Artigo de Piero Stefani
Volti di cenere. L’espropriazione del corpo nei campi di sterminio [Rostos de cinzas. A expropriação do corpo nos campos de extermínio] é o título do intenso livro que Piero Stefani publica nestes dias na coleção de textos curtos Sguardi, da editora EDB (64 páginas). O historiador do pensamento judaico na Universidade de Ferrara, assim como professor do judaísmo na Faculdade Teológica da Itália Setentrional, em Milão, e presidente da Associação Biblia, reelabora nele dois capítulos do seu livro de 1988 Il nome e la domanda. Dodici volti dell’ebraismo [O nome e a pergunta. Doze rostos do judaísmo] (Ed. Morcelliana).
Publicamos aqui o trecho sobre "A violência, o corpo e o testemunho", dedicado a uma profunda reflexão sobre o sentido do corpo justamente no lugar que visava apenas à sua destruição: Auschwitz.
O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 10-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A cinza é um elemento leve ou, como se costuma dizer, impalpável. Voa
embora, mesmo que, quando é tocada, as mãos ficam impregnadas. É um
resíduo; um extrato protetivo de brasas subjacentes. Robert Walser
a definiu como o elemento mais dócil e paciente incapaz de fazer
resistência; quando é pisada, quase não se percebe que se pisou em algo.
No entanto, se, do singular, passarmos para o plural, tudo muda. A
leveza dá lugar ao peso, e nos encontramos diante de uma realidade à
qual deve ser atribuído um peso. As cinzas são também um resto, mas
normalmente são honradas. Também o são quando se introduzem formas não
convencionais para fazer isso: espalhá-las no mar não significa
dissipá-las, se isso representa a vontade do falecido.
Em relação às cinzas, a dura gramática do campo de concentração
transformou o plural em singular. O rastro de leveza já desapareceu.
Cada componente memorial foi transformado em fumaça. O resgate dessa
dissipação agora é capaz de ocorrer só através de rostos que viram e,
depois, tiveram a coragem de transformar o seu olhar em palavras.
Captados sob essa luz, até mesmo os seus rostos se tornaram cinzas.
Parte dessa poeira sutil permaneceu impressa sobre eles. Porém, ela
começou a voar novamente quando se transformou em testemunho. Desde
então, o seu objectivo é fazer com que, de um lado, mesmo o ânimo dos
ouvintes conserve em si vestígios daquela cinza e, de outro, que alguma
cabeça seja coberta por ela. As cinzas/cinza envolvem a centralidade da
corporeidade. A sua origem está lá, expressão de uma dimensão exposta à
destruição.
Nos testemunhos dos sobreviventes, a referência ao corpo, que se
transformou pela "imersão" em fumaça e cinzas, desempenha um papel
central. Ele se apresenta seja como condição através da qual passa a
sobrevivência, seja como lugar que traz impresso, na sua consumação e na
sua lesão, o sinal da violência sofrida.
A ação violenta não se limitou à esfera corpórea, no entanto, ela
sempre passava por aí. O corpo é sempre o lugar de ataque da ação
hostil. Primo Levi lembra que, em Mauthausen, o cassetete de borracha usado sobre o corpo dos prisioneiros era chamado de der Dolmetscher,
"o intérprete". Qualificação que, de um lado, evoca, com extraordinária
eficácia, a expropriação da palavra por obra da violência física,
enquanto, de outro, testemunha o último aceno de uma linguagem ainda
capaz de encontrar um termo significativo para indicar a função assumida
por aquele objeto.
As marcas sobre o corpo sentem, testemunham, contam. As cicatrizes
são eloquentes; no entanto, precisamente por causa do seu ser
publicamente visíveis, às vezes tornam-se impiedosas. Como toda outra
linguagem, elas também devem ser decodificadas. Liana Millu, A5384 de Auschwitz-Birkenau, conta que, em Gênova,
em setembro de 1945, estava na fila da entidade municipal de
assistência para receber 500 liras lhe eram devidas – à época eram
alguma coisa. A espera foi longa, era quase meio-dia, e a jovem,
cansada, apoiou os braços na porta. O funcionário se inclinou para ver
quantas pessoas ainda estavam na fila. Foi então que viu o número
tatuado no braço. Perguntou do que se tratava. Depois de ouvir a
explicação, deu um risinho sarcástico e depois disse: "Marcavam a pele
de vocês? Como animais?", e acrescentou: "Vocês dizem que nos campos de
concentração era um matadouro. Mas, ao ver quantos vêm aqui para bicar
as 500 liras, não se poderia dizer outra coisa. Nada de extermínio!".
