segunda-feira, 25 de julho de 2016

Por que a França é alvo do terrorismo?


Juremir Machado da Silva*
 
 Após o atentado de 14 de julho, várias cidades do mundo 
prestarem homenagens à França. Foto da Internet
Quinta-feira luminosa na França. Mais um 14 de julho festivo: comemoração da data nacional francesa mais importante, a da Queda da Bastilha, do começo da revolução de 1789 e do fim do nefasto Antigo Regime, o longo reinado do absolutismo dos monarcas sem limites, da ignorância e da nobreza parasita. Dia de comemorar a vitória do Iluminismo de Voltaire, Diderot, D’Alambert, Rousseau e tantos outros pensadores. Noite de iluminar os céus com fogos de artifício. Assim deveria ser também em Nice, na esplendorosa Côte d’Azur, balneário às margens do mar Mediterrâneo, espaço, por excelência, do modo de vida ocidental: liberdade, turismo, consumo, tolerância, alegria, diversidade cultural, gente do mundo todo circulando. E, de repente, o obscurantismo se fez presente: um caminhão assassino pilotado por um tunisiano de 31 anos de idade, um certo Mohamed Lahouaiej Bouhlel.

Uma carnificina reivindicada depois pelo Estado Islâmico. Balanço mais imediato: 84 mortos, entre os quais dez crianças, 202 feridos, 52 deles gravemente. O caminhão de 19 toneladas, alugado numa pequena cidade perto de Nice, entrou em ação às 22 horas e 45 minutos (hora francesa) entre os números 147 e 11 da Promenade des Anglais (Passeio dos Ingleses), ponto nobre do lazer na cidade. Mohamed Lahouaiej Bouhlel, condenado a seis meses de prisão em regime aberto por ter agredido um homem numa briga de trânsito, casado, pai de três filhos, em vias de separação, seguindo tratamento em função de perturbações mentais, acelerou sobre a multidão numa área de circulação restrita de automóveis. Carregava uma pistola 7.65 mm, uma granada falsa, munição, uma metralhadora, dois fuzis de brinquedo e um carregador. Seu objetivo: matar o máximo possível de inocentes.

Matar inocentes. Por quê? A pergunta ecoa na França inteira. O assassino foi morto pela polícia no desfecho da sua ação. Por que a França? Em poucos meses, a França foi ensanguentada nos atentados contra o jornal satírico Charlie Hebdo e na casa noturna Bataclan. Na verdade, conforme os minuciosos resgates de jornais como Le Monde, Libération e Le Figaro, foi ainda mais do que isso. Uma escalada de violência com meios variados. Em 11 de março 2012, Mohamed Merah matou um militar num parque de Toulouse. Quatro dias depois, assassinou mais dois soldados em Montauban. Passados mais quatro dias, atacou uma escola em Toulouse, ceifando as vidas de um professor, de suas duas filhas e de uma menina de 7 anos. Foi morto em 22 de março. Parecia um ato isolado. Em 7 de janeiro de 2015, o terror mostrou que estava de volta para ficar. Os irmãos Chérif e Saïd Kouachi saíram do anonimato para entrar na história pelo seu lado mais escuro. Investiram contra a redação de Charlie Hebdo. Saíram com um massacre. Atingiram o coração de Paris. O horror!

No dia 8 de janeiro de 2015, com a França sob o choque, Amedy Coulibaly matou um policial, no sul de Paris, em Montrouge, numa ação numa loja de produtos judaicos. Os irmãos Chérif et Saïd Kouachi, assim como Coulibaly, foram mortos pelas forças policiais. Em 30 de fevereiro de 2015, em Nice, Moussa Coulibaly atacou e feriu, armado de faca, três militares diante de um centro judaico. Preso, justificou os atos em função do seu ódio à França e aos judeus. Em 19 de abril de 2015, Sid Ahmed Ghlam, um estudante argelino foi preso e acusado de preparar um atentado contra um igreja em Villejuif, nos arredores de Paris. Em junho do mesmo ano, um empresário foi decapitado em Isère. Em agosto, militares americanos impediram um atentado num trem fazendo o percurso de Amsterdã a Paris. No Bataclan e em alguns bares e restaurantes parisienses ao ar livre, em 13 de novembro de 2015, foram 130 mortos e 350 feridos. Sempre devastador.

