domingo, 31 de julho de 2016

Maffesoli: Crise ou transfiguração da política?

Michel Maffesoli*
 

 A palavra crise está em todas as bocas. Fala-se em crise política, crise econômica, até mesmo em crise espiritual. A etimologia da palavra crise remete ao grego « krinein »: passar o grão no crivo. Ou seja, fazer a triagem. Como se diz, separar o joio do trigo. Os velhos valores da modernidade estão saturados e os novos valores custam a emergir.

Essa saturação dos valores é especialmente evidente na cena política: nada mais parece fazer sentido; os resultados eleitorais traduzem uma volubilidade aguda dos eleitores, espelho da transformação em espetáculo das políticas nacionais.

No Brasil, por exemplo, todo mundo sabe que a corrupção é inerente ao modo de agir de parte considerável dos políticos. É difícil, ou quase impossível, ganhar eleições e governar sem o apoio financeiro das forças econômicas que financiam campanhas e fazem pressão sobre os eleitos. Mas, de certo modo, há um fingimento de espanto. Faz de conta que se está descobrindo tudo isso. A surpresa inclui a percepção, como se fosse uma novidade, de que o Estado, reduzido a uma encenação de suas atribuições, está impotente, sem condições para resolver os problemas cotidianos da cidadania.

Na França, a cena política também chegou ao ponto máximo do espetáculo. Votam-se leis desprovidas de conteúdo, que não satisfazem a situação nem a oposição. Em paralelo ao jogo parlamentar, multiplicam-se as graves e as manifestações numa espécie de remake da Frente Popular dos anos 1930, sem que ninguém, de fato, acredite nisso. A verdade é que o rei está nu e que, como no conto de Andersen, até agora ninguém ousou dizer isto: O Estado não tem condições de garantir a manutenção dos serviços públicos; os eleitos não conseguem executar os programas de campanha e não realizam as reformas necessárias ao dia a dia dos países. As eleições recentes na Itália, com o descrédito, após um começo voluntarista do chefe de governo, Matteo Renzi, último símbolo da reforma e da recuperação do Estado, também indicam uma enorme perda de significado da política.

O povo não espera coisa alguma desses sábios e racionais gestores, assim como não se sente protegido pelo Estado, por sua polícia, seu exército, sua justiça. Se é para chutar o balde, que seja sem meio termo: daí a participação, ou o apoio, em manifestações ou contestações que só tem por programa e objetivo reunir pessoas, promovendo um estar-junto (Noites em pé na França), um encantamento com a encenação de justiceiros, responsáveis, no caso do Brasil, no entender de uma parte do país, pelo afastamento da pessoa que seria a menos diretamente atingida pela corrupção no meio político, e a eleição de personalidades totalmente novas na política, como na Itália, que justamente não querem se comportar como políticos profissionais e tentam apostar em uma nova forma de fazer política.

A esse movimento profundo é possível acrescentar o crescimento da abstenção eleitoral e os diversos modos mais emocionais do que políticos de congraçamento coletivo. Tudo isso parece remeter menos a uma crise do que a uma transfiguração da política. É o modelo da democracia representativa e da autoridade tutelar e totalizante do Estado que não funciona mais. O povo não confia mais nas suas elites e estas só se preocupam com a própria sobrevivência. O senso do interesse geral acabou. Os eleitos não representam mais os eleitores.

Mas, em vez de se lamentar diante da decadência de um modelo de regulação da vida coletiva, na verdade, bastante recente (datado do século XVIII), o melhor é prestarmos atenção no surgimento de forças alternativas, não mais vindas de cima, do alto, mas de baixo; não mais propondo um programa nacional e prospectivo, mas experimentando, por toda parte, de diferentes modos, soluções mais pontuais, locais, singulares, adequadas a problemas específicos. É nesse nível que se podem identificar os diversos tipos de solidariedade, as criações culturais e as alternativas cotidianas formuladas contra o marasmo político dominante. Pois o fim de um mundo não é o fim do mundo.

Termino este artigo com uma palavra sobre o Brexit, cuja repercussão continua e se estenderá por muito tempo. Ou seja, termino falando da vontade afirmada nas urnas pelos eleitores britânicos de deixar a União Europeia. Eis um exemplo claro dessa secessio plebis da qual eu anuncio desde muito tempos os riscos. É preciso salientar que a permanência na União Europeia só foi defendida com argumentos econômicos, ou até mesmo economicistas, sustentados por tecnocratas ou banqueiros. Nada se falou que pudesse remeter ao imaginário das pessoas ou dos povos. Vale lembrar que a alma coletiva da Europa não pode ser definida exclusivamente por uma moeda única e pelos auxílios e subsídios feitos aos seus membros por um orçamento público comum.

O povo britânico não foi convencido pelos argumentos racionalistas das elites, que não souberam utilizar ou acionar imagens e mitos comuns. Sem dúvida, também nesse ponto, será preciso reconstruir uma maneira de convivência, de compartilhamento, de estar-juntos e de adesão e apego a uma terra comum a partir de baixo. Uma Europa das regiões mais do que uma Europa das nações. Uma Europa do consenso popular mais do que uma Europa das negociações tecnocráticas e financeiras. Teremos de recuperar o dinamismo das trocas e das cooperações que deram sustentação ao triunfo das catedrais góticas e dos mosteiros, das descobertas culturais e científicas do Renascimento e das criações e obras desses grandes europeus que foram os romancistas e poetas dos últimas séculos.
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* Michel Maffesoli, sociólogo, 71 anos, é professor emérito da Sorbonne. Autor, entre tantas obras, de A transfiguração do político, a tribalização do mundo e O conformismo dos intelectuais (Sulina).
Neste texto, publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, Maffesoli reflete sobre a crise na política.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=8891 - 31/07/2016

Michael Braungart, químico alemão: “sustentabilidade é um conceito ultrapassado”

“Falta ambição à ideia de reduzir o impacto das atividades humanas“. 

O químico alemão Michael Braungart, professor da Universidade Técnica de Munique, acha perda de tempo pensar sobre o lixo que produzimos. Mais inteligente, defende, é não produzir. Braungart e o colega William McDonough ficaram famosos na década de 1980 ao criticar a maneira como as sociedades fabricam, consomem e descartam bens. Para eles, os objetos que criamos por meio do processo industrial precisam ser planejados de modo a não gerar resíduos. Uma vez descartados, seus elementos devem retornar à cadeia produtiva, ou se degradar naturalmente sem liberar substancias tóxicas. Essa forma de pensar recebeu o nome de“design do berço ao berço”, e lançou as bases teóricas da economia circular. Nela, os resíduos gerados por uma indústria são transformados em matéria-prima para outras.

O tempo colaborou com a disseminação das ideias de Braungart. Elas conquistaram o apreço de nomes de peso, como o cineasta Steven Spilberg e o ex-presidente americano Bill Clinton. E Braungart se tornou um pensador mais radical, capaz de criticar premissas básicas do ambientalismo: “Sustentabilidade é um conceito ultrapassado”, diz ele nesta entrevista. Segundo ele, falta ambição à ideia de reduzir o impacto das atividades humanas. Em lugar de poluir menos e poupar recursos naturais – ideias centrais do conceito de sustentabilidade –, os artigos que produzimos deveriam fazer bem ao meio ambiente, e retornar à biosfera na forma de nutrientes. “Nós investimos muito dinheiro, ao longo dos anos, tentando ser menos danosos para o meio ambiente. Agora, precisamos investir dinheiro em ser realmente bons”, afirma. Em 1987, Braungart criou um instituto – o Epea – que pesquisa soluções técnicas e presta consultoria para que empresas de diversos setores passem a produzir segundo esses princípios. Segundo ele, não adianta cobrar que a indústrias e os consumidores protejam o meio-ambiente por motivos éticos. É preciso tornar essa ideia atraente – e lucrativa.