Um segundo episódio. Durante uma conversa privada, Liana Millu disse que, em um quente verão na Catânia
dos anos 1950, ela se encontrava no balcão de um bar para pedir algo
para beber. Tinha as mangas curtas – nem na época nem depois fez com que
apagassem o número. Enquanto estava lá, ouviu de passagem outro cliente
que, voltando-se para a sua mulher, lhe sussurrava: "Veja aquela vadia
tatuada".
Eram tempos diferentes dos nossos. Prova disso, ao lado do
sobressalto de desprezo bondoso despertado pela visão de uma tatuagem, é
a incapacidade cultural de discernir um sinal que hoje se tornou
símbolo universalmente reconhecido da aberração nazista.
Os corpos dos sobreviventes dos campos de morte, cujo miserável
estado de magreza desumano tornou-se um dos emblemas da nossa história,
se apresentam assim, ao mesmo tempo, como lugar de violência sofrida e
de testemunho. São uma linguagem a se decifrar. Esses corpos desgastados
até o extremo das forças, esses seres humanos que se tornaram estômagos
nas garras de uma fome que parece realmente reduzi-los, como escreve Feuerbach,
a paredes digestivas vazias que se autoconsomem, tinham que saber se
supervisionar. A eles também era imposto que fingissem estar saudáveis.
O momento em que tudo isso se revela com insuportável intensidade
era o de seleção – um dos outros pontos constantes dos relatos ligados à
Shoá. A vida ou a morte dependiam não do estar
saudável, mas do aparecer tal. Decretada a seleção, "todos os detidos do
bloco estavam nus nos leitos: é assim que se deve estar diante do Juízo Universal".
Certamente, havia o juízo, e disso dependiam literalmente a vida e a
morte. No entanto, não só se realizava diante do "juiz injusto" (em vez
de se realizar diante do Filho do homem que se identifica com quem tem
fome e sede, Mt 25, 31-46), mas se realizava diante de um olho
impiedosamente questionador, embora, ao mesmo tempo, apressado.
Em relação a ele, se podia, por isso, buscar defesa também recorrendo
ao fingimento. Ao contrário do que ocorrerá no último dia, aqui se
tentava manter escondido o fato de que os corpos já estavam revestidos
apenas pela simples pele. Diante da morte iminente, tudo era confiada a
frágeis tentativas de dar ao corpo um aspecto diferente daquele da
máxima prostração em que se encontrava. Na experiência dos campos de
concentração, o corpo se colocou em uma posição de absoluta
centralidade: através dele, passava a sobrevivência. Isso valia seja em
virtude do seu autoprolongamento através do alimento, seja do seu
fingimento de estar saudável diante do "juiz injusto."
Porém, nos campos de morte, também se experimentou uma espécie de
dissociação não salvífica entre o "eu" do deportado e o seu corpo. Em
uma das suas páginas extremas, Wiesel conta a terrível marcha na neve a que foram forçados os evacuados de Auschwitz, no início de 1945.
Todo o episódio era posto sob um único imperativo: correr, correr.
Corpos muito fracos e chagados deviam percorrer velozmente um
interminável caminho: "Eu maquinalmente colocava um pé atrás do outro,
arrastava o meu corpo esquelético ainda tão pesado. Se tivesse podido me
livrar dele! Apesar dos meus esforços, para não pensar, eu sentia que
estava dividido em dois: eu e o meu corpo; e eu o odiava".
A centralidade do corpo não é removida, a sobrevivência ainda passa
através dele; no entanto, somos forçados a não nos identificarmos
totalmente com a própria corporeidade. Está em ação uma dissociação
violenta e coerciva, na qual, porém, lampeja, por um instante, a
possibilidade de ser uma realidade diferente de um puro "estômago
faminto".
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Fonte: IHU online, 15/01/2015
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