Ana Luísa Amaral
Poeta, professora universitária, 1956
O
que é que pode lançar mundos no mundo? A arte, o pensamento, a palavra —
e talvez, no exercício dela e na paixão por ela, a palavra da poesia,
porque é a menos sujeita às leis do mercado, a mais livre. A palavra faz
sentir e faz pensar. Por esta razão, por exemplo, para o estado de
ditadura social em que nos movemos, a incultura e a falta de pensamento
são úteis: porque uma pessoa que pensa é uma pessoa que questiona, que
exige, que resiste.
Se pensarmos que a palavra “cultura”
vem de “cultivar” e que se refere inicialmente ao amanho da terra, então
ela tem que ver com preparação, com cuidado, com aprimoramento de
capacidades que estão latentes em todos e todas nós e que vão sendo
desenvolvidas através da comunicação. Ter cultura geral incluiria
conhecer a Bíblia, claro, tanto quanto a Pietá, incluiria saber
do folclore de um povo, tanto quanto apreciar Bach, incluiria entender
as razões para a Revolução Francesa, tanto quanto perceber a guerra
económica e social movida pelo que foi a chamada “bolha de Wall
Street”...
As pessoas que passaram pela minha vida e que foram
fundamentais para a minha formação foram várias. Penso na minha tia,
Manuela Amaral, que eu amava e admirava; em duas professoras que tive no
colégio onde andei, Dora de Vilhena, que lia poemas em voz alta na
aula, e Isabel Lago. Com a Isabel Lago li O Cavaleiro da Dinamarca,
e essa leitura foi fundamental: senti a beleza da palavra, quase no seu
estado puro. Muito mais tarde, já na faculdade, uma professora de
Cultura Norte-Americana, Cristina Ribeiro, abriu-me o mundo para “os
outros” Estados Unidos, na sua dimensão de discriminação, de violência,
de racismo. Deu-me autores como Langston Hughes, Aimé Cesaire (ainda me
lembro de cor de partes de Cahiers d’un retour au pays natal).
Mais tarde, Maria Irene Ramalho, que me orientou o doutoramento e me
ensinou a verticalidade que a literatura traz. Depois, os meus alunos
todos, ao longo de tantos anos de ensino; com eles me formei também. De
alguns, destaco Marinela Freitas, minha colega agora. E ainda o meu pai,
que me ensinou uma ética de vida. E a minha filha, que me ensinou e
continua a ensinar a crescer e a ser melhor pessoa. Com todos eles e
todas elas, aprendi a ler o mundo — e a ler mundos.
Eu acho que devia ser ensinado o que faz parte das artes, da
ciência, da ética, do conhecimento, do pensamento humanos. Acharia muito
bem estudar os Beatles, desde que se falasse dos anos 1960 e do que
eles significaram em termos de movimentos sociais, e do feminismo, e das
minorias; tal como, no caso do jazz, de como ele nasce, e a propósito
disso, da questão da chamada “Renascença de Harlem” nos Estados Unidos
e, ligada a ela, da exploração da identidade e, com ela relacionada, do
racismo e por aí fora...
“Grandes descobertas/acontecimentos”: é
de ordem enciclopédica. Mas falar na relatividade implicaria mostrar o
seu impacto a diversos níveis. O que quero dizer é que uma disciplina de
Cultura Geral, a existir, deveria ser transdisciplinar e comparatista,
relacionando tudo com tudo. Como tudo está, de facto, relacionado com
tudo. Até mesmo mostrar que, em 1940, um escritor como Hemingway oferece
a um romance seu um título como Por quem os Sinos Dobram
porque existiu três séculos antes dele um poeta chamado John Donne que
escreveu um poema que dizia: “Não perguntes por quem os sinos dobram,
eles dobram por ti.”
