O louco anuncia a morte de Deus
Leitura do aforismo 125 de A Gaia Ciência.*
Quem pronuncia a frase “Deus morreu!”
não é Nietzsche, ao contrário do que os leitores desavisados e os leigos
em filosofia afirmam. Trata-se de um personagem da nossa história como
história do niilismo: o louco. Nietzsche se vê apenas como um seu
porta-voz.
O louco aparece no aforismo 125 de A Gaia Ciência.[1]
O aforismo começa com uma pergunta: “Não ouviram falar daquele homem
louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e
pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’?” Quem é
ele?
Levando em consideração que o aforismo
todo, mantendo suas características de um bom texto nietzschiano,
respeita a história da filosofia, não é difícil ver que a figura em
questão lembra Diógenes, o cínico. É ele e somente ele que, na história
da filosofia, procura um homem honesto com uma lanterna em pleno dia.
Mas, levando em conta que na história da filosofia aquele que procurou o
saber divino – as respostas corretas, e não somente exemplos, para suas
perguntas do tipo “O que é X?” – e não o encontrou foi Sócrates, não
deveria ser ele, então, o louco? Ora, Platão disse que Diógenes foi “o
Sócrates tornado louco”. Assim, o aforismo inicia-se da maneira mais
correta possível.
Para quem o louco fala? Para crentes que
ficariam chocados? Não! Na maioria, os que ali estão, no mercado, são
descrentes, ateus. São eles que o escutam. Eis o resultado: “E como lá
se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com
isso uma grande gargalhada.” Esses homens cultos, sofisticados, os que
não acreditam em Deus, o tomam como criança perdida ou navegador a esmo
ou um tipo de estrangeiro. Mas o louco salta no meio deles e olhando
para eles todos, destrambelha-se:
‘Para onde foi Deus?
(…) já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus
assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o
mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao
desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos
movemos nós? Para longe de todos os sóis?’
A notícia é clara: a morte de Deus não é
por ato de um ou outro ou de um povo, é algo de “vocês e eu”. Todos! A
humanidade é responsável pela morte de Deus. Mas, enfim, não se mata um
deus facilmente, ainda mais Deus, exatamente aquele que era o Deus da
Guerra dos judeus, que se tornaram monoteístas por um ato de prestígio a
seu Deus. Por isso, o louco, se dando conta da monstruosidade do ato de
matar Deus, não pode não tentar explicar como que isso se deu.
Tendo em mente vários outros aforismos e
textos de Nietzsche, em especial os reunidos no “De como o
mundo-verdadeiro se tornou uma fábula” de O crepúsculo dos ídolos,
não é difícil ver de que maneira as figuras do absoluto filosófico
foram consumidas. Eis as três passagens que culminaram com Deus
agonizante morto.
Primeiro, bebemos todo o mar. Tudo é água, disse Tales no início da filosofia. Mas secamos o arkhé inicial. Ora, não seria necessário atingir outro tipo de arkhé.
Consumindo o primeiro, todos os outros nunca passaram de substituição
falsa. Se Tales foi desautorizado porque o princípio que rege o mundo
foi bebido por nós, por que tentar encontrar outro? Respiraríamos todo o
ar e comeríamos no almoço qualquer apeiron, por mais sutil que fosse sua constituição. Comer e coçar é só começar, diz o ditado.
Em segundo lugar, ganhamos uma esponja
para apagar a linha do horizonte. Não fabricamos a esponja, nós a
ganhamos. Quem poderia ter nos dado algo suficientemente pecaminoso de
modo a nos tirar o sentido do mundo, sua conformação, apagando um traço
tão importante do desenho? Só o instigador máximo do pecado desafiaria
Deus. Apagar a linha do horizonte é antes de tudo atingir Deus à medida
que atinge aquilo que ele faz de melhor, que é pintar. Tomás de Aquino
foi o filósofo que mostrou Deus não como quem deveria ser descoberto por
prova lógica. Fazia mais sentido, para ele, perceber sua criação como
obra de artista. Os exemplos dessa situação são sempre simples e
eficazes: pegamos uma joaninha, olhamos de perto aquele ponto vermelho
com pintas pretas, e temos a certeza de que aquela pintura foi feita com
as mãos da perfeição, portanto, as mãos de Deus. Apagamos linhas feitas
pela mão de Deus. Retiramos o horizonte da paisagem, como poderia
existir qualquer paisagem se as linhas de fuga de qualquer desenho
determina já a existência, para que o desenho exista, uma linha do
horizonte?
Finalmente, desatamos o fio que ligava a
Terra ao Sol. Copérnico! O mundo moderno é inaugurado com a visão de
que o Sol não gira em torno da Terra se adotamos um ponto de referência
neutro, nem na Terra e nem no Sol, de modo a poder ver que a Terra se
afastado Sol ou vice versa. Uma órbita elíptica permite isso. O espaço
se mostra aterrorizantemente infinito, colocando Pascal em vertigem.