A cada vez, as mesmas perguntas: por que a França? Por que na França? A Bélgica também foi vítima dos terroristas neste ano. Mas a França parece continuar sendo o alvo preferencial. O que pode explicar esse cenário assustador? Muitos são os fatores, históricos, econômicos, religiosos e políticos, mas um sobressai: pátria do Iluminismo, presente no combate ao terrorismo em países como a Síria, a França simboliza, mais do que qualquer outro país, a cultura ocidental laica, aberta e tolerante odiada pelos fundamentalistas.

Ressentimento e exclusão social

 Por que a França é o alvo preferencial dos terroristas? Intelectuais franceses não param de buscar as boas respostas para essa questão crucial e complexa. Um dos grandes nomes da intelectualidade francesa contemporânea, Lucien Sfez, 79 anos, nascido em Túnis, professor emérito da Universidade Paris I, Panteão-Sorbonne, autor de livros de referência, entre os quais Crítica da decisão (1973), O inferno e o paraíso: crítica da teologia política (1978), Lições de igualdade (1984), Crítica da comunicação (1988), A política simbólica (1993) e Técnica e ideologia (2002), não tem dúvidas quanto ao que provoca tanto mal, desespero e estrago.

Em primeiro lugar, a participação da França na coalizão de forças militares enviada ao Iraque. Depois, a visão de mundo francesa, considerada pelos fundamentalistas como “extremamente hostil ao islamismo por sua laicidade e em função de elementos concretos como a proibição do uso do véu pela mulheres nas repartições públicas e da burca em qualquer espaço público”. Finalmente, explica Sfez, “o grande número de magrebinos – originários de Marrocos, Argélia e Tunísia – vivendo na França e trazendo com eles a memória do nosso passado colonial. São entre 8 e 10 milhões numa população total de 66 milhões. Isso significa, mais do que em qualquer outro lugar, fartura de meios materiais e humanos de ação”. Um foco de tensão permanente alimentado pelo desamparo.

Lucien Sfez, que vive entre Paris e Nice, não deixa de examinar aspectos culturais que continuam a produzir choques de concepções de mundo em função da religião: “Há muçulmanos que não deixam suas mulheres ser examinadas por médicos homens nos hospitais franceses”. Para ele, apesar do impacto dos atentados, os franceses saberão separar as coisas e não se entregarão para a extrema-direita nas eleições de 2017. A França precisa melhorar o serviço de informação.

Olivier Cathus, 49 anos, doutor em Sociologia pela Universidade Paris V, Sorbonne, mora em Montpellier, cidade do sul da França que também abriga muitos magrebinos e seus descendentes. Autor de um livro, O funk e as músicas populares do século XX, casado com uma brasileira, Cathus é um espírito permanentemente aberto às culturas periféricas com seus estilos e formas de protesto. Para ele, a questão precisa ser tratada com muito cuidado: “Não se pode desconsiderar o fato de que a França esteja envolvida nos conflitos na Síria e em outros lugares no Oriente Médio. O Estado Islâmico vai justificar os seus atentados como uma resposta aos ataques cometidos pelos franceses, mas, para mim, essa não é uma questão de política internacional. Nem religiosa. Precisamos parar de fantasiar com salafistas, que não passam de quietistas interessados em viver tranquilamente a religião que praticam, cada qual no seu canto, mesmo que seja uma versão muito tradicionalista e um pouco perigosa”.

Para Olivier Cathus, o essencial é o grande contingente de magrebinos no território francês: “A isso se associa o fato de que existem questões sociais não resolvidas que retornam por meio do terrorismo. Há um problema de racismo, de exclusão social e de desemprego. Muitos se sentem rejeitados, estigmatizados, marcados por suas origens. Sinto que vamos ter, cada vez mais, em lugar de redes estruturadas, indivíduos sofrendo no isolamento que passarão ao ataque”. O que fazer para evitar o pior? Cathus não hesita: “Precisamos liquidar nossas velhas obsessões racistas, nossas nostalgias coloniais, nossa islamofobia patológica. Temos de parar de reagir, como a Frente Nacional, por razões eleitorais, pois é uma estratégia indigna e necessariamente perdedora. O momento é ruim”.

