"Nossa sociedade tem sido historicamente uma sociedade de poucas possibilidades de inovações e transformação"
Defensor apaixonado da investigação dos fenômenos aparentemente menos
importantes da vida cotidiana na prática sociológica como técnica
valiosa para a compreensão dos chamados aspectos invisíveis da
sociedade, José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP),
acaba de lançar em forma de livro suas reflexões sobre o tema.
Admirador de Florestan Fernandes (1920-1995), seu professor nos anos de
graduação na mesma instituição, da obra de Charles Wright Mills
(1916-1962) e, sobretudo de Henri Lefebvre (1901-1991), Martins deixa
claro em seu "Uma Sociologia da Vida Cotidiana" (Contexto, 224 págs.)
que o ponto de aproximação entre esses autores foi a capacidade de
produzir investigações baseadas no artesanato intelectual e na chamada
imaginação sociológica. Talvez o exemplo mais eloquente venha do francês
Lefebvre, que durante um tempo trabalhou como motorista de táxi em
Paris para capturar a essência daquilo que classificava como as
incógnitas do vivido.
Martins, admirado por seus pares e alunos por possuir impressionante
capacidade de extrair dos pequenos eventos reflexão profunda sobre o
embate entre as incessantes transformações e a permanência das tradições
no interior da sociedade, expõe alguns dos elementos que aparecem em
sua mais recente obra.
Valor: Seu mais novo livro, "Uma Sociologia da Vida Cotidiana",
nasceu de uma disciplina criada pelo senhor na USP. Em sua opinião, a
academia tem perdido o traquejo de como pensar as pequenas questões do
cotidiano e, a partir daí, transportá-las para uma leitura estrutural da
sociedade?
José de Souza Martins: A academia não poderia perder o que não
tinha. Nas ciências humanas, a grande tradição sempre foi a de pesquisa e
estudo das estruturas e processos sociais, sem maior interesse por sua
dimensão microssociológica. Lentamente, no entanto, vem tomando
consciência e ganhando compreensão, em todos os campos do conhecimento,
da importância crescente das "coisas pequenas" e da vida cotidiana na
realidade social, econômica, política e histórica. Pesquisadores têm
sublinhado que a própria Revolução Francesa foi detonada pela reação da
população do bairro parisiense de Saint Antoine à elevação do preço do
pão, um banal acontecimento bem cotidiano.
Valor: No Brasil, há quem diga que o país precisa mais de
engenheiros do que de sociólogos. Em sua obra, ao tratar da imaginação
sociológica e do artesanato intelectual, o senhor retoma pensadores
clássicos como Wright Mills, Henri Lefebvre, Florestan Fernandes,
Gilberto Freyre (1900-1987) e, claro, os fundadores do pensamento
sociológico. Cita ainda a obra de Guimarães Rosa (1908-1967) como
exemplo dessa imaginação e prática sociológica. Sob o ponto de vista
qualitativo, essa é uma falsa polêmica?
Martins: Certamente é uma falsa polêmica. Os engenheiros estão
sendo substituídos pelo computador e a engenharia de aplicação está se
concentrando em funções que até há pouco tempo eram desempenhadas por
técnicos e artesãos. A sociologia não é imune à tendência geral da
divisão social do trabalho nem disputa espaços com outras
especialidades. No meu livro "A Aparição do Demônio na Fábrica" [Editora
34] analiso um caso ocorrido em grande indústria da região do ABC, em
meados dos anos 1950, que presenciei, decorrente de um problema de
engenharia que os engenheiros podiam resolver no plano técnico, mas não
no plano dos problemas sociais por ele causados. Os engenheiros não
conseguiam ver nem compreender o pânico que tomou conta das operárias de
uma das seções da fábrica, cujos problemas técnicos acreditavam ter
sido causados por Satanás, por falta de benzimento dos equipamentos de
uma nova fábrica. Na falta de sociólogo, a empresa improvisou chamando o
padre...
Valor: Alguns movimentos recentes, como os "riots" de Londres
(2011), as manifestações em Ferguson, nos EUA (2014), e as marchas de
junho (2013) no Brasil, parecem apontar para sentimentos de insatisfação
e frustração maiores e mais difusos do que as reivindicações
inicialmente formuladas. Outro ponto comum curioso é a ausência de
lideranças expressivas. O que esses movimentos indicariam?
