quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Quando o campo de concentração decreta a ressurreição dos corpos.

  Artigo de Piero Stefani

 

Volti di cenere. L’espropriazione del corpo nei campi di sterminio [Rostos de cinzas. A expropriação do corpo nos campos de extermínio] é o título do intenso livro que Piero Stefani publica nestes dias na coleção de textos curtos Sguardi, da editora EDB (64 páginas). O historiador do pensamento judaico na Universidade de Ferrara, assim como professor do judaísmo na Faculdade Teológica da Itália Setentrional, em Milão, e presidente da Associação Biblia, reelabora nele dois capítulos do seu livro de 1988 Il nome e la domanda. Dodici volti dell’ebraismo [O nome e a pergunta. Doze rostos do judaísmo] (Ed. Morcelliana).

Publicamos aqui o trecho sobre "A violência, o corpo e o testemunho", dedicado a uma profunda reflexão sobre o sentido do corpo justamente no lugar que visava apenas à sua destruição: Auschwitz.

O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 10-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

A cinza é um elemento leve ou, como se costuma dizer, impalpável. Voa embora, mesmo que, quando é tocada, as mãos ficam impregnadas. É um resíduo; um extrato protetivo de brasas subjacentes. Robert Walser a definiu como o elemento mais dócil e paciente incapaz de fazer resistência; quando é pisada, quase não se percebe que se pisou em algo.

No entanto, se, do singular, passarmos para o plural, tudo muda. A leveza dá lugar ao peso, e nos encontramos diante de uma realidade à qual deve ser atribuído um peso. As cinzas são também um resto, mas normalmente são honradas. Também o são quando se introduzem formas não convencionais para fazer isso: espalhá-las no mar não significa dissipá-las, se isso representa a vontade do falecido.

Em relação às cinzas, a dura gramática do campo de concentração transformou o plural em singular. O rastro de leveza já desapareceu. Cada componente memorial foi transformado em fumaça. O resgate dessa dissipação agora é capaz de ocorrer só através de rostos que viram e, depois, tiveram a coragem de transformar o seu olhar em palavras.

Captados sob essa luz, até mesmo os seus rostos se tornaram cinzas. Parte dessa poeira sutil permaneceu impressa sobre eles. Porém, ela começou a voar novamente quando se transformou em testemunho. Desde então, o seu objectivo é fazer com que, de um lado, mesmo o ânimo dos ouvintes conserve em si vestígios daquela cinza e, de outro, que alguma cabeça seja coberta por ela. As cinzas/cinza envolvem a centralidade da corporeidade. A sua origem está lá, expressão de uma dimensão exposta à destruição.

Nos testemunhos dos sobreviventes, a referência ao corpo, que se transformou pela "imersão" em fumaça e cinzas, desempenha um papel central. Ele se apresenta seja como condição através da qual passa a sobrevivência, seja como lugar que traz impresso, na sua consumação e na sua lesão, o sinal da violência sofrida.

A ação violenta não se limitou à esfera corpórea, no entanto, ela sempre passava por aí. O corpo é sempre o lugar de ataque da ação hostil. Primo Levi lembra que, em Mauthausen, o cassetete de borracha usado sobre o corpo dos prisioneiros era chamado de der Dolmetscher, "o intérprete". Qualificação que, de um lado, evoca, com extraordinária eficácia, a expropriação da palavra por obra da violência física, enquanto, de outro, testemunha o último aceno de uma linguagem ainda capaz de encontrar um termo significativo para indicar a função assumida por aquele objeto.

As marcas sobre o corpo sentem, testemunham, contam. As cicatrizes são eloquentes; no entanto, precisamente por causa do seu ser publicamente visíveis, às vezes tornam-se impiedosas. Como toda outra linguagem, elas também devem ser decodificadas. Liana Millu, A5384 de Auschwitz-Birkenau, conta que, em Gênova, em setembro de 1945, estava na fila da entidade municipal de assistência para receber 500 liras lhe eram devidas – à época eram alguma coisa. A espera foi longa, era quase meio-dia, e a jovem, cansada, apoiou os braços na porta. O funcionário se inclinou para ver quantas pessoas ainda estavam na fila. Foi então que viu o número tatuado no braço. Perguntou do que se tratava. Depois de ouvir a explicação, deu um risinho sarcástico e depois disse: "Marcavam a pele de vocês? Como animais?", e acrescentou: "Vocês dizem que nos campos de concentração era um matadouro. Mas, ao ver quantos vêm aqui para bicar as 500 liras, não se poderia dizer outra coisa. Nada de extermínio!".