Michael Braungart: “Os humanos devem ser uma oportunidade para o planeta, não um fardo”. 
 
BP – Há anos, ambientalistas do mundo inteiro dizem que devemos reduzir o consumo de recursos não renováveis, reciclar nosso lixo, ser mais sustentáveis. O senhor defende que eles estão equivocados. Por quê?
Michael Braungart – Eu acho que o conceito tradicional de sustentabilidade foi ótimo. Quando é inverno e noite na Suécia, os suecos precisam encontrar uma maneira de se aquecer, para sobreviver ao tempo frio. A ideia de sustentabilidade nos permitiu isso. Ajudou-nos a pensar soluções importantes para necessidades urgentes. Mas não é assim que a natureza funciona. A natureza não pensa em termos de minimizar danos ou adotar soluções provisórias. Os defensores da sustentabilidade tradicional afirmam que nós devemos diminuir nossa pegada ambiental. Que precisamos controlar a intensidade com que usamos os recursos naturais. Defendo uma ideia diferente: em lugar de não fazer mal, por que não fazemos bem ao meio ambiente?

 "O conceito de sustentabilidade, na verdade, é bastante ruim. 
Defende que devemos atender às necessidades das gerações presentes 
sem comprometer os recursos que serão usados pelas gerações futuras. Isso é triste. 
O desejo de um pai jamais será “não comprometer o futuro” de seus filhos. 
Os pais querem ser benéficos para o futuro de seus filhos. 
Sustentabilidade foi um conceito interessante para entendermos 
os problemas com os quais temos de lidar. 
Mas é um conceito ultrapassado."

BP – O senhor já chegou a dizer que o conceito de sustentabilidade é entediante.
Braungart – Isso é verdade. Primeiro porque inovação de verdade não é algo sustentável. Minha mãe era a mais velha em uma família de 11 irmãos. Por anos, ela lavou a roupa suja da família inteira em um riacho perto de casa. Quando os pais dela finalmente conseguiram comprar uma máquina de lavar, ela nunca mais voltou ao riacho. Inovação de verdade muda a forma como vivemos e gera impactos. E o conceito de sustentabilidade não considera isso da forma como deveria. O conceito de sustentabilidade, na verdade, é bastante ruim. Defende que devemos atender às necessidades das gerações presentes sem comprometer os recursos que serão usados pelas gerações futuras. Isso é triste. O desejo de um pai jamais será “não comprometer o futuro” de seus filhos. Os pais querem ser benéficos para o futuro de seus filhos. Sustentabilidade foi um conceito interessante para entendermos os problemas com os quais temos de lidar. Mas é um conceito ultrapassado. Nós precisamos começar a pensar em qual deverá ser a cara do futuro. E a ideia de sustentabilidade não nos permite isso. Ela nos ensina a reduzir os males que causamos. E, claro, isso é entediante. Se eu perguntar como é seu relacionamento com seu namorado ou namorada, qual será sua resposta? “Ah, é um relacionamento sustentável.” Se for essa a resposta, eu vou sentir pena de vocês.

BP – Qual a alternativa à ideia de sustentabilidade?
Braungart – Todos os bens que consumimos, os produtos que empregamos, devem ser planejados de modo que, ao se degradar, se tornem nutrientes. Nossos bens precisam ser reabsorvidos pela biosfera. É essa a ideia do design do berço ao berço. Por que não criamos edifícios que funcionem como árvores, capazes de oferecer suporte à vida? Edifícios que limpem o ar, que limpem a água, que causem efeitos positivos, em lugar de simplesmente ser neutros na emissão de carbono. As cidades querem neutralizar suas emissões de carbono, mas árvore nenhuma faz isso. Queremos ser menos eficientes que uma árvore? Uma árvore traz benefícios ao meio ambiente, ocupa uma função no ecossistema. Ela não é “menos ruim”. Meu raciocínio é diferente do ambientalismo tradicional porque enxergo os humanos como uma oportunidade para o planeta. E não como um fardo.

BP – E nós já possuímos conhecimento e tecnologia suficientes para funcionar como oportunidades para o planeta? Para construir edifícios que funcionem como árvores, por exemplo?
Braungart – Temos. Mas nós ainda não construímos edifícios perfeitos. Em cada edifício que minha equipe e eu ajudamos a projetar, incluímos três ou cinco elementos que obedeçam aos princípios do design do berço ao berço. Porque não queremos adiar a execução desses projetos e queremos que as pessoas experimentem os benefícios que essas tecnologias já podem oferecer. O grande problema é que ainda há pouca variedade de materiais desse gênero no mercado. Você poderia construir uma casa, hoje, perfeitamente adaptada a esses princípios. Mas ela seria, muito provavelmente, chata. Seria feia. E não é isso que queremos. Criamos, na Universidade Técnica de Munique, um grupo em que arquitetos, engenheiros e construtores podem compartilhar os novos materiais que eles desenvolvem. A ideia é que essas soluções sejam compartilhadas e adotadas mais frequentemente.

BP – Isso vale para todas as indústrias, para todos os setores econômicos?
Braungart – Esses princípios valem para todas as áreas. Para todos os bens que, quando consumidos e descartados, passam por mudanças químicas, físicas ou biológicas. Comida, sapatos, detergentes. Todas essas coisas precisam ser projetadas de modo a ser boas para a biosfera. Os materiais ainda não são pensados com esse objetivo. Nós investimos muito dinheiro, ao longo dos anos, tentando ser menos danosos para o meio ambiente. Agora, precisamos investir dinheiro em ser realmente bons.

BP – As empresas estão interessadas em produzir de acordo com os princípios do design do berço ao berço?
Braungart – Eu não esperava que a adoção desses princípios fosse rápida, que ocorresse ainda durante meu tempo de vida. Mudanças de mentalidade levam tempo para acontecer. Mas há um fator acelerando esse processo. As gerações mais jovens, daquelas pessoas com algo entre 18 e 23 anos – e que os críticos chamam de “geração dos selfies” –, se preocupam com a imagem que suas escolhas comunicam. Elas se preocupam com aquilo que consomem. Para essas pessoas, dinheiro não é tão importante quanto reconhecimento. E elas querem ter orgulho das coisas que consomem.

BP – Se os consumidores estão dispostos a valorizar essas inovações, o que falta para as empresas fazer o mesmo?
Braungart – Precisamos oferecer alternativas tecnológicas belas e eficientes, que façam bem aos ecossistemas, para que as empresas e os consumidores se interessem por elas. Não adianta pedir que as pessoas protejam o meio ambiente por questões éticas. Quando você constrói uma sociedade ao redor de conceitos éticos, sempre surgem desvios. As pessoas que querem ser éticas, quando postas sob pressão, quando querem ganhar dinheiro, acabam traindo seus ideais. O mesmo vale para o setor ambiental. Por isso, precisamos criar produtos que tragam benefícios para a biosfera e que sejam, ao mesmo tempo, lucrativos para as empresas.

BP – Há empresas que fazem isso de maneira bem-sucedida?
Braungart – Há empresas que fabricam carpetes que limpam o ar. É o caso de uma companhia chamada Desso. Ela é extremamente lucrativa e consegue isso ao vender carpetes que absorvem toxinas e poeira.

