Carlos Fino*
O Papa Francisco foi quem sintetizou melhor, tendo tido a coragem, em ambiente tão crispado, de afirmar: não se provoca a fé dos outros, não se mata em nome de Deus
Naquela remota vila do interior, o episódio agitou as águas plácidas do
quotidiano e deixou marcas profundas durante muito tempo: para espanto
geral, o velho sapateiro corcunda, conhecido pela sua bonomia, num
inesperado acesso de fúria, atirou com a bigorna, atingindo mortalmente
um aluno da Escola Primária que passava à sua porta.
Levado a tribunal, o homicida foi condenado com pena suspensa dado não
ter antecedentes criminais e sobretudo por ter ficado demonstrado que
tinha sido vítima de provocações constantes (hoje diríamos “bulling”) ao
longo de anos por parte, entre outros, daquele jovem.
Sempre que passavam em frente da sua oficina, os rapazes gritavam lá
para dentro em tom de provocação a palavra depreciativa com que
popularmente se designa a sua deficiência física:
“Marreco! Marreco!”
A princípio, o sapateiro não se importou. “Coisa de miúdos...” –
pensava. Mas a insistência da provocação, que por vezes ocorria mais que
uma vez no mesmo dia, no começo e no fecho das aulas, começou a
tornar-se irritante. E a irritação acumulada ao longo do tempo acabou
por explodir naquele dia fatídico com consequências trágicas.
Poupado pelo tribunal, o sapateiro não voltaria, porém, a ser o mesmo –
a condenação geral, a humilhação do processo e o arrependimento pela
morte que causara abateram-no drasticamente, acabando por levá-lo ao
suicídio.
Lembrei-me desta história triste da minha infância - que os mais velhos
sempre nos contavam como lição para respeitar os outros - quando há
dias recebi pelo FaceBook uma mensagem de um velho amigo de quem não
tinha notícia há anos.
De formação católica, como todos os da nossa geração, ele queria saber a
minha opinião sobre as declarações do Papa acerca do atentado de Paris
contra o Charlie Hebdo.
Estava agitadíssimo porque não conseguia ter uma posição definitiva
sobre o sucedido. Condenava, claro, os crimes, que o chocaram
profundamente, mas compreendia também a revolta dos muçulmanos,
submetidos a uma ridicularização contínua das suas crenças.
“Um pouco como naquele caso lá da vila com o sapateiro corcunda, lembras-te?”
Lembrava-me, claro. Também nesse caso e à escala daquele pequeno
universo, o episódio foi marcante, suscitando um debate de princípios
sem conclusão definitiva.
As opiniões dividiram-se radicalmente entre os fundamentalistas do
castigo - que acharam primeiro que o tribunal não devida ter poupado o
sapateiro e consideraram depois o seu suicídio um “castigo de Deus” - e
aqueles que se inclinavam mais em favor dos jovens, considerando que a
ofensa em caso nenhum justificava o crime.
A nossa conversa pelo FB não nos levou muito longe na análise. Sobre o
crime de Paris como sobre o crime da nossa vila do interior, há meio
século atrás, tudo foi dito e redito – todos os argumentos expostos,
todos os contra-argumentos aduzidos.
Entre os fundamentalistas da liberdade de expressão, que acham que ela
só é se for absoluta (esquecendo que já hoje essa liberdade é limitada
numa série de casos previstos na lei) e os fundamentalistas religiosos,
que admitem matar em nome de Deus (passando por cima das disposições do
Livro que proíbem o homicídio), não parece haver espaço para diálogo.
Proibir a ridicularização da fé alheia aparece a uns como uma cedência
inaceitável ao terror, uma limitação das nossas liberdades ocidentais.
Admitir a blasfémia como coisa menor aparece, aos olhos de outros, como
uma derrogação inadmissível dos princípios da Fé.
Tudo isso sobre um fundo de luta estratégica (que, de uma forma ou de
outra, se prolonga há séculos) pelo domínio e controlo de territórios,
fontes de energia e afirmação de hegemonia cultural, ideológica e
religiosa.
Há mesmo a sensação de que os radicalismos de parte e de outra se
alimentam mutuamente, numa (in)consciente pulsão de morte. Nestas
condições, fica a pergunta clássica de Alice: “-A saída, onde está a
saída?”
Concordámos que o Papa Francisco foi quem sintetizou melhor, tendo tido
a coragem, em ambiente tão crispado, de afirmar o óbvio: não se provoca
a fé dos outros, não se mata em nome de Deus.
Quanto ao resto, incapazes de sair do labirinto, tivemos que nos
contentar com Brecht: “Homem, olha bem nos olhos de outro homem/ E verás
nele um irmão/As contradições que te consomem/ Não são boas nem más:
são a tua própria condição”
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* Jornalista, correspondente da televisão pública portuguesa RTP em
Moscou, Bruxelas e Washington. Destacou-se como repórter de guerra na
ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. Foi adido de imprensa da
Emb. de Portugal em Brasília, onde reside
Fonte: O Globo online 19/01/2015
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