José Pereira Coutinho*
A família é o fator essencial da socialização religiosa. Como
instituição principal de educação religiosa, no seu seio a herança
religiosa transmite-se de geração em geração como cadeia de memória.
Porém, esta transmissão
religiosa encontra-se ameaçada
Com o desenvolvimento das sociedades pós-industriais ou
terciarizadas, a individualização ou segunda secularização torna-se o
paradigma sociológico por excelência para enquadrar as transformações
religiosas. As formas não institucionalizadas de religião vão ocupando o
espaço das religiões tradicionais.
Esta revolução espiritual transfere a ênfase no transcendente
para o indivíduo: a religião institucional decresce em benefício da
espiritualidade subjetiva. Já Marcel Mauss argumentava pela crescente
espiritualização e individualização das religiões. As religiões perdem
tanto a sua tangibilidade como o seu cunho comunitário. O indivíduo
torna-se agora o soberano do seu destino, afetando inevitavelmente a
sua religiosidade.
A religiosidade juvenil atual caracteriza-se então pela primazia
da felicidade individual e terrena, pela vontade de independência e de
autonomia, pelo relativismo e pelo pragmatismo.
Primeiro: os jovens atuais não acreditam em salvações coletivas,
mas somente na felicidade individual. Querem ser felizes aqui e agora,
não numa vida após a morte, abandonando ou reinterpretando a
soteriologia [salvação] cristã. Segundo: querem julgar e escolher
livremente entre os produtos religiosos mais adequados para si,
desenvolvendo "bricolage". Terceiro: deixaram de acreditar no
cristianismo como única verdade religiosa, uma vez que a religião se
tornou escolha privada e a importância das religiões se tornou idêntica.
Quarto: a verdade não vem da doutrina e da teoria, mas meramente da
experiência pessoal, do que a religião fornece às vidas concretas.
Família e lazer
A família é o fator essencial da socialização religiosa. Como
instituição principal de educação religiosa, no seu seio a herança
religiosa transmite-se de geração em geração como cadeia de memória.
Porém, esta transmissão religiosa encontra-se ameaçada.
Primeiro: a tradição já não continua a sustentar a vida
individual e coletiva. Segundo: as crenças são legitimadas não pela
autoridade tradicional mas pela sua utilidade. Terceiro: as crenças não
são recebidas passivamente mas são ativamente consumidas. Assim, as
famílias são desafiadas hoje a conseguir ligar as experiências
individuais aos conteúdos religiosos associados a determinada linhagem
crente.
Para além destas alterações conjunturais, a mudança substancial
da estrutura familiar contribui seguramente para quebrar os elos da
cadeia. De facto, as pessoas casam-se menos, mais tarde e mais
civilmente; as ruturas conjugais crescem; as crianças nascem
progressivamente em menor quantidade e no seio de coabitações. Ou seja,
a reprodução das linhagens crentes tradicionais, assentes em
casamentos religiosos estáveis e em famílias alargadas, fica certamente
comprometida com estas transformações em curso.
Às mudanças na família juntam-se as modificações no lazer. De
facto, no lazer os jovens expressam-se na sua especificidade e
diversidade, construindo a sua identidade sobre a experimentação
afetiva, social e cultural. Durante as duas últimas décadas, estas
experiências foram-se alterando paulatinamente: as afetivas assentando
na expressão sexual, as sociais desligando-se da interação presencial e
as culturais convertendo-se especialmente em formas de consumo.
A mudança nas experiências afetivas implicou uma mutação
ontológica importante. A passagem da conceção cristã de pessoa como ser
unitário de corpo e alma à conceção dualista de objeto como exterior à
pessoa. Esta transição levou os jovens, mais permeáveis à novidade, a
desautorizar quaisquer intromissões relativas ao seu corpo, agora seu
objeto pessoal. Certamente esta mudança foi acelerada e desenvolvida
com o regime democrático, pela liberdade e igualdade inerentes.
Primeiro: a TV, o cinema, a música, a internet, a publicidade difundem
uma cultura erotizada. Segundo: a inserção das mulheres no mercado de
trabalho liberta os filhos da tutela materna, oferecendo-lhes
oportunidades experienciais. Terceiro: a disseminação da contraceção
diminui o risco de gravidezes indesejadas.
As tecnologias de informação e comunicação (TIC) revolucionaram a
forma como as pessoas se relacionam. Enquanto no princípio dos anos
1990 o computador, a internet e o telemóvel surgiam em Portugal,
passados vinte anos todos os jovens os usufruem. Embora as TIC sirvam
para aproximar e para reforçar laços, possibilitam também o
afastamento, o isolamento das pessoas, a existência de vidas centradas
na virtualidade e não na realidade, assim como a fragmentação das
histórias pessoais. Como defende Zygmunt Bauman, as relações
pós-modernas são fragmentárias, inconsequentes, pequenas e sem
obrigações mútuas, cortando o envolvimento interpessoal.