BP – Como o senhor trabalha para promover essa ideia?
Braungart – Minha principal ocupação é como professor. Dou aulas em uma escola de administração, focada em gestão. Para os princípios que eu defendo serem aplicados, é preciso que eles façam sentido do ponto de vista dos negócios. Do contrário, serão somente ideias bonitas, mas nunca aplicadas. Nesse aspecto, meu trabalho tem sido bem-sucedido. De outro lado, além de convencer as empresas de que essas estratégias fazem sentido, ainda temos de lidar com uma série de questões técnicas. Por exemplo, ainda usamos muito PVC nas construções. É preciso descobrir substitutos viáveis e que não causem danos aos ecossistemas. Por isso, fundei a Epea em 1987. Fiz isso porque entendi que era importante protestarmos em favor do meio ambiente, mas que também era importante encontrar alternativas tecnológicas para resolver os problemas. Descobrimos, por exemplo, que é possível usar oxigênio em lugar de cloro para branquear o papel. Precisamos jogar nesses dois campos. Fazer pesquisa na universidade e também nos assegurarmos de que as empresas têm os recursos para fazer as mudanças técnicas necessárias.

BP – Os governos podem ajudar nesse processo?
Braungart – Podem. Os governos podem, por exemplo, fazer compras que estimulem a produção desses artigos. Se o governo brasileiro disser que, até 2020, não vai comprar produtos feitos de papel não compostável, ele vai causar uma reestruturação completa da indústria.

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Rafael Ciscati, Blog do Planeta na Época.
Foto: Jorma Mueller / Zeit Online
Fonte:  http://saopaulosao.com.br/conteudos/outros/1843-para-o-qu%C3%ADmico-alem%C3%A3o,-michael-braungart,-%E2%80%9Csustentabilidade-%C3%A9-um-conceito-ultrapassado%E2%80%9D.html?utm_source=%23SPS&utm_campaign=9638bbc041-News287_31_2016&utm_medium=email&utm_term=0_9409aa0717-9638bbc041-148260433#

sábado, 30 de julho de 2016

Pokémon e o sequestro do desejo

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Novo jogo escancara: na vida urbana mediada pelo celular, as corporações definem o que nos falta — e nos vendem a reconfortante ilusão de que decidimos 

Este artigo tem um título clickbaity mas aponta uma questão simples e preocupante. Em 2010, o Google lançou aquilo que é hoje uma subsidiária muito importante, a Niantic Inc. A mega-empresa lança muitas filiais por ano e adquire outras, não há nada de especial nisso. A questão é: o caso da Niantic mostra que há mais do que desejo de poder econômico nesta expansão.

Seis anos depois de nascer, a Niantic chega às manchetes com o lançamento de seu maior jogo, o Pokémon Go. O público finalmente volta os olhos à empresa. Gente à esquerda propõe até mesmo boicotá-la. Na verdade, há vários anos a Niantic vem trabalhando na psicologia e organização social dos celulares. Uma análise dos dois maiores lançamentos da empresa, Ingress e Pokémon Go, revela algumas verdades importantes sobre o mundo em que estamos vivendo, o controle que as corporações exercem e o poder dos nossos celulares para organizar nossos desejos.

A Niantic desenvolveu seu primeiro grande jogo, o Ingress, em 2011. O jogo, um dos mais importantes dos últimos anos, é uma ferramenta ideológica chave para o Google – e ao contrário do Pokémon Go, é pouco divulgado. O Ingress tem sete milhões ou mais de jogadores e as tatuagens Ingress mostram a que ponto as pessoas se autodefinem pelo aplicativo. Alguns jogadores até descrevem o Ingress como um “estilo de vida” ao invés de um “jogo”. O leitor pode ser perdoado por pensar: “Eu não jogo, então por que isso se aplicaria a mim?” Mas o entretenimento criado pelo Google via Niantic alinha-se com o projeto mais amplo de regular nossos movimentos e experiências do mundo físico. Isso se aplica a você, a não ser que não use o Google ou qualquer de seus aplicativos, muitos dos quais já vêm em nossos celulares.

O Ingress reflete a tendência de desenvolvimento de aplicativos para celulares (que inclui Google Maps e o Uber, entre outros bem conhecidos) projetados para regular e influenciar nossa experiência de cidade, transformando o smartphone num novo tipo de inconsciente: uma força ideológica que guia nossos movimentos enquanto nos mantemos apenas semiconscientes do que nos move e da razão por que somos movidos nessa direção.

Inicialmente, considerei que a importância dos jogos para smartphones devia-se a uma espécie de “distração” – argumento que usei em meu livro e num artigo relacionado que escrevi para o The New Inquiry. Mais tarde, quando jogava Ingress pela primeira vez, percebi que havia muito mais do que isso. O Ingress, ao contrário de simplesmente nos distrair da cidade ao redor, na verdade nos treina para ser cidadãos perfeitos do Google. No Ingress, o jogador move-se ao redor do ambiente real capturando “portais” representados por marcos, monumentos e obras de arte públicos, assim como outras características da cidade. É necessário que o jogador esteja dentro da área física do “portal” para capturá-lo. Por isso, o jogo está sempre rastreando o jogador via GPS. Significativamente, não monitora apenas aonde vamos, mas nos dirige para onde deseja que a gente vá.

Como tal, é um complemento ao Google Maps, que também está desenvolvendo a capacidade não apenas de rastrear, mas de dirigir nossos movimentos. Claro, há muito tempo os algoritmos do Google determinam que restaurante visitamos, que cafés conhecemos e que caminhos percorremos para chegar a esses destinos. Agora, porém, o Google está desenvolvendo uma tecnologia nova que de fato prevê aonde você deseja ir com base no tempo, na sua localização pelo GPS e no seu histórico de movimentação habitual arquivado num sistema de registros infinitamente poderoso. Isso, como o Ingress, mostra um novo padrão emergente, no qual o smartphone dita nossos passos pela cidade e nos encoraja, sem que a gente se dê conta, a desenvolver padrões de movimento repetitivos e habituais. Ainda mais importante: tais aplicativos antecipam nossos próprios desejos, oferendo-nos nem tanto  o que queremos, mas determinando o que desejamos.

Aqui é útil novamente a conexão com o conceito de inconsciente. Embora alguns autores tenham enxergado o inconsciente como um pântano de desejos não regulados, os seguidores da psicanálise de Freud e mais tarde de Lacan têm tido interesse em mostrar precisamente quão estruturado por forças externas é o inconsciente. Nossos smartphones fingem estar quase a ponto de preencher todos os nossos desejos, oferecendo-nos entretenimento sem fim (jogos), transporte fácil (Uber), acesso instantâneo a comida e bebida (OpenRice, JustEat) e até mesmo sexo e amor quase instantâneos (Tinder, Grindr). Contudo, mais assustador do que o fato de poder conseguir tudo o que você deseja via smartphone é a possibilidade de que o seu próprio desejo seja mobilizado por ele.

É precisamente nessa atmosfera que entra o Pokémon Go, lançado há apenas alguns dias, e desde já o lançamento de smartphone mais significativo de 2016. O jogo é, claro, construído por ninguém menos que o Niantic Labs. Uma série de eventos histéricos já surgiu a partir do campo minado ético que é o Pokémon Go. No caso do Ingress, foram feitos estudos acadêmicos sobre o fato de que o jogo mandou crianças pequenas a parques urbanos sem iluminação às 3 da manhã. Com Pokémon Go, a polícia australiana teve de enfrentar uma penca de treinadores de Pokémon que tentavam entrar numa delegacia de polícia para capturar um deles lá dentro — e algumas pessoas encontraram um cadáver ao invés de um Pokémon. Já foi sugerido que o Pokémon Go vai acabar matando alguém – e desde que esse artigo foi publicado alguém trombou com um carro de polícia e outra pessoa foi atropelada enquanto caçava os personagens. Mas, como no caso do Ingress, não é a aparição ocasional de uma história maluca que deveria nos preocupar, mas os efeitos psicológicos e tecnológicos da experiência de cada usuário.

