Padre Anselmo Borges*
O dever moral de ser ateu
1
Os ataques terroristas sucedem-se. E a mesma perplexidade por todo o
lado: vivemos num mundo inseguro, brutal, louco. Que fazer? Os Estados
têm de colaborar entre si, fazendo todo o possível para manter a
segurança, não ceder à violência, respeitando a lei. Os cidadãos não
podem ceder ao medo, pois esse é um dos objectivos do terrorismo: que as
pessoas entrem em pânico, paralisá-las.
2
Já não se respeita sequer uma igreja. E ontem foi a degola, em França,
de um padre católico, considerado corajoso e bom pela população. Só
posso mostrar, com o Papa Francisco, neste e em todos os casos de
terror, a minha "dor e horror" perante "esta violência absurda", que
nada justifica. O terror, atingindo indiscriminadamente inocentes,
homens, mulheres, crianças, crentes de várias religiões, ateus, tem de
ser condenado de forma radical, sem hesitação. Porque é simplesmente
terrível, a barbárie bruta, a inumanidade pura e simples.
3
Nada legitima este terror bárbaro. Mas deve haver a tentativa de
explicar e entender. J. Philipp Reemtsma distinguiu três formas de
violência: a exercida para conquistar um território, tirar algo a
alguém, e a que tem o seu fim em si mesma: o prazer da violência. Neste
sentido, teme-se que não seja completamente erradicável, já que
pertenceria à constituição do ser humano. Daí, a urgência da educação
para os grandes valores humanistas, para a paz, para a convivência na
comunicação humana, e a atenção que é necessário prestar às causas que
podem agudizar a violência: marginalização, não integração, falta de
comunidade e de sentido, desorientação, injustiça. Certamente, o
niilismo de valores reinante e o aliciamento das redes sociais para
ideais de vinculação, com a participação na restauração do califado
universal, por exemplo, ajudam nesta explicação.
4
E as religiões e a violência? É preciso entender que as religiões não
são o Sagrado, o Mistério, Deus, de quem se espera sentido último e
salvação. Elas são construções humanas, mediações, e, por isso, têm de
tudo: do melhor e do pior. Há quem pense que, acabando com a religião,
se encontraria finalmente a paz. Não é verdade. De facto, se a religião
foi e é invocada para legitimar a violência, ela foi e é também força de
combate a favor dos direitos e da paz: lembre-se, por exemplo, Martin
Luther King ou a teologia da libertação.
5
Mas muito vai ser preciso fazer. Impõe-se o diálogo inter-religioso.
Lúcido, fundamentado e crítico. Nenhuma religião pode pensar ter a
verdade toda e absoluta. O fundamentalismo é uma questão de ignorância
ou, perdoe-me a palavra, estupidez. De facto, como pode o ser humano
possuir o Fundamento, a Ultimidade? Daí, a urgência de uma leitura
histórico-crítica dos textos sagrados, que não são de modo nenhum
ditados de Deus. E impõe-se a laicidade do Estado, sem cair no laicismo -
a França, ao contrário da Alemanha, por exemplo, cometeu este erro do
laicismo, ao pretender retirar a religião do espaço público.
6
Antes de sermos crentes ou não, o que nos une a todos é a humanidade
comum, de tal modo que, face a um deus que legitimasse a violência, o
ódio, matar em seu nome, haveria, para sermos humanamente dignos, um
dever moral: ser ateu.
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* Sacerdote português. Cronista do DN/Portugal.
in DN 27.07.2016 - http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/o-dever-moral-de-ser-ateu-5307397.html
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