase que um tipo de etnia. Ora, nada mais legítimo que um grupo étnico use vestimentas características.

Tudo funciona segundo a atualidade da “política do reconhecimento”. Nesse sentido, a “dialética do senhor e do escravo”, na célebre parte da Fenomenologia do Espírito de Hegel, é ainda o texto que inicia a cobertura do problema. Pois o que está em causa aqui é o reconhecimento. Há vida para quem é reconhecido. E ser reconhecido é algo do indivíduo que tem sua individualidade chancelada antes por uma tribo ou subgrupo que por um grupo social tradicional. Não se trata de classe social ou grupo étnico autêntico. Trata-se de tribo mesmo. Tribo urbana, formada pelas situações geradas pelas mais diversas confluências. Às vezes uma tribo se forma apenas pelo lugar que frequenta, e não o oposto. É como se tudo se passasse ainda à moda das divisões e isolamentos geográficos do mundo pré-histórico, capazes de contribuir para o processo evolutivo. A vida urbana das grandes metrópoles tem proliferado as possibilidades da moda que pode não moldar, mas efetivamente modula. Na modulação estabelece-se a ressonância interna que fomenta o reconhecimento nesse campo e, do grupo, diante o campo maior, a sociedade como um todo. Tudo isso de uma maneira altamente veloz.

Está cada vez mais difícil para os jornalistas entenderem isso. Eles se perdem porque está cada vez problemático para os sociólogos estudarem isso – eles estão sem base. Fora do Brasil quem estuda isso é antropólogo. Aqui os antropólogos ou vivem de visita à Funai ou estão perdidos em uma formação fraca, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Os filósofos? Ora, os filósofos ficaram especialistas em pelos da orelha direita de Wittgenstein ou Quine, não sabem ler Rorty e Sloterdijk, ou seja, não estudam nada que implica em alguma erudição. Perderam a noção do que é estudar ética, estética, epistemologia, metafísica, história da filosofia e história da cultura. Ou seja, tudo isso que está embutido nessa total transformação rápida da moda que permite a existência atual de um guarda roupa de carnes e ossos, lhes é desconhecido.

Talvez por isso vários professores e comentadores avalizados não conseguiram entender o quanto foi importante como acontecimento o jogo de olhares e a nova caracterização do poder, por meio de carnes e roupas, o evento da posse da Dilma comentado como foi comentado.
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* Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.
Fonte: Blog do autor.

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