A premissa do Pokémon Go é simplesmente que você usa seu GPS para encontrar Pokémons no ambiente real, e então usa sua câmera para torná-los visíveis, de modo que o mundo é “enriquecido” pelo ato de olhar, por meio da tela, para o que está atrás dela, como na imagem abaixo:

O próprio Pokémon é um fenômeno incrível que merece um estudo do tamanho de um livro. Talvez porque agora podemos dizer que o Pokémon é o exemplo perfeito do que Jacques Lacan chamou de “objet a”, aquele objeto de desejo fetichizado, adorável mas ilusório, que iria nos fazer felizes de verdade se pudéssemos colocar as mãos nele. Nós nunca colocamos, porque há sempre à mão uma versão mais nova, mais atraente e mais difícil de capturar!

As visões distópicas sobre para onde a tecnologia e os videogames apontam parecem ter algo de completamente errado. Os retratos do futuro distópico do videogame sempre tenderam a uma ideia de futuro em que cada indivíduo está isolado, sentado sozinho e quieto num quarto pequeno, conectado a um computador, somente através do qual sua vida pode ser vivida. Ou seja, a importância do ambiente físico é reduzida em favor do mundo eletrônico imaginário. Ao contrário dessas previsões do futuro, vivemos hoje numa distopia em que o Google e suas subsidiárias nos movem pela cidade em direções de sua escolha, loucamente e quase sem cessar, em busca de objetos de desejo, sejam eles um amante no Tindr, uma tigela de ramen japonês autêntico ou aquele ilusório Clefairy ou Picachu.

Nos anos 1990, os pais poderiam pedir a seus filhos que “brincassem na rua” para escapar às limitações do videogame; mas agora, são os jogos que nos fazem sair pilhados pela cidade, capturando portais, colecionando Pokémons e frequentando encontros. Mesmo sem considerar o total acesso que o Google tem a suas contas via Pokémon Go, isso nos revela algo de fato perigoso. Aponta para a crescente realidade de que não há realmente como escapar do Google. Enquanto fazemos aquilo que pensamos desejar, acreditando que usamos smartphones apenas para nos ajudar a alcancançá-lo, na verdade o Google tem um poder ainda maior, verdadeiramente revolucionário: a capacidade de criar e organizar o próprio desejo.

Esse poder verdadeiramente revolucionário é o mais importante, quando se trata de Pokémon Go e Ingress. Dizer que esses jogos são revolucionários não é dizer que estão fazendo algum bem, nem que são “radicais”, e certamente não é dizer que são de esquerda – ao contrário, a revolução no desejo parece ser corporativa, hegemônica e centralizada. Contudo, se é que a esquerda pode ter alguma esperança, ela não pode resistir ao Pokémon Go, como a já famosa sugestão da Jacobin, mas entender e talvez até abraçar o poder do celular para reorganizar o desejo e buscar novos caminhos.
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Reportagem Por Alfie Bown, na Roar  | Tradução: Inês Castilho
Fonte:  http://outraspalavras.net/capa/pokemon-realidade-aumentada-e-o-sequestro-do-desejo/ 29/07/2016

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Este mundo não é nada como tínhamos imaginado

José Manuel Fernandes*

 

O multiculturalismo falhou porque ignorou a centralidade dos nossos valores. O laicismo também falhou pois ignorou que a modernidade não é só filha do Iluminismo, é também 
da tradição do cristianismo.

Não foi assim que imaginámos que ia acontecer.

Não imaginámos que a globalização, que muitos diziam que ia empobrecer os pobres, causasse afinal problemas nos países ricos. E por isso não vimos chegar Donald Trump, como antes não compreendêramos o significado do voto popular em Marine Le Pen ou em Nigel Farage.

Não imaginámos que aqueles que foram sendo acolhidos na Europa como imigrantes se voltassem tão violentamente contra os valores dessa mesma Europa. Não imaginámos que uma, duas gerações depois de chegarem continuassem não apenas a não estar integrados, como a recusar a integração.
Não imaginámos que, depois da revolução portuguesa de 1974, das transições democráticas na América Latina, desse maravilhoso ano de 1989 em que caiu o Muro de Berlim, os regimes autoritários voltassem a ter prestígio e até apoio popular. Tal como não imaginámos que a ideia de “primavera democrática” não tivesse o mesmo sentido, nem o mesmo destino, nas duas margens do Mediterrâneo.

Eu sei que houve muitos avisos. Que muitos alertaram para o excesso de optimismo. Que houve quem previsse uma viragem dos ventos, quem notasse que, na viragem do século, estávamos porventura a viver um momento de “viragem da maré”, e que vinham aí tempos menos previsíveis, mais turbulentos, com menos liberdade, com menos esperança.

Eu sei isso tudo, até porque várias vezes, ao longo destes anos, alertei para a necessidade de algum cepticismo: a História não é um processo com um só sentido, a ideia de que se pode forçar o Progresso (com P maiúsculo) é mesmo das mais perigosas.

Mas, convenhamos, não me recordo de alguém ter previsto esta espécie de “tempestade perfeita” em que parece estarmos a entrar neste Verão de 2016. E não, não é a economia, pois nunca houve tanta riqueza ao dispor de tantos no conjunto da Humanidade. E não, também não é guerra, pois a verdade é que também nunca, na história da mesma Humanidade, houve tão poucas guerras e, proporcionalmente, tão poucas pessoas a morrer de morte violenta.

Os eleitores de Trump ou Le Pen podem sentir-se deixados para trás pela globalização, mas não deixam por isso de ter acesso a níveis de conforto e de consumo que mesmo há uma ou duas gerações eram inacessíveis mesmo àquela pequena parte da população mais rica. Os terroristas de Nice ou de Ansbach ou de Bruxelas podem invocar discriminação, mas a verdade é que todos eles tinham acesso a níveis de protecção social ou a condições de liberdade inimagináveis nos países de onde vinham, ou de onde os seus pais tinham vindo.

Eu sei que porventura não devia estar a colocar num mesmo saco fenómenos que são muito diferentes, assim como associar num mesmo parágrafo eleitores inquietos com criminosos sem nome. Amalgamar tudo nunca é bom critério – mas também não é esse o meu objectivo. A preocupação é outra: é ter a imagem de conjunto. É ver como há certezas, ou expectativas, que se esboroam, escapando-se por entre os dedos das nossas mãos, tal areia fina.

É que é essa imagem que surpreende, e não apenas pela vertigem das notícias, que podem ser tão distintas como um motim racial nuns Estados Unidos presididos por Barack Obama, ou a eleição de Trump (por enquanto apenas como candidato republicano), a vaia dos delegados híper-radicalizados na conferência do partido democrata, a subida do populismo nacionalista e do extremismo de esquerda entre os eleitorados europeus, a opção de jovens educadas nas nossas escolas por deixarem os seus trajes europeus e regressarem à niqab ou mesmo à burka, enquanto outros defendem restrições à liberdade em nome do direita a não ser ofendido, tudo isto para não falar dos ataques de Orlando, de Nice, de Ansbach e, agora, de Saint-Étienne-du-Rouvray. O que teve por palco uma igreja. Aquele em que um padre de 86 anos foi degolado, numa encenação semelhante à realizada com os reféns do deserto sírio.

Essa é a imagem de um mundo que não imaginávamos possível ainda há poucos anos. Um mundo onde as democracias parecem mais frágeis, mais susceptíveis de sucumbirem perante as investidas do autoritarismo, do populismo ou do radicalismo, ou de tudo isto à mistura. Um mundo onde a convivência e a integração se revelam muito difíceis de conseguir, antes regridem. Um mundo que, afinal, não partilha valores que considerávamos, e consideraramos, universais, mas que uns contestam, outros repudiam, outros combatem de forma encarniçada.

