Papa Francisco | Basílica de S. Pedro, Vaticano, 31.12.2014 | AP Photo/Andrew Medichini | D.R.
Há um tempo para nascer e um tempo para morrer
A Palavra de Deus introduz-nos hoje, de maneira especial, no
significado do tempo, na compreensão de que o tempo não é uma realidade
estranha a Deus, simplesmente porque Ele quis revelar-se e salvar-nos
na história. O significado do tempo, a temporalidade, é a atmosfera da
epifania de Deus, ou seja, da manifestação de Deus e do seu amor
concreto. Com efeito, o tempo é o mensageiro de Deus, como dizia S.
Pedro Fabro.
A liturgia de hoje recorda-nos a frase do apóstolo João:
«Filhinhos, estamos na última hora» (1 João 2, 18); e a de S. Paulo que
nos fala da «plenitude do tempo» (Gálatas 4, 4). Por isso, o dia de
hoje manifesta-nos como o tempo é - por assim dizer - "tocado" por
Cristo, o Filho de Deus e de Maria, e dele recebeu significados novos e
surpreendentes: tornou-se o "tempo salvífico", isto é, o tempo
definitivo de salvação e de graça.
Agradecer e pedir perdão
Tudo isto nos leva a pensar no fim do caminho da vida, no fim do
nosso caminho. Houve um início e haverá um termo, «um tempo para nascer
e um tempo para morrer» (Eclesiastes 3, 2). Com esta verdade, muito
simples e fundamental, e muito negligenciada e esquecida, a santa madre
Igreja ensina-nos a concluir o ano e também o nosso dia com um exame
de consciência, através do qual voltamos a percorrer o que aconteceu.
Agradecemos a Deus por todo o bem que recebemos e que pudemos realizar,
e, ao mesmo tempo, repensamos as nossas falhas e os nossos pecados.
Agradecer e pedir perdão.
É isso que fazemos também hoje aqui, no termo de um ano.
Louvamos o Senhor com o hino "Te Deum" e ao mesmo tempo pedimos-lhe
perdão. A atitude de agradecimento dispõe-nos à humildade, a reconhecer e
acolher os dons de Deus.
Se há resgate, é porque há escravidão
O apóstolo Paulo resume, na leitura destas Primeiras Vésperas, o
motivo fundamental do nosso dar graças a Deus: Ele fez-nos seus
filhos, adotou-nos como filhos. Este dom imerecido enche-nos de uma
gratidão repleta de maravilhamento. Alguém poderia dizer: "Mas não
somos já todos seus filhos, pelo próprio facto de sermos homens?".
Certamente, porque Deus é Pai de cada pessoa que vem ao mundo. Mas sem
esquecer que nos afastámos dele por causa do pecado original que nos
separou do nosso Pai: a nossa relação filial está profundamente ferida.
Por isso Deus enviou o seu Filho para nos resgatar com o preço
do seu sangue. E se há um resgate, é porque há uma escravidão. Nós
éramos filhos, mas tornámo-nos escravos, seguindo a voz do Maligno.
Nenhum outro nos resgata desta escravidão substancial senão Jesus, que
assumiu a nossa carne da Virgem Maria e morreu na cruz para nos
libertar da escravidão do pecado e restituir-nos a condição filial
perdida.
A liturgia de hoje recorda também que, «no princípio [antes do
tempo] era o Verbo... e o Verbo fez-se homem», e por isso afirma Santo
Ireneu: «Este é o motivo pelo qual o Verbo se fez homem, e o Filho de
Deus, Filho do homem: para que o homem, entrando em comunhão com o
Verbo e recebendo assim a filiação divina, se tornasse filho de Deus».
Vivemos como filhos ou como escravos?
O próprio dom pelo qual damos graças é também motivo de exame de
consciência, de revisão de vida pessoal e comunitária, motivo para nos
perguntarmos: como é o nosso modo de viver? Vivemos como filhos ou como
escravos? Vivemos como pessoas batizadas em Cristo, ungidas pelo
Espírito Santo, resgatadas, livre? Ou vivemos segundo a lógica mundana,
corrompida, fazendo aquilo que o diabo nos faz crer que é o nosso
interesse?
Há sempre no nosso caminho existencial uma tendência a resistir à
libertação; temos medo da liberdade e, paradoxalmente, preferimos mais
ou menos inconscientemente a escravidão. A liberdade assusta-nos
porque nos coloca diante do tempo e defronte da nossa responsabilidade
de o viver bem. A escravidão reduz o tempo a "momento", e assim
sentimo-nos mais seguros, isto é, faz viver momentos desligados do seu
passado e do nosso futuro. Por outras palavras, a escravidão impede-nos
de viver plenamente e realmente o presente, porque o esvazia do
passado e fecha-o ao futuro, à eternidade. A escravidão faz-nos
acreditar que não podemos sonhar, voar, esperar.