As experiências culturais são crescentemente pautadas pelo
consumo. Por um lado, a procura expandiu-se com o alargamento do poder
de compra da classe média. Por outro lado, a oferta dilatou-se não só
pelo estímulo da vontade de consumo e pela extensão dos pontos de
retalho, como também pela oferta de mais produtos e serviços a preços
atrativos. O consumo fornece aos jovens identidade, autonomia e relação,
muito expressivas nas saídas noturnas. Com a quantidade e a
diversidade de oferta aumentada nas duas últimas décadas, os jovens
frequentam espaços profundamente marcados pelo consumo (de música e de
álcool, pelo menos), que lhes confirmam ou fornecem identidade e onde
podem livremente expressar-se e relacionar-se. Como defende Gilles
Lipovetsky, os princípios do hiperconsumo invadem a alma religiosa:
transitoriedade, liberdade de pertença comunitária e de escolha de
comportamentos, primazia do bem-estar subjetivo e da experiência
emocional.
Resultados e discussão
D.R.
A figura 1 apresenta os resultados das crenças católicas. Em
1990, as crenças mais importantes foram "pecado" (47%) e "Deus
pessoal", seguidos de "céu", "vida após a morte" e "inferno" (14%),
com uma amplitude de 33%.
Todas as crenças cresceram (pelo menos +9%), principalmente "vida após a morte" (+ 24%) e "inferno" (+22%).
Assim, em 2008, "vida após a morte" e "céu" trocaram as suas
posições e a amplitude desceu para 24% (pecado - 60%, inferno - 36%).
A figura 2 mostra os resultados das práticas católicas e das
atitudes. Cerca de 50% mantiveram os seus momentos de oração/meditação
de uma ronda para outra, enquanto a frequência de serviços religiosos
baixou 10% para 16%.
Em 1990, homossexualidade era o aspeto mais rejeitado, seguida
por eutanásia e aborto. Em 2008, tiveram valores próximos:
homossexualidade desceu significativamente (32%), enquanto eutanásia
diminuiu 16% e aborto aumentou 2%.
Relativamente às crenças não católicas, reincarnação passou de 17% para 35% e espírito ou força vital de 20% para 25%.
As experiências culturais são crescentemente pautadas pelo consumo. Por
um lado, a procura expandiu-se com o alargamento do poder de compra da
classe média. Por outro lado, a oferta dilatou-se não só pelo estímulo
da vontade de consumo e pela extensão dos pontos de retalho, como também
pela oferta de mais produtos e serviços
Porque é que a crença no pecado e no Deus pessoal é maior e no
inferno é menor? Porque é que todas as crenças aumentaram,
principalmente no inferno e na vida após a morte? Para ambas as
questões, o desenvolvimento da individualização induz a reinterpretação
heterodoxa das crenças ortodoxas ao sabor das necessidades
individuais. Contudo, destacam-se crenças mais facilmente reformuladas
em forma heterodoxa, como são eventualmente o pecado e o Deus pessoal. O
crescimento maior da crença no inferno e na vida após a morte pode
resultar dos seus valores significativamente mais baixos em 1990, tendo
assim mais espaço para subir.
A frequência de serviços religiosos baixou possivelmente por
três razões. Primeiro: a erosão da salvação cristã levou ao descrédito
dos ritos salvíficos. Os jovens de hoje estão mais preocupados em
salvar os pobres, a natureza ou os seus corpos e mentes. Segundo: a
incoerência de sacerdotes e religiosos, mais divulgada pelas TIC,
desencorajou a assistência à missa. Terceiro: o consumo, as saídas
noturnas, o sexo e as TIC retiraram tempo cronológico e,
principalmente, tempo psicológico, para outras atividades, a não ser
que sejam divertidas e permitam liberdade de expressão.
Não serão as experiências de concertos ou de noite, com rituais
particulares, guiadas por deuses temporais (ídolos musicais) e
sacerdotes noturnos (DJ, similares às experiências xamânicas?
Na verdade, os xamãs ouvem música, dançam e consomem substâncias
psicoativas para estimular estados alterados de consciência (transes)
para interagir com o mundo espiritual. De facto, estas liturgias
noturnas de recorte xamânico adequam-se mais ao espírito juvenil.