Um dia vamos ter de discutir a sério as razões do refluxo da maré que parecia trazer liberdade e prosperidade para cada vez mais, e isto sem nos reduzirmos aos simplismos de culpar outros – sejam eles os mercados financeiros, a guerra do Iraque ou a ignorância das classes baixas e dos velhos que votam sempre mal. Nessa altura talvez compreendamos algumas coisas.

A primeira, é que as instituições que deram corpo às nossas democracias e que permitiram a nossa prosperidade não nasceram do nada e muito menos, como alguns sugerem, da rapina do tempo dos impérios. Essas instituições, sendo produto de uma longa maturação, têm raízes na cultura judaico-cristã que é – ou era, digo temerosamente – a do Ocidente. Um Ocidente que também é filho da tradição grego-romana e do iluminismo. Um Ocidente que também não pode esquecer que a solidariedade não existe sem uma forte ética do trabalho, que os cidadãos estão antes do Estado, que a democracia é sobretudo sobre regras, não sobre resultados. Se não percebermos que é tudo isto que faz (ou ainda faz) a nossa identidade, nem sequer perceberemos o que estamos a defender.

A segunda, é que temos de encontrar formas de adaptar as expectativas à realidade. Se é mentira que tenha existido um passado paradisíaco a que valesse a pena regressar, como sugerem muitas nostalgias, também é verdade que o grande desafio das nossas sociedades e dos nossos políticos vai ser o de viver com pouco ou nenhum crescimento. Há dois séculos que não sabemos o que isso é na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, pelo que temos pela frente o grande desafio de aprender a viver em democracias que já não vão conseguir oferecer o progresso material a que nos habituámos, geração atrás de geração.

A terceira, que temos mesmos de defender a nossa identidade e os nossos valores. Não somos nós que temos de nos adaptar, que temos de rever os nossos livros de História, reescrever as letras dos hinos ou deixar de venerar os grandes vultos da nossa cultura, de apreciar os monumentos que ergueram ou os livros que escreveram – são os que nos procuram em busca de uma vida melhor que devem integrar-se. A prosperidade que procuram não é independente dos valores que a tornaram possível – e esses são os nossos valores, não os deles. Como também não são os dos populismos nacionalistas ou dos radicalismos socialistas.

O multiculturalismo falhou porque desistiu da centralidade dos nossos valores como base do nosso modo de vida. O laicismo também falhou porque ignorou que a modernidade não é apenas filha do Iluminismo, é também herdeira da tradição do cristianismo, e que isso é válido mesmo para os ateus.
Nestes dias em que a sucessão de acontecimentos nos vai tornando quase imunes ao choque, porventura à indignação, e nestes tempos em que sinais tão diferentes e contraditórios fazem com que até seja difícil pensar, e ainda mais perceber, talvez o melhor antídoto para o desnorte seja o regresso ao essencial, e o essencial são os nossos valores, aqueles que são as referências, os pontos cardeais que temos de ter presentes no meio da tempestade – e no dia a dia deste tempo de muitos medos.
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Nasci a 7 de Abril de 1957 e sou jornalista desde 1976, passei por vários jornais (Voz do Povo, Expresso) e fui fundador e, mais tarde, director do Público (de 1998 a 2009). Escrevi vários livros, nomeadamente O Homem e o Mar, o Litoral Português (Círculo de Leitores/Gradiva), Diálogo em Tempo de Escombros (com D. Manuel Clemente, Pedra da Lua), Liberdade e Informação (Fundação Francisco Manuel dos Santos) e Era Uma Vez a Revolução (Aletheia) e colaboro, como professor convidado, com o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa.
Fonte:  http://observador.pt/opiniao/este-mundo-nao-e-nada-como-tinhamos-imaginado/ 28/07/2016
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quarta-feira, 27 de julho de 2016

Quem era o padre Jacques Hamel?


PADRE JACQUES HAMEL

"Este era um homem que fazia o seu trabalho até ao fim. Era idoso, mas estava sempre disponível para todos. Era um bom padre"

 Redação
Jacques Hamel, o padre degolado por um terrorista em Rouen, na região da Haute-Normandie(no norte da França) era pároco auxiliar da igreja de Saint-Étienne [Santo Estêvão], uma das duas paróquias da vila de Saint-Étienne-du-Rouvray. O ataque à igreja aconteceu depois da celebração da eucaristia, levada a cabo pelo padre Jacques — como era conhecido pelos paroquianos — em substituição do sacerdote responsável, o Padre Auguste Moanda-Phuati que se encontrava em Cracóvia, na Polónia, onde decorrem as Jornadas Mundiais da Juventude.

Descrito como modesto, dedicado e sempre disponível para os seus paroquianos, o padre Jacques Hamel, de 86 anos, que foi degolado esta terça-feira de manhã enquanto celebrava uma missa, estava aposentado há cerca de uma década.

Hamel nasceu no departamento francês de Seine-Maritimeem 1930, tendo sido ordenado padre em 1958. Passou grande parte do seu tempo a trabalhar no noroeste da França, incluindo mais de 30 anos em Saint-Étienne.
PADRE JACQUES HAMEL CELEBRANDO NA IGREJA
DE SAINT-ÉTIENNE

“Alguma vez se viu um padre aposentado?”

Celebrou 50 anos no clero em 2008. Depois de se aposentar oficialmente aos 75 anos, Hamel pediu para continuar na paróquia para ajudar quando fosse necessário. "Este era um bom homem", disse o presidente da Normandia.

“Era um padre corajoso para a sua idade. Os sacerdotes têm o direito de se aposentar aos 75 anos, mas ele preferiu continuar a trabalhar ao serviço das pessoas, porque ainda se sentia forte”, contou emocionado o Padre Auguste Moanda-Phuati ao jornal La Voix du Nord.

O padre Jacques escolheu continuar a exercer o sacerdócio porque sabia que não existiam párocos suficientes e além do mais achava impossível que um padre pudesse algum dia aposentar-se verdadeiramente. “Alguma vez se viu um padre na aposentadoria? Vou trabalhar até ao meu último suspiro”, é uma das frases que lhe é atribuída sobre a forma como encarava a sua missão.

“Alguém muito apreciado na comunidade”

Os paroquianos louvam o trabalho do padre Jacques Hamel. "A minha família está aqui há 35 anos e sempre o conhecemos. Era discreto e alguém muito apreciado na comunidade local", disse a dona de um cabeleleiro ao L'Express.

"Este era um homem que fazia o seu trabalho até ao fim. Era velho, mas estava sempre disponível para todos. Era um bom padre", disse um vizinho à revista francesa.

Numa das suas últimas comunicações oficiais aos paroquianos de Saint-Étienne, o Padre Jacques falou da reflexão necessária em tempo das férias e deixou um convite aos fiéis:

«Que possamos ouvir nesses momentos o convite de Deus para cuidar deste mundo onde vivemos e fazer dele um lugar mais caloroso, mais humano e mais fraterno»,
lê-se na carta abaixo.
CARTA QUE PADRE JACQUES HAMEL ESCREVEU AOS PAROQUIANOS
POR OCASIÃO DA FÉRIAS DE VERÃO QUE ACONTECEM NA EUROPA NESTE MOMENTO

Atuava junto à comunidade muçulmana

Mohammed Chirani, presidente da associação “Parle-moi d’Islam” [Fale-me de Islão] que quer dar a conhecer o Islão como religião de paz e promover o diálogo inter-religioso em França, prestou homenagem ao Padre Jacques Hamel.

