segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Questões de fé para quem crê e não crê: O fascínio pelo segredo dos "apócrifos"

Card. Gianfranco Ravasi*
 Imagem
 "...os apócrifos comportam pepitas de ouro históricas que nos permitem reconstruir memórias arcaicas sobre Jesus 
e mesmo do próprio Jesus."
Bastou-me percorrer algumas páginas de uma antologia de escritos cristãos apócrifos para ficar fascinado e conquistado pelas suas narrações e delas pressentir a força criadora da piedade, da devoção e mesmo da exaltação religiosa. Não seria possível estabelecer um panorama de todo este património literário, histórico e tradicional que percorre como um rio os primeiros séculos cristãos?
Se uma mulher chamada Ana pretendesse conhecer a passagem exata do Evangelho onde entra em cena a sua homónima, a mãe de Maria, e talvez descobrir uma passagem que dissesse respeito ao pai da Virgem, Joaquim, ela percorreria em vão todas as páginas de Mateus, Marcos, Lucas e João. 

Se se quisesse demonstrar que Jesus nasceu numa gruta, aquecido pelo bafo de um boi e de um burro, que os Magos eram três reis iranianos, que o nome do soldado romano que atingiu o lado de Jesus com uma lança era Longino, que Verónica, uma mulher de Jerusalém, limpou o rosto de Jesus na sua marcha para o Calvário, recebendo em troca a imagem do seu rosto no tecido que o enxugou, procurar-se-ia em vão nos quatro Evangelhos.

Todas estas informações foram encontradas nessa vasta literatura dos primeiros séculos cristãos denominada de "apócrifa", «livros ocultos», que a Igreja opõe aos livros "canónicos" e "inspirados" do Novo Testamento. O processo de definição das Escrituras foi complexo e delicado, conduzido pela Igreja com o apoio do Espírito Santo: trata-se de um ato eclesial e teológico no sentido estrito, como já referimos [cf. tópico "Questões de fé para crentes e não crentes"].

Muitos escritos foram excluídos deste catálogo, ou deste cânone, alguns muito antigos (séculos I e II): é o caso do precioso "Evangelho de Tomé", que conserva 114 palavras de Jesus (algumas encontram-se nos Evangelhos, outras não, ainda que possuam alguma verosimilhança histórica), o "Evangelho de Pedro", a mais antiga narração não canónica da paixão de Cristo, ou ainda o famoso "Protoevangelho de Tiago", que se interessa pelo nascimento e adolescência de Maria, e pelo seu casamento com José.

As narrações dos apócrifos são volumosas: compreendem todos os géneros do Novo Testamento (atos de diversos apóstolos, cartas, apocalipses) e textos mais recentes. Floresceram na terra fértil da piedade popular e são um eco da devoção, da imaginação, mas igualmente de desvios doutrinais do mundo eclesial de onde provêm. Os apócrifos são por vezes a expressão de círculos intelectuais mais restritos. como os textos gnósticos egípcios.

Os apócrifos guardaram frequentemente dados, elementos, recordações de acontecimentos e de palavras de Cristo provavelmente autênticas e não presentes nos Evangelhos canónicos. Não esqueçamos que os próprios Atos dos Apóstolos transmitem uma frase de Jesus citada por S. Paulo e ignorada pelos Evangelhos canónicos: «Há mais felicidade a dar do que a receber» (20, 35). E o evangelista João sabe bem que «há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se elas fossem escritas, uma por uma, penso que o mundo não teria espaço para os livros que se deveriam escrever» (21, 25).

Com as suas informações verdadeiras ou presumidas, os apócrifos tiveram grande influência na história da arte cristã, na liturgia (a apresentação de Maria no templo, evocada a 21 de novembro, é apócrifa, encontrando-se no "Protoevangelho de Tiago"), e mesmo sobre a teologia. No seio de todas estas narrações livres e coloridas, os apócrifos comportam pepitas de ouro históricas que nos permitem reconstruir memórias arcaicas sobre Jesus e mesmo do próprio Jesus.

É sobretudo a vida da Igreja dos primeiros séculos que surge nestas páginas, o seu fervor, a sua tomada de consciência da grandeza do acontecimento cristão. Num apócrifo egípcio, o "Evangelho de Filipe", pode ler-se: «Se eu digo que sou judeu, ninguém se comove. Se eu digo que sou romano, ninguém se impressiona. Se eu digo que sou grego, bárbaro, escravo, livre, ninguém se agita. Mas se eu digo que sou cristão, o mundo treme».
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* Card. Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "150 questions à la foi", ed. Mame
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Imagem: Bíblia: Evangelista João | D.R.
Publicado em 18.01.2015

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