Card. Gianfranco Ravasi*
"...os apócrifos
comportam pepitas de ouro históricas que nos permitem reconstruir
memórias arcaicas sobre Jesus
e mesmo do próprio Jesus."
Bastou-me percorrer algumas páginas de uma
antologia de escritos cristãos apócrifos para ficar fascinado e
conquistado pelas suas narrações e delas pressentir a força criadora da
piedade, da devoção e mesmo da exaltação religiosa. Não seria possível
estabelecer um panorama de todo este património literário, histórico e
tradicional que percorre como um rio os primeiros séculos cristãos?
Se uma mulher chamada Ana pretendesse conhecer a passagem exata
do Evangelho onde entra em cena a sua homónima, a mãe de Maria, e talvez
descobrir uma passagem que dissesse respeito ao pai da Virgem,
Joaquim, ela percorreria em vão todas as páginas de Mateus, Marcos,
Lucas e João.
Se se quisesse demonstrar que Jesus nasceu numa gruta, aquecido
pelo bafo de um boi e de um burro, que os Magos eram três reis
iranianos, que o nome do soldado romano que atingiu o lado de Jesus com
uma lança era Longino, que Verónica, uma mulher de Jerusalém, limpou o
rosto de Jesus na sua marcha para o Calvário, recebendo em troca a
imagem do seu rosto no tecido que o enxugou, procurar-se-ia em vão nos
quatro Evangelhos.
Todas estas informações foram encontradas nessa vasta literatura
dos primeiros séculos cristãos denominada de "apócrifa", «livros
ocultos», que a Igreja opõe aos livros "canónicos" e "inspirados" do
Novo Testamento. O processo de definição das Escrituras foi complexo e
delicado, conduzido pela Igreja com o apoio do Espírito Santo: trata-se
de um ato eclesial e teológico no sentido estrito, como já referimos
[cf. tópico "Questões de fé para crentes e não crentes"].
Muitos escritos foram excluídos deste catálogo, ou deste cânone,
alguns muito antigos (séculos I e II): é o caso do precioso "Evangelho
de Tomé", que conserva 114 palavras de Jesus (algumas encontram-se nos
Evangelhos, outras não, ainda que possuam alguma verosimilhança
histórica), o "Evangelho de Pedro", a mais antiga narração não canónica
da paixão de Cristo, ou ainda o famoso "Protoevangelho de Tiago", que
se interessa pelo nascimento e adolescência de Maria, e pelo seu
casamento com José.
As narrações dos apócrifos são volumosas: compreendem todos os
géneros do Novo Testamento (atos de diversos apóstolos, cartas,
apocalipses) e textos mais recentes. Floresceram na terra fértil da
piedade popular e são um eco da devoção, da imaginação, mas igualmente
de desvios doutrinais do mundo eclesial de onde provêm. Os apócrifos
são por vezes a expressão de círculos intelectuais mais restritos. como
os textos gnósticos egípcios.
Os apócrifos guardaram frequentemente dados, elementos,
recordações de acontecimentos e de palavras de Cristo provavelmente
autênticas e não presentes nos Evangelhos canónicos. Não esqueçamos que
os próprios Atos dos Apóstolos transmitem uma frase de Jesus citada
por S. Paulo e ignorada pelos Evangelhos canónicos: «Há mais felicidade
a dar do que a receber» (20, 35). E o evangelista João sabe bem que
«há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se elas fossem escritas,
uma por uma, penso que o mundo não teria espaço para os livros que se
deveriam escrever» (21, 25).
Com as suas informações verdadeiras ou presumidas, os apócrifos
tiveram grande influência na história da arte cristã, na liturgia (a
apresentação de Maria no templo, evocada a 21 de novembro, é apócrifa,
encontrando-se no "Protoevangelho de Tiago"), e mesmo sobre a teologia.
No seio de todas estas narrações livres e coloridas, os apócrifos
comportam pepitas de ouro históricas que nos permitem reconstruir
memórias arcaicas sobre Jesus e mesmo do próprio Jesus.
É sobretudo a vida da Igreja dos primeiros séculos que surge
nestas páginas, o seu fervor, a sua tomada de consciência da grandeza
do acontecimento cristão. Num apócrifo egípcio, o "Evangelho de
Filipe", pode ler-se: «Se eu digo que sou judeu, ninguém se comove. Se
eu digo que sou romano, ninguém se impressiona. Se eu digo que sou
grego, bárbaro, escravo, livre, ninguém se agita. Mas se eu digo que
sou cristão, o mundo treme».
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* Card. Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "150 questions à la foi", ed. Mame
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "150 questions à la foi", ed. Mame
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Imagem: Bíblia: Evangelista João | D.R.
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