Platão expressou-se de uma forma que é comum
às Ciências e às Humanidades. Ou seja, expressou-se em palavras. Mais
facilmente uma pessoa das Ciências consegue ler o que Platão escreveu do
que uma pessoa de Letras consegue perceber Física Quântica. Porque
Platão usa uma linguagem que, embora servindo-se de conceitos
filosóficos, é mais comum a todos nós. E essa linguagem organiza o
pensamento, ordena-o, cria questionamentos sobre o nosso lugar como
humanos no mundo, interroga-nos e interroga o mundo, na própria
constituição de conceitos.
Carlos Mendes de Sousa
Professor universitário, ensaísta, 1960
No romance de Clarice Lispector, A Hora da Estrela,
Macabéa, uma nordestina perdida na grande cidade do Rio de Janeiro, tem
uma predilecção: colecciona frases de informação cultural apanhadas na
Rádio Relógio, uma estação de rádio carioca que oferece “pingos de
cultura” a acompanhar a passagem exacta do tempo. Este quadro é muito
expressivo. Alguém que tem uma existência tão amarfanhada sente o desejo
de coleccionar esses enunciados mais ou menos enigmáticos e de entender
o que está dentro deles. Macabéa vai repetindo insistentemente essas
frases ao seu namorado. A dada altura, pergunta-lhe se ele sabe o que é
cultura. Olímpico sente-se encostado à parede e responde: “Cultura é
cultura.” Macabéa é uma delicada flor do sertão. Olímpico é um bruto da
pior espécie que nunca quer dar o braço a torcer.
Ocorre-me
muitas vezes esta passagem do livro e apetece-me responder como
Olímpico. Tenho dificuldade em definir o conceito, mas quero acreditar
que a definição mais nobre de cultura será aquela que está contida na
frase de Caetano, quando fala do poder que o livro tem de lançar mundos
no mundo. Que mundos não estão contidos em Homero e Shakespeare, em
Dostoievski e Proust, em Pessoa e Guimarães Rosa, ou num verso de Camilo
Pessanha!
Uma das expressões mais reveladoras do que será a ausência de
cultura é quando se diz de alguém que não tem mundo. Recordo-me da
alegria que tive quando encontrei o título para um livro de homenagem ao
prof. Aguiar e Silva. Fui buscá-lo a Camões, n’ Os Lusíadas:
“Largo mundo alumiado.” A cultura pode ser o que está contido nessa
formulação. Ou aquilo que está num outro título para um livro de ensaios
que organizei sobre Torga: “Dar mundo ao coração.” (A palavra “coração”
está estafadíssima e inunda os títulos e as capas mais pirosas que por
aí circulam, mas acho que este título também pode servir como
definição.)
Na adolescência, lembro-me de comprar o jornal para
recortar a programação semanal da Antena 2. Ainda encontro de vez em
quando esses recortes no meio de livros, com muitas peças sublinhadas
(as coisas que tinha ouvido)! Lembro-me da obsessão por dicionários
enciclopédicos (cheguei a comprar dicionários de Teologia e de
Matemática). É uma felicidade hoje podermos ter tudo no Youtube, no
Google... A enciclopédia do mundo no smartwatch!
O que falta mesmo são salas de silêncio para mastigar e digerir.
Encontros
decisivos. Nos tempos da faculdade, o Osvaldo Silvestre. Íamos às
livrarias juntos, em busca de novidades. Com a mesma voracidade,
descobrimos a Europa, quando fizemos o inter-rail, no início
dos anos 1980. O Frederico Lourenço, com quem tenho um diá-logo diário,
muitas afinidades e divergências. Depois, os encontros com os poetas.
Especialmente o Luís Miguel Nava e o Gastão Cruz.
Como aluno, tive
naturalmente encontros decisivos. Uma professora de Português da
adolescência, Beatriz Mendes Paula. Na universidade, Andrée Crabée Rocha
e Vítor Aguiar e Silva, que foi a minha grande referência. As suas
aulas de Teoria da Literatura eram extraordinárias. Foi meu orientador
de mestrado e doutoramento.