Uma passado de pouco futuro

O terrorismo produz mortes e perplexidade. O intelectual, aquele que – desde Émile Zola com seu “eu acuso” no célebre caso Dreyfus – sai da sua especilidade para falar das questões que sensibilizam as sociedades em dado momento, olha o passado, examina o presente, especula sobre o futuro. O que esperar? O que fazer? Pierre Lévy, filósofo francês de origem judaica, nascido na Tunísia, 60 anos, é professor na Universidade de Ottawa, no Canadá. Especialista das novas tecnologias, com análises e estudos sobre cibercultura, ciberdemocracia e inteligência coletiva, Lévy vê três fatores para explicar o fato de a França continuar na mira dos terroristas.

O primeiro fator é consenso entre os intelectuais: “O engajamento da França na linha de frente na luta contra a Jihad no Mali, no Iraque, na Síria…” É o preço da exposição e da intervenção em países divididos politicamente, mas majoritariamente muçulmanos. A história, com suas dívidas e acertos de contas jamais resolvidos, também retorna. Pierre Lévy assinala: “Não podemos esquecer que a França tem um passado colonial na África do Norte e no Oriente Médio”. A demografia tem seu peso: “A França é o país europeu com o maior número de muçulmanos.

Os autores dos atentados são franceses ou residentes na França”. Pierre Lévy, pensador atento à multiplicidade de causas de um fenômeno, pondera: “Essas razões não explicam tudo”.

Num mundo de tecnologias cada vez mais poderosas e facilitadoras da cooperação entre as pessoas, os terroristas usam as ferramentas da internet para adquirir armas ou simplesmente para contruir redes de articulação das suas ideias. As redes sociais podem ser também redes de criação e fortalecimento de grupos voltados para o terror.

A ciência iluminista e iluminadora, num paradoxo devastador, acaba, em certo sentido, servindo a fins obscurantistas. Para Lévy, há mais atentados em países muçulmanos: “E a França é o que se tem na Europa, demograficamente, de mais próximo disso”.

O que falta? O que mais pode ser dito? Bertrand Ricard, 49 anos, da Universidade de Reims, doutor em Sociologia pela Sorbonne, Paris V, sintetiza o cenário em cores sombrias: “Muitos fatores se entralaçam para explicar os atentados na França. Em primeiro lugar, a laicidade, que é sentida pelos muçulmanos radicais como um horror. Em seguida, temos a presença militar francesa em lugares onde os Estados Unidos da América não querem mais ir. Por fim, um aglomerado de imigrantes muçulmanos desorientados ou perdidos vivendo na França, mas odiando nosso país por entender que lhes faltam oportunidades”.

Ricard é cético quanto ao futuro mais imediato. Cada atentado parece levar mais água ao moinho da Frente Nacional de Marine Le Pen, candidata à presidência da França em 2017: “A falta de oportunidades existe, mas é, muitas vezes, uma desculpa para justificar o abominável. De qualquer maneira, a coisa vai mal para nós. Estou bastante pessimista. O ultraliberalismo está levando o mundo para o buraco sem retorno. A extrema-direita deve ganhar as próximas eleições presidenciais francesas. Os cidadãos estão acuados”. O futuro não depende só da razão.
O seu inimigo é a irracionalidade.

Terrorismo hipermoderno e sedutor

Filósofo consagrado, autor de vários best-sellers mundiais, como A era do vazio: ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo (1983), O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos (1994, publicado no Brasil como A sociedade pós-moralista), Metamorfoses da Cultura Liberal (2002), Os tempos hipermodernos (2004), A Sociedade da Decepção (2006), A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada (2010) e Da Leveza (2015), Gilles Lipovetsky, 71 anos, defende que o terrorismo vive uma nova etapa e que os atentados não podem ser explicados em profundidade em razão da presença da França no Oriente Médio ou do desemprego e da falta de oportunidades para imigrantes muçulmanos.