«Pelo homem de fé que sempre trabalhou para que pudéssemos viver juntos e promover o diálogo islâmico-cristão, eu rezo a Deus para que te receba na sua infinita misericórdia»,
escreve na publicação.

Ainda esta terça-feira foram muitos os que pediram para que Hamel seja beatificado rapidamente. A hashtag #santosubitocomeçou a circular no Twitter. 
PIETRO PAROLIN
Cardeal Secretário de Estado do Vaticano transmitiu oficialmente a declaração do Santo Padre Papa Francisco

Reação de Papa Francisco

O Papa Francisco enviou um telegrama ao arcebispo de Rouen, Dominique Lebrun, expressando a sua dor pelas vítimas do atentado na pequena igreja no norte da França. Fê-lo nesta terça-feira através do secretário de Estado, Pietro Parolin, há poucas horas do ataque no qual dois terroristas assassinaram um sacerdote e feriram gravemente uma segunda pessoa.

O texto do telegrama diz:

“Sua excelência, Monsenhor Dominique Lebrun,
Informado dos reféns na Igreja de Saint-Etienne-du Rouvray, que causou a morte de um sacerdote e onde uma pessoa ficou gravemente ferida, Sua Santidade o Papa Francisco garante a sua proximidade espiritual e se une com a oração ao sofrimento das famílias, bem como à dor da paróquia e da diocese de Rouen”.

O telegrama acrescenta que o Papa “Invoca a Deus, Pai de Misericórdia, para que receba o padre Jacques Hamel na paz da sua luz e console a pessoa ferida”.

“O Santo Padre – continua o texto – está especialmente chocado por este ato de violência acontecido em uma igreja, durante uma missa, ação litúrgica que implora de Deus a sua paz para o mundo”.

O Pontífice, conclui o telegrama, “pede ao Senhor que inspire a todos pensamento de reconciliação e de fraternidade nesta nova prova e que derrame sobre cada um a abundância das suas bênçãos”.
Ao fundo:
igreja de Saint-Étienne du Rouvray - local do atentado terrorista

Como aconteceu o ataque e o assassinato

Uma freira que conseguiu fugir de uma igreja católica de Saint-Étienne du Rouvray, na França, para alertar que dois homens armados com facas haviam feito reféns no local, contou que os agressores fizeram o padre se ajoelhar, o degolaram e gravaram o crime.

O ataque realizado na manhã desta terça-feira (26 de julho) foi reivindicado pelo grupo Estado Islâmico. O padre, Jacques Hamel, de 86 anos, foi morto. Outros três reféns ficaram feridos - um deles em estado grave. O atentado terminou após a polícia matar os dois terroristas.

Em entrevista à emissora de rádio "RMC", a irmã Danielle explicou que os assassinos ordenaram aos cinco religiosos que estavam dentro da igreja para ficarem juntos em frente ao altar. Além do padre e de Danielle, outra freira e dois fiéis foram feitos reféns.
Irmã Danielle - escapou da igreja e alertou a polícia sobre o atentado

Apesar das súplicas para que não cometessem o assassinato, os agressores não hesitaram em nenhum momento, de acordo com o relato da freira. “Na igreja, todo mundo gritava: ‘Parem vocês não sabem o que fazem’ ”, afirmou.

Os homens forçaram o sacerdote Jacques Hamel, de 86 anos, a se ajoelhar, e quando este tentou se defender, "começou o drama", segundo a freira.

"Gravaram em vídeo. Fizeram uma espécie de sermão em árabe em torno do altar. Foi horroroso", disse irmã Danielle, que acrescentou que conseguiu fugir no momento em que os homens atacaram o sacerdote e depois pediu socorro a uma pessoa que passava de carro pela rua da igreja.

“Eu reagi no momento em que ele [o terrorista] atacou Jacques e que ele o colocou de joelho. Eu fugi, saí rápido. Ele estava ocupado em lhe atacar com a faca e não me viu sair. As pessoas gritavam”, disse.

Agentes do corpo de elite da Brigada de Investigação e Intervenção (BRI) da polícia local cercaram o imóvel e tentaram negociar com a dupla. O cerco só acabou após 40 minutos, quando agentes de segurança mataram os criminosos. Padre Jacques Hamel, que foi degolado, trabalhava nessa igreja há cerca de 20 anos.
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Fontes: Correio da Manhã (Portugal) Terça-feira, 26 de julho de 2016 – 18h53 (horário português) – Internet: clique aqui; Observador – Mundo – 26/7/2016 – 17h36 (horário português) – Internet: clique aqui; ZENIT.ORG – Terça-feira, 26 de julho de 2016 – Internet: clique aqui; e Portal G1 – Mundo – 26/07/2016 – 16h05 (última atualização – horário de Brasília) – Internet: clique aqui.

O dever moral de ser ateu

Padre Anselmo Borges*
 
O dever moral de ser ateu
1 Os ataques terroristas sucedem-se. E a mesma perplexidade por todo o lado: vivemos num mundo inseguro, brutal, louco. Que fazer? Os Estados têm de colaborar entre si, fazendo todo o possível para manter a segurança, não ceder à violência, respeitando a lei. Os cidadãos não podem ceder ao medo, pois esse é um dos objectivos do terrorismo: que as pessoas entrem em pânico, paralisá-las.

2 Já não se respeita sequer uma igreja. E ontem foi a degola, em França, de um padre católico, considerado corajoso e bom pela população. Só posso mostrar, com o Papa Francisco, neste e em todos os casos de terror, a minha "dor e horror" perante "esta violência absurda", que nada justifica. O terror, atingindo indiscriminadamente inocentes, homens, mulheres, crianças, crentes de várias religiões, ateus, tem de ser condenado de forma radical, sem hesitação. Porque é simplesmente terrível, a barbárie bruta, a inumanidade pura e simples.

3 Nada legitima este terror bárbaro. Mas deve haver a tentativa de explicar e entender. J. Philipp Reemtsma distinguiu três formas de violência: a exercida para conquistar um território, tirar algo a alguém, e a que tem o seu fim em si mesma: o prazer da violência. Neste sentido, teme-se que não seja completamente erradicável, já que pertenceria à constituição do ser humano. Daí, a urgência da educação para os grandes valores humanistas, para a paz, para a convivência na comunicação humana, e a atenção que é necessário prestar às causas que podem agudizar a violência: marginalização, não integração, falta de comunidade e de sentido, desorientação, injustiça. Certamente, o niilismo de valores reinante e o aliciamento das redes sociais para ideais de vinculação, com a participação na restauração do califado universal, por exemplo, ajudam nesta explicação.

4 E as religiões e a violência? É preciso entender que as religiões não são o Sagrado, o Mistério, Deus, de quem se espera sentido último e salvação. Elas são construções humanas, mediações, e, por isso, têm de tudo: do melhor e do pior. Há quem pense que, acabando com a religião, se encontraria finalmente a paz. Não é verdade. De facto, se a religião foi e é invocada para legitimar a violência, ela foi e é também força de combate a favor dos direitos e da paz: lembre-se, por exemplo, Martin Luther King ou a teologia da libertação.

5 Mas muito vai ser preciso fazer. Impõe-se o diálogo inter-religioso. Lúcido, fundamentado e crítico. Nenhuma religião pode pensar ter a verdade toda e absoluta. O fundamentalismo é uma questão de ignorância ou, perdoe-me a palavra, estupidez. De facto, como pode o ser humano possuir o Fundamento, a Ultimidade? Daí, a urgência de uma leitura histórico-crítica dos textos sagrados, que não são de modo nenhum ditados de Deus. E impõe-se a laicidade do Estado, sem cair no laicismo - a França, ao contrário da Alemanha, por exemplo, cometeu este erro do laicismo, ao pretender retirar a religião do espaço público.