Do exame de consciência depende a qualidade do nosso viver
Há alguns dias dizia um grande artista italiano que para o
Senhor foi mais fácil tirar os israelitas do Egito que o Egito do
coração dos israelitas. Tinham sido, "sim", libertados "materialmente"
da escravidão, mas durante a marcha no deserto, com as várias
dificuldades e com a fome, começaram então a experimentar nostalgia
pelo Egito, quando «comiam... cebolas e alhos» (cf. Números 11, 5);
esqueciam-se, todavia, de que não comiam à mesa da escravidão. No nosso
coração aninha-se a nostalgia da escravidão, porque é aparentemente
mais reconfortante, mais do que a liberdade, que é muito mais
arriscada. Como nos apraz cairmos na armadilha dos muitos
fogos-de-artifício, aparentemente belos, mas que na realidade duram
apenas poucos instantes. Este é o reino do momento.
Deste exame de consciência depende também, para nós, cristãos, a
qualidade do nosso operar, do nosso viver, da nossa presença na
cidade, do nosso serviço ao bem comum, da nossa participação nas
instituições públicas e eclesiais.
É preciso defender os pobres, e não defender-se dos pobres
Por esse motivo, e sendo também bispo de Roma, desejo deter-me
no nosso viver em Roma, que representa um grande dom, porque significa
habitar na "cidade eterna", significa para um cristão sobretudo fazer
parte da Igreja fundada no testemunho e no martírio dos santos apóstolos
Pedro e Paulo. E portanto também por isso agradecemos ao Senhor. Mas
ao mesmo tempo, representa uma grande responsabilidade. Jesus disse: «A
quem muito foi dado, muito será pedido» (Lucas 12, 48). Portanto,
perguntemo-nos: nesta cidade, nesta comunidade eclesial, somos livres
ou somos escravos, somos sal e luz? Somos fermento? Ou somos apagados,
insípidos, hostis, desencorajados, exaustos?
Os graves acontecimentos relacionados com a corrupção, que
recentemente emergiram, requerem uma séria e consciente conversão dos
corações para um renascimento espiritual e moral, como também para um
renovado compromisso para construir uma cidade mais justa e solidária,
onde os pobres, os fracos e os marginalizados estejam no centro das
nossas preocupações e do nosso agir diário. É necessária uma grande e
diária atitude de liberdade cristã para ter a coragem de proclamar, na
nossa cidade, que é preciso defender os pobres, e não defender-se dos
pobres, que é preciso servir os fracos, e não servir-se dos fracos.
A riqueza da Igreja está nos pobres
O ensinamento de um simples diácono romano pode ajudar-nos.
Quando pediram a S. Lourenço de mostrar os tesouros da Igreja, mostrou
simplesmente alguns pobres. Quando numa cidade os pobres e os fracos
são cuidados, socorridos e ajudados a promover-se na sociedade, eles
revelam-se o tesouro da Igreja e um tesouro na sociedade. Pelo
contrário, quando uma sociedade ignora os pobres, persegue-os,
criminaliza, obriga-os a "tornarem-se máfia", essa sociedade empobrece
até à miséria, perde a liberdade e prefere «os alhos e as cebolas» da
escravidão, da escravidão do seu egoísmo, da escravidão da sua
pusilanimidade, e essa sociedade deixa de ser cristã.
Concluir o ano é tornar a afirmar que existe uma "última hora" e
que existe a "plenitude do tempo". Ao concluir este ano, no agradecer e
no pedir perdão, far-nos-á bem pedir a graça de poder caminhar em
liberdade para poder assim reparar os muitos danos feitos e poder
defender-nos da nostalgia da escravidão, de não "nostalgiar" a
escravidão.
A Virgem Santa, que está precisamente no coração do tempo de
Deus, quando o Verbo - que estava no princípio - se fez um de nós no
tempo; ela que deu ao mundo o Salvador, nos ajude a acolhê-lo de
coração aberto, para sermos e vivermos verdadeiramente livres como
filhos de Deus.
Nota: Os subtítulos foram acrescentados pela redação do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
Papa Francisco
Primeiras Vésperas da solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus
Basílica de S. Pedro, Vaticano, 31.12.2014
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 31.12.2014
Primeiras Vésperas da solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus
Basílica de S. Pedro, Vaticano, 31.12.2014
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 31.12.2014
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