Pascal sentiu que “vagamos como que através de um nada infinito”. Ele
tremeu ao sentir “na pele o sopro do vácuo”. O sol de Platão, o ponto do
absoluto metafísico par excellence, representante do Bem no âmbito da alegoria do filósofo, se desgarra de nós.
Tales, Aquino, Pascal e Platão ou,
melhor, toda e qualquer filosofia metafísica está então desautorizada.
Por isso agora aparecem as estações e podemos sentir o frio. O frio vem
porque não há mais sol e, então, não havendo mais o Bem, como dizer que
algo é bom ou não? Desvalorização de todos os valores à medida que um
calor máximo se afasta. Um mundo frio emerge. Um mundo frio é um mundo
em que então, por se apresentar com névoa, permite que alguns tenham de
“acender lanternas de manhã”. O ato de loucura torna-se ato comum. O
louco pode aparecer em qualquer mercado.
Falando diante de ateus que, enfim,
nunca deixaram de funcionar como os maiores garantidores de Deus, não
consegue mesmo ser ouvido – o louco. E ele conclui que veio cedo demais
avisar os homens do que eles mesmos já teriam feito. Eles ainda não
tinham sentido o cheiro do cadáver divino – e olha lá que um cadáver do
tamanho do de Deus deveria gerar uma putrefação daquelas!
Deus morto e não sabido morto pelos
homens permite então que o louco, naquele mesmo dia, entre em igrejas.
Há gente lá. São pessoas que não sabem que estão orando em lugares que
nada mais são que ‘mausoléus e túmulos de Deus’.
Deus é morto como uma estrela: vemos a
luz dela, mas há milhões de anos ela já se apagou. A metáfora da viagem
da luz da estrela, usada no aforismo, não é à toa. Aparece para que o
assassinato de Deus pelos homens seja posto na dimensão temporal de um
tempo sem tempo. Afinal, sempre haverá quem, como o louco, possa falar
da morte de Deus para os acreditam em Deus. A história em Nietzsche
ocorre e está sempre ocorrendo, de modo que o retorno contínuo possa sempre ser vislumbrando, quase que como um elemento transhistórico.
O problema deixado pelo louco:
Deus está morto!
Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós,
assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo até
então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará
esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios,
que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é
demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele?
Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa
desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!”
como deuses e, então, terem alguma condição de reivindicarem para si,
com alguma dignidade, o ato tão grandioso de matar Deus. Afinal, a pior
coisa para um assassino é cometer um assassinato grandioso, matar um
verdadeiro superstar, e jamais ser lembrado sequer como um grande
assassino. Há condição do homem ser um deus?
No século de Nietzsche o positivismo
anunciou a substituição da religião pela ciência, e sendo esta o fim de
todo e qualquer absoluto, por sua própria dinâmica interna, independente
das crenças e vontades dos cientistas, seria então o homem, com esse
instrumento na mão, um novo deus? Seria um deus esquisito, ou seja, o
deus do perecível, do mutável, do relativo, do que está sempre ampliando
o consumo e o descarte e, assim, ampliando o vazio – o nada. O
niilismo.
Mas, o que é o niilismo? Grosso modo
é a desvalorização de todos os valores mais básicos e fundamentais. É a
chegada do nada. Em sua reflexão sobre o niilismo nietzschiano, O Peter
Sloterdijk cita um conto infantil chamado de A história interminável,
de Michel Ende. Neste, há três duendes que aterrorizam o herói. O
primeiro duende anda sobre as mãos, pois lhe faltam as pernas e o baixo
ventre. O segundo tem um buraco enorme no peito, dando vistas para o
outro lado do corpo. O terceiro pula sobre a única perna, a direita,
pois todo o seu lado esquerdo é inexistente. Os duendes explicam que
aquelas falhas haviam sido produzidas pela vinda do espalhamento da
destruição, a vinda do nada. Eles são os que não quiseram fugir da
floresta, sua terra natal, e foram pegos pelo nada. O herói pergunta
então se aquelas faltas lhes trazem dor, e eis que todo o segredo do
vazio é revelado: ‘não, a gente não sente nada. Apenas lhe falta
qualquer coisa. E, cada dia, lhe falta mais, quando se está atacado por
isto. Em breve, já cá não estaremos de todo’.[2]
*
Texto elaborado no âmbito do curso “Nietzsche: Deus está morto”
ocorrido no Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA) –
cefa.pro.br – entre 21 e 24 de janeiro de 2015.
[1] O aforismo em questão, na versão utilizada, está em: <http://ghiraldelli.pro.br/o-homem-louco/> Consultado em 24/01/2015
[2] Sloterdijk, P. A mobilização infinita. Lisboa: Relógio D’Água, 2002, p. 119.
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*Paulo Ghiraldelli.
Doutor e mestre em filosofia pela USP. Doutor e mestre em filosofia e
história da educação pela PUC-SP. Bacharel em filosofia pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-doutor em Medicina Social pela
UERJ. Professor titular e livre docente pela Unesp. Atualmente
professor da UFRRJ, diretor do CEFA e co-produtor do Hora da Coruja da
Flix TV. Coordenador do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da ANPOF.
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