6 Antes de sermos crentes ou não, o que nos une a todos é a humanidade comum, de tal modo que, face a um deus que legitimasse a violência, o ódio, matar em seu nome, haveria, para sermos humanamente dignos, um dever moral: ser ateu.
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* Sacerdote português. Cronista do DN/Portugal.
in DN 27.07.2016 - http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/o-dever-moral-de-ser-ateu-5307397.html
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terça-feira, 26 de julho de 2016

A sustentabilidade mora em nós

                                          Nélson Tucci*

 

Como evitar a rápida oxidação do cérebro? Ao pensar em uma resposta simples, direta, objetiva, em meio ao turbilhão em que vivemos hoje, logo me vem outra à cabeça: um cérebro ativo colabora efetivamente para evitar o esgarçamento do tecido social? Se a estas perguntas existirem respostas afirmativas, sou tentado a pensar que a sustentabilidade mora em nós.

Esta reflexão é um exercício primário, não se tratando de um ensaio; é apenas uma inquietação que ora divido com o leitor. Não sei se é fruto de minha limitação intelectual ou de minha natureza prática, mas gosto muito do raciocínio simples, direto, sem necessariamente ser o mais reducionista do ponto de vista filosófico. Em meu modo de ver, a sofisticação deve ser a exceção, não a regra.

Tecnologia é boa e eu gosto. Nascido na segunda metade do século passado, sinto que estou cada vez mais rico em conteúdos – por ter base de comparação e importantes vivências – e, proporcionalmente, cada dia mais defasado com o lançamento de novíssimos aplicativos. Quando entendo e fico extasiado com algum novo aparato tecnológico logo aparece “alguém pra cortar o meu barato” (vide dicionário Jurassic`s Expressions) e diz: Ah tá, mas já saiu a 6ª versão...

E por falar em novíssimas tecnologias, dias atrás a Justiça brasileira deu mais uma canelada no serviço de mensagens instantâneas WhatsApp – brasileiramente rebatizado de `zap zap` – suspendendo-o em todo o território nacional. Uma considerável parcela da população entrou em pânico. E alguns usuários, travestidos de pseudo-juízes, não demoraram a condenar a suspensão do serviço. Sem entrar no mérito, porque não sou juiz de formação e nem de intenção, convido à reflexão. Você já parou e avaliou o quanto é dependente de tecnologia hoje? Até que ponto os recursos tecnológicos, ou a falta destes, interferem no seu trabalho, saúde, relações sociais ou vida afetivas? 

A tecnologia se incrusta às nossas vidas, sendo muitas vezes a extensão de nossos movimentos físicos e intelectuais. E na falha desta, ficamos manietados. Sem rebuscar demais o raciocínio – até para fazer jus à coerência que explanei no início do texto – vamos a uma questão do nosso dia a dia. Você compra algo em uma padaria que custa, por exemplo, R$ 11,50. Paga com uma nota de R$ 20,00 e pergunta para o caixa (ou o faz mecanicamente, sem perguntar): quer R$ 2 pra ajudar? Aí a pessoa te olha com uma cara estranha e você se sente um extraterrestre.

Ato contínuo, o mocinho, ou mocinha, pega uma calculadora e vê o quanto precisa te dar de troco. Mesma coisa acontece quando você tem de pagar R$ 26,00, dá 3 notas de 10 e uma moeda de 1. A pessoa corre pra digitar e depois da conta feita e troco na mesa avisa: não, não precisa. Isto é, as pessoas – especialmente aquelas com menos de 30 anos – não sabem fazer `conta de cabeça`. Tabuada então... quer coisa mais jurássica que isto? Pra que pensar se existe calculadora? Pra que ter letra decente, se hoje você digita e não escreve mais?

Nessa mesma linha, não demora e logo alguém vai dizer: pra que `se matar´ em fazer uma baliza, se o carro estaciona sozinho? A propósito, uma montadora instalada no Brasil acaba de anunciar o “easy park” em seu carro top de linha...

Não, eu não vou dizer nada do Pokémon Go porque não o conheço direito, mas já li casos de pessoas que abandonam filhos e parceiros no meio da rua pra brincar com o joguinho. Do mesmo jeito que uns nomofóbicos (pessoas viciadas em internet e, neste caso, mais precisamente em celular) ficam digitando enquanto dirigem. 

O fato é que estamos nos condicionando a digitar (freneticamente) e não a pensar. Estamos mudando o jeito de o cérebro produzir as sinapses. Algumas pessoas já trocam os flavonoides por chips e batatas chips. O risco é acelerarmos a oxidação do cérebro e a desprezar o contexto social. O mundo tecnológico na maioria das vezes é mais prático e gostoso porque facilita as coisas, mas não podemos ter a visão reducionista de que a vida pode ser resumida a um aparelho e dois aplicativos. Afinal, a sustentabilidade é algo que mora em nós e não devemos dar mole para a oxidação. 
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*Colunista de Plurale
Fonte:  http://www.plurale.com.br/site/noticias-detalhes.php?cod=15007&codSecao=2
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Terroristas: tudo o que há a saber já foi escrito

Miguel Freitas da Costa*
 
 
O que dizem os livros sobre os terroristas? Miguel Freitas da Costa foi à procura das respostas, descobriu centenas de páginas e a certeza de que não se ganha nada em ver o fenómeno como insanidadade.
“A polícia turca fez esta manhã uma série de raides em Istambul e na cidade costeira de Izmir. Foram detidas 13 pessoas. A polícia encontrou três espingardas de caça.” Os movimentos “terroristas” sempre se distinguiram pela economia de meios – embora normalmente mais destrutivos do que um punhado de “espingardas de caça”. Em Istambul, como em Bruxelas, os bombistas suicidas apanharam banalmente um táxi para o lugar onde iam morrer, matando. Este sábado, em Cabul, no Afeganistão, dezenas de pessoas morreram num atentado já reivindicado pelo Estado Islâmico. Mas também toda a gente já sabe que os atentados bombistas organizados – suicidas ou não – implicam “estruturas de apoio” não necessariamente armadas.

Tudo o que se pode dizer e perguntar sobre os bombistas suicidas está escrito. E está escrito há muito tempo. Podiam encher-se muitas páginas elucidativas alinhando uma mínima antologia dos muitos milhões de palavras que as mais sabedoras e autorizadas penas – se penas é a palavra – já escreveram. Quase que basta alinhá-las umas atrás das outras.

Não sei se precisamos de compreender os bombistas suicidas ou só aprendermos a defender-nos deles – mas é uma ambição que muita gente já quis satisfazer, mais ou menos em vão. Há, talvez, explicações a mais. Já lá vão mais de dez anos, em 2005, Louise Richardson, com a reticência de eminente especialista na matéria, retirou mais dúvidas do que conclusões de três dos livros que nesse mesmo ano foram publicados nos Estados Unidos e no Reino Unido (era no tempo em que tínhamos Reino Unido) e ela recenseou no Financial Times. O livro que a própria Louise Richardson escreveu no ano seguinte ainda é uma síntese lúcida e atual do estado da arte de explicar e responder ao terrorismo: What terrorists want (“O que os terroristas querem”). Uma coisa é certa: não se ganha nada em tomar o fenómeno por uma manifestação de insanidade de uns quantos tresloucados. Há método na sua temível “loucura’”.

what terrorists want

Os livros de que falava L. Richardson eram: Making Sense of Suicide Missions, uma coleção de ensaios de vários académicos, coordenada por Diego Gambetta, The Road to Martyr’s Square, de Anne Marie Olivier e Paul Steinberg, uma “viagem ao mundo do bombista suicida”, como se diz no esclarecedor subtítulo (“A Journey Into the World of the Suicide Bomber”: os autores visitaram os antros de bombistas e avistaram-se com suicidas em estágio – e testemunharam a sua exaltação, a sua “exuberância irracional”, o seu “êxtase” de prometidos esposos do apocalipse) e Dying to Kill: The Allure of Suicide Terror, de Mia Bloom, um título cuja facécia talvez já augurasse que o livro “pouco contribua para a nossa compreensão do fenómeno”, nas palavras da crítica – mas “mortos por matar” já veio à boca de outros especialistas de melhor reputação. É um jogo de palavras a que é difícil resistir.