Sou o ser mais dispersivo do mundo. E
ao mesmo tempo doentiamente obcecado. Creio que algures, nesse
cruzamento, se pode encontrar uma virtude qualquer.
Para a escrita
de um ensaio, invisto como se estivesse a fazer uma tese. Fico sempre
com muito material e com a ilusão de que mais tarde escreverei isto ou
aquilo. Quantos projectos inacabados! A falta de tempo ou a preguiça não
me deixam… No meio disso, vem a dispersão. Acho que ela surge como
fuga. Quando estava a escrever a tese de doutoramento (antes da
Internet!), perdia um tempo infinito com leituras sobre tudo e mais
alguma coisa, consumia doses impressionantes de cinema (cassetes de
vídeo). Mais tarde, dei-me conta de que incorporei algumas dessas
referências no meu texto. Se estivesse a trabalhar sobre uma molécula
específica, não sei se o poderia fazer.
Não sei quais os termos
mais adequados para a hipotética concretização de uma disciplina de
Cultura Geral. Se os burocratas da Educação me dessem um segundo para
dar a minha opinião, enfatizaria o lugar das humanidades, das artes, da
literatura nessa disciplina. Seria importante não fazer da dita
disciplina uma caldeirada. A velocidade com que acedemos à informação,
ou com que a informação nos chega, toma conta de nós. A grande e difícil
questão é a da selecção e sobretudo a da assimilação.
Inês Monteiro Rocha
Estudante de Geografia, 1994
Porquê O Principezinho?
Porque tem amizade, coragem, sonho, campos de trigo, florestas,
estrelas, ovelhas e flores. Tudo o que precisamos em qualquer idade e em
qualquer local. O Principezinho ajuda-me a perceber o meu
lugar no mundo. Acho que ser culto é isso. É ter consciência de como
chegámos até aqui e, sobretudo, de como podemos sair daqui. A minha mãe,
que detesta citações, atirou-me com uma: “Ser culto es el único modo de ser libre” (Jose Marti).
Cultura
é saber que a Lua controla as marés, que o som do violoncelo é o mais
próximo da voz humana, que no Butão há um índice de felicidade. É não
ter preconceitos sobre a importância das coisas e estar disponível para
pôr em causa amanhã tudo o que hoje damos como certo.
Ser culto há 40 anos devia dar uma trabalheira logística e
muita despesa. Papel, livros, jornais e revistas, sessões de cinema,
palestras (só o nome…). Agora, temos o mundo na mão, e só precisamos de o
querer conhecer. De saber fazer escolhas e ter espírito crítico. Pode
visitar-se o Louvre sem sair do sofá. Há bibliotecas completas online. Podemos escutar toda a obra de Mozart sem entrar numa sala de concertos. O acesso à cultura é mais democrático.
Aos
20 anos, os encontros ainda não foram muitos. Foram, sobretudo, com
professores, que podem salvar-nos de existências penosas. Alguns,
poucos, marcantes. Sempre pela generosidade e disponibilidade. Recordo a
minha professora de Inglês do 7.º ao 9.º, Isabel Maia (apesar de eu não
ter sido grande aluna), e o professor Rio Fernandes, primeiro na
licenciatura e agora no mestrado.
Fora da vida académica, tenho
tido sorte. Quando era criança, vivi, por arrasto, o Porto 2001, Capital
Europeia da Cultura (onde a minha mãe trabalhava). Tive mais música,
teatro, conferências e debates do que parques infantis. Tomei
consciência de que havia pessoas que eram “mesmo” cientistas,
escritores, poetas, filósofos, músicos, maestros. Tanta gente diferente,
de tantos países diferentes, que vinham cá contar as coisas que faziam.
Aprendi a importância da diversidade. Aprendi que se pode fazer
diferente e, às vezes, mudar o mundo.
Também por essa altura,
passei a integrar o coro infantil do Círculo Portuense de Ópera. Pouco
depois, fui para o Conservatório, para violoncelo.