Para Lipovetsky, o próprio Estado Islâmico admite que considera a França como alvo prioritário: “As razões disso são muitas. Elas passam pela participação francesa no teatro das operações contra o terrorismo na Síria e no Iraque. Mas isso não explica tudo. A França tem atuado na África: no Mali, na Nigéria, na Mauritânia e no Chade, especialmente contra o Boko-Haram. Antes disso, sob a presidência de Nicolas Sarkozy, houve intervenção na Líbia e combate no Afeganistão. Por tudo isso, a França é vista como inimigo do islamismo”. O filósofo pretende que outros elementos são mais explicativos: “A França está mais comprometida do que outros países. A Alemanha, por exemplo, permanece quase de lado. Mais importante que isso é o fato de a França representar aos olhos dos radicais islâmicos o mal absoluto como nação revolucionária de uma laicidade militante”.

Para Gilles Lipovetsky, a França é vista como uma nação de ateus em luta contra as religiões: “O Estado Islâmico é um califado. Quer difundir o islamismo no planeta. A França é tida como um obstáculo, que ofende os valores sagrados proibindo véus e burcas ou permitindo, pela liberdade de expressão total, a publicação de caricaturas do profeta como no caso do jornal Charlie Hebdo”. Se muito se fala do número de muçulmanos morando na França, Lipovetsky destaca o número crescente de jovens franceses convertidos ao islamismo e que foram ao Oriente Médio para se radicalizar: “Em torno de 35% dos radicais são convertidos. Quase 700 franceses estão no exterior, contrariando a lei, para se formar no Estado Islâmico. Quando voltam, querem morrer como mártires.

É algo muito novo”.

A novidade consiste na “leveza” do método: “Um homem sozinho agiu em Nice. Não precisa mais uma multidão nem recursos importantes. O ataque às torres americanos exigiu uma logística complicada e cara. Em Nice, bastou o elementar: um caminhão e um homem pronto a morrer. Parece um filme de Spielberg. A França é uma das maiores potências mundiais e as ações dos terroristas não são militares, mas de comunicação. O importante é gerar o caos e seduzir pessoas para que se convertam a abracem a causa islâmica. É a sedução pela morte. Ao atingir uma potência, consegue-se seduzir muitos que hesitavam”.

A sedução da morte faz existir: “Tudo é simbólico. Atingir um grande país vale mais do que atacar um pequeno. A França, nesse sentido, tem mais valor do que a Dinamarca. Paris e a Côte d’Azur têm alto valor simbólico, assim como Nova York. O atentado é um instrumento de comunicação, de propaganda, de mobilização de tropas. Atacar Varsóvia não teria o mesmo peso. Toda a operação é estratégica e simbólica. Michel Onfray perdeu a oportunidade de se calar ao dizer que a França está pagando pelas suas ações em territórios islâmicos. Essa tese da reação não se sustenta. Primeiro, a França tem razão em agir. Em seguida, países muçulmanos como a Turquia, o Egito e a Arábia Saudita sofrem ataques. Países árabes pedem a intervenção ocidental. Temos de parar com esse delírio de intelectuais que só falam em reação. Trata-se de uma política autônoma, que visa a França por ela ser emblemática como nação laica. É mais do que uma reação”.

“Os atentados vão continuar. Numa sociedade de angústia individual e de insegurança, será necessário investir em educação para fabricar outra maneira de estar no mundo. Por enquanto, para os mais desesperados, o islamismo oferece um modelo totalmente regulado, da maneira de falar a comer e rezar, o que produz segurança coletiva e uma sentimento de identidade”.
 -  Gilles Lipovetsky -