A coragem do desespero

Uma coisa ela observava com segurança e pertinência: o bombista suicida “eviscerou”, muito simplesmente, “o princípio da dissuasão” que tantos serviços prestou na era MAD (da Mutual Assured Destruction). Em Os homens do terror – Ensaio sobre o perdedor radical (edição portuguesa de Schreckens Männer – Versuch über den radikalen Verlierer), Hans Magnus Enzensberger, mais literariamente, escreveu, nos mesmos e tão pródigos anos de 2005-06: “A forma mais pura do terror islâmico é o atentado suicida. Ele exerce uma atração irresistível sobre o perdedor radical; pois lhe permite expressar a sua mania das grandezas assim como o ódio a si próprio. De resto, cobardia é a última coisa pela qual pode ser censurado. A coragem que o distingue é a coragem do desespero. O seu triunfo reside no facto de que não se pode lutar contra ele nem castigá-lo, porque disso se encarrega ele próprio”.

"Os Homens do Terror", de Hans Magnus Enzenberger (Sextante)
“Os Homens do Terror”, de Hans Magnus Enzenberger (Sextante)

(Talvez com a ajuda de substâncias “controladas”?) Esse dilema tinha sido sucintamente expresso num romance de “Andy McNab” em 1999 (dois anos antes do ataque às Torres): “these people don’t care, survival isn’t an issue”. Falava-se da alegada inverosimilhança de um plano em que os terroristas às ordens de Bin Laden que supostamente preparavam um atentado contra a Casa Branca “nunca sairiam dali vivos”. “McNab” não é o nome de mais um teórico: é o pseudónimo de um antigo e condecorado sargento-comando e depois escritor do notável Bravo Two Zero sobre uma operação verdadeira na guerra do Iraque de 1991 (honradamente filmado para a televisão por Tom Clegg) e de numerosos thrillers de grande êxito.

“Mc Nab”, que se especializou em operações de anti-terrorismo e anti-guerrilha, participou em ações abertas e clandestinas dos Serviços Especiais na Irlanda do Norte, na América do Sul, no Extremo Oriente – e no Médio Oriente. Nas palavras dos próprios, “Eles amam a vida, nós a morte” – dizia uma proclamação da Al-Qaeda após o 9/11: “Venceremos”. Que querem os terroristas? Na versão que actualmente nos preocupa, o terrorismo “político” é, como observa Enzensberger, “apolítico”: não há nada que seja negociável. John Arquilla e outros tinham avisado que o terror estava a passar “from episodic efforts at coercion to a form of protracted warfare”. E como disse um combatente do Islão sobre as hipóteses de umas conversações de paz: “We don’t want peace, we want victory” ou ainda, na expressão de um antigo director da CIA, “Não querem sentar-se à mesa, querem partir a mesa”.

Louise Richardson chama aos bombistas suicidas "a arma terrorista por excelência". Ninguém sabe quanto tempo teremos de viver com eles. As palavras para salvar a humanidade estão todas inventadas. Só falta salvar a humanidade, como dizia Almada. 
 
Nessa época ainda estava longe de ser proclamado – autoproclamado, como se tornou obrigatório dizer – o famigerado Estado Islâmico do Iraque e da Síria e o seu Califado, um salto no tempo, para tempos que até à aparição da Al-Qaeda estavam perdidos nas brumas do passado ou nas sombras de algumas prédicas mais ou menos clandestinas. (Mais ou menos: sem falar no Médio-Oriente, era um lugar-comum desde os anos 80 e 90 do século passado, por exemplo, chamar a Londres “Londonistão”; a mesquita de Finsbury Park e o seu capitão Gancho zarolho, Abu Hamza, eram bem conhecidos. Os jornalistas ingleses Sean O’Neill e Daniel McGrory que escreveram a sua história chamaram-lhe, em 2006 – outra vez – “The Suicide Factory”.)

Do espanto à rotina

Mas as características do terrorismo pós-moderno – dessa maneira de “ser moderno” (este importante livro de John Gray também foi traduzido para português: Al qaeda e o significado de ser moderno) estavam claramente definidas: a nova operacionalidade das “redes”, os meios tecnológicos, o uso dos media, a importância da “descentralização” e o papel do free-lancing na gestão do terror. É o ar do tempo: “As multinacionais do futuro – escreveu Peter Drucker – serão provavelmente governadas por uma estratégia – e a estratégia será o cimento da sua união. Cada vez mais haverá confederações cujos elementos serão alianças, joint ventures, participações minoritárias, acordos e contratos de utilização de know-how“. (Drucker não estava a falar do terrorismo, mas escrevia depois dos atentados do 11 de Setembro.) E é cada vez mais claro que se tornou especialmente nebulosa a fronteira entre política externa e interna.

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“On Suicide Bombing”, de Talal Asad

O “terrorismo”, político ou milenarista, não nasceu ontem. É tão antigo como o mundo e a guerra. Esqueçamos de momento a mais intrincada discussão e todas as subtilezas da moralidade e da legitimidade comparativas do “terrorismo” e da aplicação da violência contra populações indefesas de que os Estados não estão inocentes (bons pontos de partida são On suicide bombing, do antropólogo Talal Asad, por muito que às vezes nos possa irritar tanta imparcialidade, ou as teses cínicas da “guerra sem restrições” de dois brilhantes descendentes de Sun Tzu, os coronéis chineses Quiao Liang e Wang Xiangui, que a CIA prestimosamente traduziu para inglês em 2002, com o subtítulo alarmante de “O plano chinês para destruir a América”).

Quando os aviões transformados em bombas embateram nas Torres, para “choque e temor” de todos nós, os atentados suicidas eram uma pavorosa rotina em Israel e tinham antecedentes noutros quadrantes como o Líbano ou o Iémen ou vários outros “pontos quentes” do mundo – não necessariamente islâmicos: até recentemente os Tigres Tamil do Sri Lanka, nacionalistas, ateus e “marxistas-leninistas” detinham o recorde dos atentados suicidas (Mas no caso do antigo Ceilão, só se matavam uns aos outros). O carro bomba também é velho. Em Buda’s Wagon, Mike Davis inicia a sua “breve história do carro bomba” com a carroça que o anarquista Mario Buda fez explodir em Wall Street em 1920. Guiados pelos suicidas, os carros-bomba, “a força aérea dos fracos”, são quase impossíveis de deter.

buda's wagon
“Buda’s Wagon”, de Mike Davis

Louise Richardson chama aos bombistas suicidas “a arma terrorista por excelência”. Ninguém sabe quanto tempo teremos de viver com eles. As palavras para salvar a humanidade estão todas inventadas. Só falta salvar a humanidade, como dizia Almada (e salvo erro se pode ler na parede da estação de metro de Lisboa que lhe foi dedicada).
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* Miguel Freitas da Costa, secretário-geral da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL).
Fonte:  http://observador.pt/especiais/terroristas-tudo-o-que-ha-a-saber-ja-foi-escrito/