Apenas gostava de ter viajado mais, mas não é nada que não possa recuperar.
Tenho
a noção de que nada pode funcionar como uma ilha. Não acho que a
escolha da Geografia tenha afunilado o espectro. É muito mais do que
decorar umas capitais ou perceber de meteorologia (as referências mais
ouvidas quando digo qual é o meu curso...). Frequento, agora, o mestrado
em Riscos, Cidades e Ordenamento do Território. Quero trabalhar nas
cidades, mas também no campo. Dentro de pouco tempo, vou ser
agricultora. Uma geógrafa-agricultora até liga muito bem! Conto cultivar
cerejas e frutos silvestres numas quintas de família. Gostava de
conseguir aplicar os conhecimentos adquiridos na minha formação
académica: a constituição dos solos, os efeitos do clima, a dureza da
terra que levou tantos a deslocarem-se para as cidades.
Devia
haver uma disciplina de Cultura Geral! Com os Beatles, sempre! E todos
os assuntos que nos ajudassem a perceber o mundo. Recentemente, li no
PÚBLICO um artigo sobre os primeiros licenciados em Estudos Gerais.
Disse: “Era isto!”
Nunca me senti confortável com a escolha da
área, do curso, porque em qualquer das opções ficavam de fora coisas que
achava importantes, que tinham que ver comigo. Apesar de tudo, o meu
curso permite uma grande diversidade de áreas de estudo e de saídas
profissionais. Se trabalho houvesse…
Volto ao Principezinho:
“É claro que a geografia me serviu muito. Sabia distinguir, num
relance, a China do Arizona. É muito útil, sobretudo quando andamos
perdidos na noite.”
Maria Emília Brederode Santos
Pedagoga, 1942
Há
40 anos havia um Instituto de Alta Cultura. Havia portanto a “alta” e a
“baixa” cultura (como hoje há o “banco bom” e “banco mau”?). Essa era a
visão dominante. Mas já nos anos 1960, artistas e intelectuais
descobriam a cultura popular (que opunham ao folclore oficial). Pintores
e arquitectos do Porto incensavam Rosa Ramalho. Michel Giacometti
percorria o país a recolher com urgência o que restava da música popular
pré-televisão. Líamos Edgar Morin e Roland Barthes. Eu conseguia
apresentar na Faculdade de Letras uma tese sobre “o mito do cowboy
na cultura americana”! Morto o prof. Monteiro Grilo, que aceitara ser
meu orientador, vi-me confrontada com um examinador particularmente
interessado em saber se eu distinguia uma Winchester de outras
espingardas ou um Colt 45 de outras pistolas…
Para mim, cultura é pensar. Pensar pela própria cabeça, sabendo
o que outros, noutros tempos e noutros lugares, pensaram sobre um
assunto. É um saber digerido, assimilado, relacionado, apropriado,
recriado. Cultura é a arma para combater o lugar-comum, a banalidade, o
preconceito e a indiferença. Distingue-se de erudição pelas dimensões da
criatividade e do fazer.
Exige leituras, convívio com obras de
arte em vários suportes e com pessoas interessantes — mas anos também.
Confesso que acho difícil ser-se culto quando se é muito novo. Porque
cultura requer um olhar próprio e um olhar próprio constrói-se a partir
da experiência e da reflexão. Por muito que tenha relativizado a
cultura, identifico-a com o que é mais universal, mais intemporal, mais
belo e mais humano.
Todos temos um “inconsciente cultural” muito
ligado aos contextos de vida, construído aos poucos, cumulativamente,
quase sem nos darmos conta. Depois, de vez em quando, é possível
identificar um encontro especialmente iluminador, sem que isso retire
força, peso, importância a essa aprendizagem inconsciente.