Uma atração que faz da morte uma maneira de viver e que vai muito além da falta de oportunidades e da exclusão social: “O fenômeno capital é que franceses se convertem. Por quê? Por razões que pouco tem a ver com exclusão social. São jovens que estudaram e pertencem a meios sociais pequeno-burgueses. A conversão tem a ver com o individualismo extremo da nossa sociedades. Eles buscam um espaço coletivo numa época de perda de influência das grandes instituições sobre nossas consciências. O djhadista é um indivíduo que paradoxalmente faz qualquer coisa para se apagar como indivíduo. Ele quer obedecer a uma lei, a lei corânica. O terrorista de Nice bebia e dançava salsa. Ele se radicalizou rapidamente. Estamos em sociedades pós-tradicionalistas, que geral mal-estar existencial, nas quais certos indivíduos procuram um referência forte e se deixam seduzir por causas mortais. São jovens, quase não há velhos nisso. No capitalismo, a atração é feita pelo cinema, pelo entretenimento e pelo consumo. Há, porém, quem se deixe atrair e seduzir pela morte.”.

O terror vai prosseguir. Gilles Lipovetsky não duvida disso: “Os atentados vão continuar. Numa sociedade de angústia individual e de insegurança, será necessário investir em educação para fabricar outra maneira de estar no mundo. Por enquanto, para os mais desesperados, o islamismo oferece um modelo totalmente regulado, da maneira de falar a comer e rezar, o que produz segurança coletiva e uma sentimento de identidade”. O perfil típico do terrorista mudou. Existem de todos os tipos e meios sociais: homens e mulheres, empregados e desempregados, solitários e em grupo, com diploma superior ou não. O desemprego não tem como explicar tudo isso: “Pertencer a um grupo terrorista é uma maneira de se reconstruir pela qual o indivíduo pensa encontrar uma nova dignidade existencial por combater pela causa que considera justa e sagrada. Aulas de moral e de civismo nada resolverão. Só uma mudança de valores e de sentido. Os jovens precisam de paixões que não estão encontrando a cada dia”.

O sociólogo Dominique Wolton, 69 anos, membro do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS) e diretor da prestigiosa revista de ciências sociais Hermès, especialista em comunicação política, autor de livros como Terrorismo na primeira página: mídia, terrorismo e democracia, junto com Michel Wieviorka (1987), War Game, a informação na guerra (1991), Internet, e depois? (1999) e Informar não é comunicar (2009) sustenta que a França é alvo por ser a imagem do ocidente odiada pelos radicais, mas não deixa de destacar a participação francesa no combate aos grupos terroristas islâmicos e o contingente de muçulmanos radicados em solo francês.

Para Wolton, a saída imediata é paradoxal: “A solidariedade entre os países europeus é a única alternativa agora. Cada país deve ajudar o outro a defender os valores da Europa. Mas isso levará certamente a uma Europa obcecada pela segurança. Para se proteger, a Europa terá de ser um pouco menos o que a caracteriza: espaço de liberdade”. O sociólogo não acredita que a exclusão social seja o principal alimento da radicalização de jovens franceses ou de origem magrebina vivendo na França: “É mais complicado do que isso. Razões culturais, existenciais, religiosas e políticas explicam a onda de atentados. Será preciso investir na formação de outra mentalidade para superar o mal-estar experimentado por muitos atualmente”.

Contra a cultura do prazer

 Qual o principal alvo dos terroristas islâmicos? O que os incomoda acima de tudo? Philippe Joron, 52 anos, diretor da Faculdade de Ciências Sociais de Montpellier e membro do Conselho de Administração da Universidade Paul Valéry, especialista do imaginário e da festa como fenômeno social, autor de A Vida Improdutiva, Georges Bataille e a Heterologia Sociológica (2103), lista 11 pontos que ajudam a explicar os atentados na França.

O hedonismo é o alvo.

1 – Abalar os valores fundamentais da cultura francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. A escolha para o atentado de Nice da data comemorativa do 14 de julho é uma clara indicação dessa intenção.
2 – Combater a liberdade de pensar como no atentado ao Charlie Hebdo.

3 – Atacar a laicidade, a ideia de separação entre Estado e religião.

4 – Provocar dissensão entre as comunidades religiosas judaicas e muçulmanas na França. Depois do atentado ao mercado casher, em janeiro de 2015, Israel criticou a França pela sua incapacidade de proteger os praticantes da religião judaica no seu território. HeH

5 – Insuflar um sentimento de desconfiança e até mesmo de ódio contra o islamismo em geral e contra os muçulmanos franceses em particular.