Um segundo episódio. Durante uma conversa privada, Liana Millu disse que, em um quente verão na Catânia dos anos 1950, ela se encontrava no balcão de um bar para pedir algo para beber. Tinha as mangas curtas – nem na época nem depois fez com que apagassem o número. Enquanto estava lá, ouviu de passagem outro cliente que, voltando-se para a sua mulher, lhe sussurrava: "Veja aquela vadia tatuada".

Eram tempos diferentes dos nossos. Prova disso, ao lado do sobressalto de desprezo bondoso despertado pela visão de uma tatuagem, é a incapacidade cultural de discernir um sinal que hoje se tornou símbolo universalmente reconhecido da aberração nazista.

Os corpos dos sobreviventes dos campos de morte, cujo miserável estado de magreza desumano tornou-se um dos emblemas da nossa história, se apresentam assim, ao mesmo tempo, como lugar de violência sofrida e de testemunho. São uma linguagem a se decifrar. Esses corpos desgastados até o extremo das forças, esses seres humanos que se tornaram estômagos nas garras de uma fome que parece realmente reduzi-los, como escreve Feuerbach, a paredes digestivas vazias que se autoconsomem, tinham que saber se supervisionar. A eles também era imposto que fingissem estar saudáveis.

 O momento em que tudo isso se revela com insuportável intensidade era o de seleção – um dos outros pontos constantes dos relatos ligados à Shoá. A vida ou a morte dependiam não do estar saudável, mas do aparecer tal. Decretada a seleção, "todos os detidos do bloco estavam nus nos leitos: é assim que se deve estar diante do Juízo Universal".

Certamente, havia o juízo, e disso dependiam literalmente a vida e a morte. No entanto, não só se realizava diante do "juiz injusto" (em vez de se realizar diante do Filho do homem que se identifica com quem tem fome e sede, Mt 25, 31-46), mas se realizava diante de um olho impiedosamente questionador, embora, ao mesmo tempo, apressado.

Em relação a ele, se podia, por isso, buscar defesa também recorrendo ao fingimento. Ao contrário do que ocorrerá no último dia, aqui se tentava manter escondido o fato de que os corpos já estavam revestidos apenas pela simples pele. Diante da morte iminente, tudo era confiada a frágeis tentativas de dar ao corpo um aspecto diferente daquele da máxima prostração em que se encontrava. Na experiência dos campos de concentração, o corpo se colocou em uma posição de absoluta centralidade: através dele, passava a sobrevivência. Isso valia seja em virtude do seu autoprolongamento através do alimento, seja do seu fingimento de estar saudável diante do "juiz injusto."

Porém, nos campos de morte, também se experimentou uma espécie de dissociação não salvífica entre o "eu" do deportado e o seu corpo. Em uma das suas páginas extremas, Wiesel conta a terrível marcha na neve a que foram forçados os evacuados de Auschwitz, no início de 1945.

Todo o episódio era posto sob um único imperativo: correr, correr. Corpos muito fracos e chagados deviam percorrer velozmente um interminável caminho: "Eu maquinalmente colocava um pé atrás do outro, arrastava o meu corpo esquelético ainda tão pesado. Se tivesse podido me livrar dele! Apesar dos meus esforços, para não pensar, eu sentia que estava dividido em dois: eu e o meu corpo; e eu o odiava".

A centralidade do corpo não é removida, a sobrevivência ainda passa através dele; no entanto, somos forçados a não nos identificarmos totalmente com a própria corporeidade. Está em ação uma dissociação violenta e coerciva, na qual, porém, lampeja, por um instante, a possibilidade de ser uma realidade diferente de um puro "estômago faminto".
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Fonte: IHU online, 15/01/2015
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