O
primeiro contexto é o da casa. Dele destaco as histórias maravilhosas
narradas por uma costureira quase analfabeta mas excelente contadora. Ou
os livros enormes, A maravilhosa Viagem de Nils Holgerson de Selma Lagerlof e O Feiticeiro de Oz de Frank Baum, que a minha mãe nos lia.
Claro
que em casa havia encontros reais… António Sérgio ofereceu-me uma
tradução feita por ele de um poema grego sobre o envelhecimento. Espanto
dos meus pais: que pouco apropriado a uma criança! De facto, na altura
pouco lhe liguei, mas reli-o mais tarde e nunca mais o esqueci. Ainda
hoje o sei de cor.
No Lycée Français Charles Lepierre, o
professor Rui Grácio desafiou-me a ir com ele e com a mulher (a dra.
Maria Ângela) a uma matiné clássica do Tivoli ver o filme de Bresson Fugiu um Condenado à Morte. Um encontro fundamental para querer ir mais além do que o que a escola podia dar.
Na universidade, o contexto cultural mais decisivo era nos bas-fonds
da cave, nos “subterrâneos da liberdade” da Associação Académica. No
bar, era onde o David Mourão Ferreira confraternizava. O Centro de
Estudos Brasileiros era animado pelo Ruben A., o Eduardo Prado Coelho
refugiava-se no de Literatura Francesa, e na pró-Associação
encontravam-se colegas como a Fiama, a Luísa Neto Jorge, o Sottomayor
Cardia e, é claro, o José Medeiros Ferreira.
Encontrei um dia um livro muito interessante chamado College for one,
de uma jornalista que viveu com Scott Fitzgerald nos últimos anos da
vida dele. Tratava-se de um curso de cultura geral que Scott Fitzgerald
construíra para a autora, muito mais nova do que ele. Era sobretudo uma
tentativa de cânone, não tanto de obras literárias mas de obras de
pensamento, que contribuíram para o mundo tal como o conhecemos.
Nesse contexto, eu incluiria certamente a Bíblia, Platão, Aristóteles, a Utopia
de Thomas Morus, obras fundamentais do Marxismo, de Darwin, Kant,
William James, Piaget ou Vygotsky, Freud, ou do processo que conduziu à
Declaração Universal dos Direitos Humanos. E obras literárias, sim,
porque são as que melhor contribuirão para conhecer, compreender e
sentir o ser humano.
Teresa Guimarães
Médica oncologista, 1970
No
primeiro dia de faculdade, no curso de Medicina, li uma singular
inscrição no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar: “Um médico
que só sabe Medicina nem Medicina sabe.” Ficou a ecoar em mim até hoje,
passados 20 anos.
Ao Manuel António Pina, ouvi repetidamente a frase de Jorge
Luís Borges: “Somos as pessoas que conhecemos, os lugares que visitamos,
os livros que lemos.”
Sou isto. O encontro com o Pina, a
inscrição de Abel Salazar, a aprendizagem com mestres da ciência foi um
privilégio, essencial na minha formação. Vou nomear alguns: Nuno Grande,
Alexandre Quintanilha, Sobrinho Simões.
Com o meu marido, João
Luís Barreto Guimarães, poeta e cirurgião, tenho a oportunidade de
contactar com autores, filósofos, artistas, que me ajudam a ler e a
interpretar o mundo de uma forma mais completa, numa pluralidade de
opiniões e conceitos.
A noção de saber mudou. Hoje, e talvez
devido à evolução do conhecimento científico e tecnológico, cada
indivíduo sabe mais de menos assuntos. Shakespeare dizia: “Enfrentamos a
época tal como ela se nos apresenta.” Estes são tempos de conhecimento
rápido, voraz. Cada pessoa já não transporta em si o conhecimento
construído das gerações anteriores.