6 – Valorizar a força do Estado Islâmico como sendo capaz de agir a qualquer momento, em qualquer lugar e contra qualquer um.

7 – Mostrar que cada um pode ser uma arma contra o Estado francês, sua população, seus valores e seus interesses. Os atentados não precisam ser encomendados, pois cada um pode se apropriar do “combate” dito religioso para superar as suas próprias deficiências. Nem é necessário já ser um radical e ter armamentos de guerra para prestar serviço ao Estado Islâmico e à sua filosofia assassina.

8 – Aniquilar a própria ideia de um modo de vida à francesa: cultura, festa, vida noturna, como aconteceu no caso da boate Bataclan e dos bares e restaurantes ao ar livre nos ataques de novembro de 2015.

9 – Ampliar os alvos possíveis para aumentar a sensação de terror e de pânico. O atentado de Nice mostra que os alvos não são apenas intelectuais (Charlie Hebdo), judeus franceses (mercado casher) e baladeiros (Bataclan), mas também famílias inteiras.

10 – Dissuadir a França, por meio da opinião pública aterrorizada, de continuar a participar das operações militares contra o Estado Islâmico no Oriente Médio e na África subsaariana.

11 – Nice é uma cidade tradicionalmente voltada para o turismo de pessoas com alto poder aquisitivo; e uma das cidades mais protegidas da França, com o maior número de câmeras de segurança. Com esse atentado, o Estado Islâmico indica que ninguém está em segurança nem mesmo numa cidade que funciona como vitrine da “boa vida”.

Por que jovens se tornam terroristas?

Denis Fleurdorge (Universidade de Montpellier), especialista em sociologia e antropologia política, autor de Os rituais e as representações do poder (2005) e Ritos e rituais nas intervenções sociais (2016), enfrenta a questão mais crua: o que leva jovens à radicalização e ao massacre de desconhecidos? Para ele, em primeiro lugar está o contexto histórico internacional marcado pela participação francesa na Guerra do Golfo (1991) e nas ações militares depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Ele cita também a proximidade francesa com Israel, ainda que a França reconheça o direitos dos palestino a um Estado. Por fim, as ações na África.

O quadro é grave: “Os fundamentalistas e os mais radicais, os salafistas, consideram a França como o inimigo mais absoluto”. Há também, segundo Fleurdorge, um “contexto histórico especificamente francês” ligado ao passado colonial e à imigração. Nos anos 1960, com a descolonização, a França recebeu levas de imigrantes do norte de África em caráter inicialmente provisório. Nas décadas seguintes, tentou-se apostar numa política de retorno aos países de origem, que se chocou com a vontade dos interessados. Forma-se uma segunda geração com curso superior e, muitas vezes, sem falar árabe ou sem praticar o islamismo. Sobrevém, nos anos 1970, uma nova onda de imigração dita de reagrupamento familiar. Homens voltam aos países de origem para casar-se. Aí os começam grandes problemas: dificuldade de integração familiar, desemprego, analfabetismo feminino e falta de domínio da língua francesa. A população muçulmana na Francesa, legal e ilegal, cresce. Nicolas Sarkozy, em 2007, criou um Ministério da Imigração e da Integração para tentar administrar a questão.

Fleurdorge enfatiza que o islamismo praticado na França passou a enfrentar um disputa entre argelinos, marroquinos e tunisianos pela formação dos imãs. Todos esses elementos somados a uma juventude, entre 15 e 25 anos de idade, sem perspectivas e famílias desestruturas, são um caldeirão. O jovem magrebino sofre preconceito, sendo constantemente associado à criminalidade. Tudo se mistura: jovens muçulmanos, que buscam nas origens um amparo, voltam a ser praticantes do islamismo e se radicalizam; jovens franceses se convertem em busca de referência; adultos, entre 25 e 30 anos de idade, aderem. Em busca de ideais fortes ou de um destino, tendo a internet como meio de conexão, esses jovens entregam-se a uma utopia mortal: eliminar os infiéis. Entre os salafistas, duas correntes: o quietismo, pacifista, e grupúsculos defensores da “guerra santa”.