Martins: No meu modo de ver, houve um retorno das ações sociais
ao âmbito do chamado comportamento coletivo, o comportamento de
multidão, estudado por Gustave LeBon [1841-1931] no século XIX. Essa
modalidade de ação havia evoluído para os movimentos sociais após a
Segunda Guerra e durante cerca de 50 anos foi o modo como as sociedades
se manifestaram em relação a suas carências e reivindicações. A própria
sociologia, mesmo sem pretendê-lo, contribuiu para que os movimentos
sociais, ao explicá-los, fossem institucionalizados. Governos, partidos,
igrejas incorporaram essas tensões e definiram-lhes caminhos. Estamos
vendo isso aqui no Brasil: os movimentos sociais deram origem ao Partido
dos Trabalhadores. No poder, o PT os capturou e instrumentalizou. Os
movimentos sociais foram domesticados e esvaziados. É compreensível que
aqui e em outras sociedades as tensões sociais explodam na forma de
ações coletivas diretas, o chamado comportamento coletivo, imprevisível.
Essas ações também serão capturadas e domesticadas, o que desencadeará
novas modalidades de protesto e de reivindicação. É o que propriamente
define a sociedade pós-moderna.
Valor: A questão do tempo no capitalismo aparece em diversos
pensadores da modernidade, como David Harvey, Wolfgang Streeck ou
Zygmunt Bauman. Em sua obra, o senhor aborda especificamente a respeito
da "abreviação do tempo social". A aceleração de seu ritmo teria levado à
crise das utopias, ao esvaziamento dos movimentos sociais, ao declínio
da representação política e até à religiosidade de uso materialista.
Como esse processo avassalador se consolidou em tão pouco tempo?
Martins: Quem levantou a temática da nova temporalidade da
sociedade contemporânea foi Henri Lefebvre, filósofo e sociólogo, nos
três volumes de sua monumental "Critique de la Vie Quotidienne", logo
depois da Segunda Guerra, seguido por Ágnes Heller, que foi assistente
de Georg Lukács [1885-1928], tema que este também havia tratado no
primeiro tomo da "Estética". A temporalidade do agora, do dia, dos
minutos sobrepôs-se ao tempo histórico e criou a "sociedade do atual" e
sua dominância, como de certo modo pensa o francês Michel Maffesoli.
Atualidade reduzida ao provisório e descartável. Surgiu, assim, uma
sociedade dominada pelo desapreço à dimensão histórica da vida e,
também, uma sociedade pobre de esperança, o que se expressa no egoísmo e
na mesquinharia, na apologia do "tirar vantagem". Uma sociedade adversa
para os jovens e as crianças. No lugar da utopia, apenas o "viver o
instante", o meramente repetitivo ou, na perspectiva lefebvriana, a
práxis mimética, em que o repetitivo fica mascarado pelo fingimento da
inovação e da revolução.
Valor: É curiosa a análise que o senhor faz das transformações da religiosidade no interior da sociedade brasileira.
Martins: A religiosidade, isto é, o modo de praticar as
religiões, tem tido peculiaridades que, justamente, nos remetem para o
que se poderia chamar de "refabricação" das crenças no cenário de
"liquefação" das grandes estruturas sociais de referência, sendo a das
religiões uma das mais poderosas. Entre nós desenvolve-se uma
religiosidade "ad hoc", de ocasião, não raro remendo e colcha de
retalhos de crenças que em outras partes têm demarcações precisas e até
limites que não podem ser transgredidos.
Valor: O senhor afirma que há um mimetismo político, em que as
forças conservadoras não se propõem a representar o seu lugar histórico,
enquanto os portadores ideológicos do discurso da mudança foram
capturados pelo conformismo da institucionalização. Na prática, como
isso tem funcionado?
Martins: A dominância da práxis mimética se manifesta na
teatralização da política, no fingimento e no autoengano como máscaras
constitutivas da ação política e das relações sociais. A esperança
política foi traduzida no mero faz de conta: o importante é o que se vê e
o que se deixa ver e não o que se faz nem o que resulta das ações e dos
relacionamentos sociais. A mentira se tornou uma instituição, que
atravessa desde nosso cotidiano até o cotidiano do rei - ou da rainha!
Valor: O senhor afirma que a consciência social tem sido
substituída pelo imaginário manipulável. Essa é uma situação
especificamente brasileira?
Martins: Não é uma situação especificamente brasileira, que em
diferentes lugares se propõe segundo condições e possibilidades locais.
Nossa sociedade tem sido historicamente uma sociedade de poucas
possibilidades de inovações e transformação. Tudo aqui é mais lento do
que em algumas das sociedades dominantes. Entre nós, o desenvolvimento
desigual se dá por grande descompasso entre o real e o possível, coisa
que nas sociedades dominantes é muito menos grave. Nelas o possível está
muito perto. Aqui o possível, como na história de Alice, de Lewis
Carroll, quanto mais se anda, mais longe se fica.
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Márcio Sampaio de Castro – Valor Econômico / Eu & Fim de Semana 16/01/2015
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