O Mundo de Ontem, de
Stefan Zweig (1881–1942, judeu nascido em Viena, amante das letras e do
teatro), dá-nos um retrato nostálgico da Europa antes e durante as
guerras. Estas memórias evidenciam o desencanto, a destruição ocorrida
com a ascensão do nazismo. Zweig descreve o anti-humanismo inimaginável
somente com a ajuda da memória, uma vez que foi despojado de tudo e
isolado dos seus livros, dos seus amigos, das pequenas anotações. A
memória surge como matéria-prima e cofre do conhecimento, baú de
tesouros há muito passados.
Este exemplo ilustra de forma simples
como mudou o suporte. Para mim, esta é a mais relevante diferença entre o
que era ser culto há 60 ou 40 anos, quando o acesso à informação era
precário, escasso ou inexistente. A nossa memória pessoal e colectiva
foi transferida para a máquina, para essa poderosa biblioteca
tecnológica onde parece estar agora todo o conhecimento. Ou seja,
passou-se de uma “memória interna” para uma “memória externa”, oferecida
de uma forma simplista pela máquina.
O interesse pela arte e pela
literatura transforma o meu trabalho como médica oncologista. É uma
disciplina exigente, tanto cientificamente como na relação diária com os
doentes; estes encontram-se muitíssimo fragilizados por uma doença com
uma conotação fortíssima, que os aproxima a cada dia da morte. Humanizar
os actos, as consultas, através da beleza e da arte, da compreensão dos
assuntos da alma, da condição humana, é muito importante. A resposta a
estes enigmas aproxima-me, nem que seja tenuemente, daqueles que sofrem.
Só
assim, nesta plenitude de humanismo, entendo a minha especialidade. E
só assim entendo ser possível eu própria sobreviver, diariamente, às
historias trágicas que me são dadas a conhecer e a resolver. Os doentes
colocam em mim uma expectativa abrangente, convocam áreas do saber que
ultrapassam o conhecimento médico purista (ao qual tenho obrigação
ética, moral e científica de corresponder).
Mas, nestes diálogos
constantes, durante anos de relação fiel (que é habitual nesta
especialidade), sou eu quem tantas vezes é salva pelos doentes, pelo seu
saber, pelas suas descobertas pessoais ao longo do percurso. São eles
que me abrem portas a novas aprendizagens.
Duas peças que me impressionam especialmente, um livro e uma escultura. Se isto É Um Homem,
de Primo Levi, é uma prova viva da barbárie de que o homem é capaz.
Devia ser lido nas escolas por forma a que uma tal barbárie não se
repetisse. “Retirai-lhes tudo, a dignidade, a alma, a família, a casa,
despi-os da roupa, dos bens, da sua geografia e assim sereis capazes de
compreender como tal monstruosidade foi possível.” Em O Rapto de Proserpina,
Bernini transforma o corpo da mulher — em pedra — num corpo real,
palpável. É uma escultura carnal, arrebatadora no detalhe, na tensão da
mão masculina na coxa da mulher. Exprime a intensidade da paixão.
Bernini é exímio na arte de amar!
Se fosse ministrada lado a lado
com a Matemática, a Biologia, o Português, uma disciplina de Cultura
Geral e o contacto com os livros e obras de arte seriam encarados como
um exercício natural. Desapareceria um certo receio e intimidação que as
gerações mais jovens exibem inúmeras vezes. Tudo seria mais fluido e
próximo. Nada deveria ser obrigatório, mas sim colocado à escolha, num
enorme leque de possibilidades. O professor mostraria o caminho.
Tomás Cunha Ferreira
Pintor e músico, 1974
Gosto
muito da expressão “prestar atenção”. Supõe que a atenção é algo que se
dá, que se presta ao outro e ao mundo. A utopia da cultura é ser
dádiva, é um dar-se ao mundo. Por isso a “cultura geral” não pode ser a
acumulação intelectual disto e daquilo, e sim uma entrega. Pode ser uma
entrega total a uma pequena parte do mundo. Isso basta.
O Caetano usa o verbo “lançar”. Lançar é o grande lance. Seja em verso, prosa ou tela.