A resistência da oração pode ser enquadrada no desenvolvimento
da individualização. As formas e conteúdos coletivos de oração
convertem-se em orações individuais, conversas pessoais livres com o
divino, podendo no limite tornar-se quase a única expressão de
religiosidade. Alguns autores chegam a defender a oração como forma
moderna de confissão. Para eles, a oração reflete a responsabilidade e o
desenvolvimento individual para controlar o futuro e ultrapassar
fraquezas, sem intermediários ou autoridade, sem pecado ou punição. A
sua flexibilidade e acessibilidade (qualquer pessoa pode aplicá-la em
qualquer lugar e tempo) vão ao encontro da individualização.
Porque é que a recusa da eutanásia e principalmente da
homossexualidade baixou, enquanto do aborto manteve o seu valor?
Primeiro: qualquer tipo de autoridade, nomeadamente autoridade
eclesiástica, é mal recebido pela juventude. Eles gostam de opinar sem
se prenderem a laços externos, porque se consideram fonte principal das
suas regras. Quando se lançam fora da Igreja, provavelmente seguem
mais as suas próprias regras. Segundo: TV e cinema ajudaram
possivelmente a propagar um ambiente recetivo à eutanásia e
homossexualidade. Figuras públicas, estrelas de TV ou de música
assumindo a sua condição homossexual, assim como a educação sexual nas
escolas, provavelmente encorajaram a aceitação da homossexualidade.
Terceiro: possivelmente o aborto poderia não descer mais, enquanto os
outros indicadores baixaram até ao valor deste. Talvez as três atitudes
tenham alcançado o mínimo valor possível, relativo aos católicos
convictos.
Porque é que a crença no espírito ou força vital e na
reincarnação aumentaram e principalmente esta última? Com a disseminação
das TIC, o mercado espiritual expandiu-se, permitindo a escolha livre e
ampla dos produtos religiosos. Jogos, filmes, séries de TV e
telenovelas estão provavelmente a estimular esta mudança. Também
doutrinas da Nova Era e do budismo espalham crenças no sagrado imanente
e não transcendente, assim como nos ciclos cármicos. Assim, talvez
ambos os indicadores interessem a juventude, competindo com a
ressurreição e o Deus pessoal. A força maior da reincarnação resulta
porventura da ideia de permanência infinita da alma neste mundo, numa
eterna viagem cíclica, o que vai ao encontro da conceção atual da eterna
juventude em que a morte foi morta.
Por último, a família apresenta-se como fator chave na
interpretação destas alterações. Fonte capital de religião, Igreja
doméstica, a família tem papel determinante. As famílias tradicionais
vão diminuindo, dando lugar a tipos conjugais diversos, gradualmente
mais pequenos, assentes no casamento civil ou na coabitação e marcados
por ruturas. Os estudos apontam para que a probabilidade de os filhos
de casais mais religiosos, portanto inseridos em famílias tradicionais,
serem mais religiosos seja maior.
Conjeturo ainda que a quebra do número de crianças com o
crescimento da riqueza e o decréscimo da autoridade parental diminuiu a
religiosidade juvenil. Os miúdos, mais protegidos mas mais livres nas
suas vidas, têm menos capacidade para o sacrifício, para a
responsabilidade, para o compromisso, pelo que não só são mais
impacientes para desempenhar práticas religiosas repetitivas, mas
também seguem as suas próprias regras e acreditam no que lhes apraz.
Conclusões
Entre 1990 e 2008, os jovens portugueses passaram a acreditar
mais, tanto em crenças ortodoxas como heterodoxas, a praticar e a
seguir menos as normas católicas. Estas conclusões limitam-se, contudo,
ao período em análise, período máximo disponível. Esta ressalva é
abreviada pela qualidade do EVS, certamente a base de dados
internacional com indicadores mais interessantes sobre religião. Desta
forma, espera-se que os dados reflitam com fiabilidade a realidade
estudada.
De facto, como defende Grace Davie, respeitada socióloga da
religião, as práticas decrescerão, enquanto as crenças manterão a sua
presença, embora crescentemente pessoais, heterogéneas e demarcadas da
instituição religiosa, principalmente entre os jovens. Estas alterações
religiosas advêm também das mutações na família e no lazer, como tentei
desenvolver neste artigo. Mudanças na estrutura e no papel da família
como transmissora religiosa explicam possivelmente a evolução religiosa
em todos os seus três tipos de indicadores.
Mudanças no lazer (sexualidade, TIC e consumo) explicam
porventura a descida da assistência à missa e do seguimento das normas
católicas, e o crescimento das recomposições religiosas, principalmente
através das TIC. Em suma, a individualização é traço principal da
nossa modernidade, como é reconhecido por vários autores.
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* José Pereira Coutinho
Doutor em Sociologia, ISCTE-IUL
In "Brotéria", fevereiro 2014
Doutor em Sociologia, ISCTE-IUL
In "Brotéria", fevereiro 2014
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