O
compositor americano Morton Feldman diz que Cézanne nos faz ver a
Renascença como primitiva. Temos o defeito de ver uma evolução contínua
no tempo. Podemos ser contemporâneos de Giotto ou Brancusi. Podemos
desenhar como Galileu Galilei ou como os homens nas grutas de Chauvet,
não estamos assim tão longe. Noutro dia inventei uma palavra:
“ontemporâneo”. Isso somos todos.
Cultura? Não sei. Deve ser o tecido que faz o ser humano. A
trama, a rede, os fios? Ou os nós e os laços, como no título do Alçada
Baptista? Para mim, cultura é tudo que seja comum. Cultura é o que há
entre nós. Lembro-me às vezes do que disse Gilberto Gil quando tomou
posse como ministro da Cultura do Brasil (googlei, não sei de cor):
“Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação.
Cultura como o sentido de nossos actos, a soma de nossos gestos, o senso
de nossos jeitos.” Eu acrescentaria ainda os grandes e pequenos nadas
de que a vida é feita.
Fui influenciado por toda a gente, penso
bastante em pessoas que não conheço. Devorei os discos e os livros do
meu pai e da minha mãe. Agora desaprendo muito com as minhas filhas e o
meu filho.
Como aluno, e nos últimos 12 ou 13 anos como professor
de Artes Visuais, gosto da ideia do ensino como uma colaboração entre
aluno e professor. Mais do que a passagem de ideias, conhecimentos,
prefiro a colaboração entre duas ou mais pessoas que se encontram a
partir dos seus pontos de vista. O trabalho do professor é antes de tudo
estimular, criar força de vontade, atiçar, ajudar a abrir clareiras.
Gosto
ainda, muito, de aprender coisas no Youtube: técnicas de pintura dos
Expressionistas Abstractos americanos, os acordes que o João Gilberto
faz no violão, como fazer um chapéu de palha.
Sou ambidestro, e
talvez por isso não confio muito em especialistas. Prefiro Fernando
Pessoa e os seus heterónimos. Temos de nos inventar plurais. A primeira
coisa que Goethe fazia quando chegava a uma cidade era subir a uma
torre, de preferência a mais alta, para ver a cidade inteira, lá de
cima. Tenho vertigens, e penso nisto quase todos os dias. O pintor
Giorgio Morandi (um dos maiores!) viveu sempre na mesma casa e, na única
vez que saiu de Bolonha, não foi muito longe. Era uma outra espécie de
vertigem; a qual destas vertigens se pode chamar cultura?
É um mau
princípio que exista uma disciplina chamada Cultura Geral. Será uma
especialização em generalidades? A necessidade de uma disciplina assim
vai contra a própria ideia de escola. Cultura, particular e geral, é o
que as escolas proporcionam, em princípio, por definição.
As
escolas deviam ser mais efémeras: temos a mania de congelar a história e
fixar fórmulas. John Cage dizia que, em vez de lermos todos os mesmos
livros, cada um podia ler um livro diferente e depois contar ao outro.
Seria
útil também que aprender a escrever e fazer contas não fosse mais
importante que aprender a desenhar ou tocar um tambor. A escola não
devia ser um sistema de hierarquias falsas. A escrita e o desenho, a
matemática e a música são quase a mesma coisa, com nomes diferentes.
Há
pouco tempo vi um pequeno filme sobre o ensino nas tribos indígenas, no
Brasil. A certa altura, o Pajé (chefe da tribo) vai buscar um curumim
(uma criança) que está debruçado sobre uma folha de papel, numa espécie
de sala de aula totalmente aberta, sem portas ou janelas, e diz-lhe:
“Você já aprendeu a ler, agora vem aprender a dançar.”
Há dias
fiquei chocado porque uma grande artista brasileira não sabe quem é Dudi
Maia Rosa, um dos meus pintores favoritos, brasileiro. Talvez seja mais
chocante que eu o conheça. Estarei a tornar-me num especialista?
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Reportagem por :
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