A cultura ocidental alimenta seus inimigos. Denis Fleurdorge conclui: “A parte mais frágil dessa juventude mergulha nessa brecha do islamismo, que oferece uma vida de aventura (a guerra), uma comunidade (religiosa e familiar), solidariedade e um futuro, até mesmo depois da morte (como mártir)”. Eis o caminho do terrorismo.

 “A solidariedade entre os países europeus é a única alternativa agora. Cada país deve ajudar o outro a defender os valores da Europa. Mas isso levará certamente a uma Europa obcecada pela segurança. Para se proteger, a Europa terá de ser um pouco menos o que a caracteriza: espaço de liberdade”.
 - O sociólogo Dominique Wolton - 

Por que tanto ódio?

Há os lacônicos. Edgar Morin, 95 anos de idade, um dos maiores intelectuais mundiais em atividade, autor de Terra-pátria, cita o poeta Charles Baudelaire para lembrar que os homens ainda não sondaram as profundezas dos seus abismos. Michel Houellebecq é o mais importante escritor francês da atualidade, autor de Extensão do domínio da luta (1994), Partículas elementares (1998), Plataforma (2001), romance que narra um atentado na Ásia, e Submissão (2015), livro que conta a chegada ao poder na França de um muçulmano e que estava na capa do Charlie Hebdo no dia em que o jornal foi atacado pelos terroristas.

Para ele, em surpreendente resposta, num momento de retiro para reflexão, a questão é simples: “Os atentados são uma reação aos ataques militares franceses a territórios da Djihad”.

Michel Maffesoli, 71 anos, sociólogo, professor emérito da Sorbonne, grande teórico da pós-modernidade, autor de A violência totalitária (1979) e A Transfiguração do político: a tribalização do mundo (1992), propõe uma densa análise que começa com uma crítica à utopia moderna da dominação da natureza pelo homem. Nessa lógica, “cada problema encontraria uma solução e cada crise alcançaria um desfecho”. Fascismo e comunismo, destaca, “buscavam essa solução e com toda essa vontade de dominação quase arrasaram o mundo”.

O sociólogo constata que “os problemas sem solução retornam”. As autoridades, com suas medidas e novas leis, fracassam mesmo “reforçando a segurança, lacrando as fronteiras, multiplicando as formas de vigilância”. Acabam por declarar que “o risco zero não existe”. Maffesoli resume: “O assassino do caminhão de Nice vem na continuação do casal de policiais morto diante do filho de três anos. Tudo isso enquanto as lembranças dos atentados do Bataclan e do Charlie Hebdo ainda estão quentes”. A cada vez, com oportunismo, o Estado Islâmico assume ou aplaude os massacres: “Essa estratégia estimula novos atentados. Mas as explicações geopolíticas não bastam. Há atentados que dependem mais do clima social vivido no país”.

Michel Maffesoli pergunta: “Quem são os homens cujos atos o Estado Islâmico reivindica?” A resposta enumera imigrantes árabes muçulmanos, alguns dos quais, porém, não praticantes, ou “radicalizados” recentes, quase sempre com passagens pela polícia, mesmo não sendo bandidos de envergadura, e um percurso escolar errático: “O perfil psicológico desses personagens mostra fragilidade mental, desestruturação afetiva e intelectual e falta de referência numa comunidade”. Isso basta para explicar o salto no escuro? Não.

Para Michel Maffesoli, especialista de comportamentos juvenis, “há alguma proximidade entre o piloto da Lufthansa que se matou com todos os passageiros do avião, sem qualquer reivindicação política, e o motorista do caminhão de Nice, que atropelou desconhecidos. Este, contudo, inseriu seu ato na ótica do terrorismo islâmico”. Por quê? O sociólogo assinala que as tentativas ou intenções de restringir as pregações islâmicas não funcionam. A questão essencial é: “O que, em mesquitas muito específicas ou em certos espaços islâmicos, atrai essas pessoas frágeis e desestruturadas?” Mais: “O que no discurso do islamismo radical desperta as pulsões de ódio e ressentimento?”

A França erra, no entender de Maffesoli, ao tentar integrar todas as diferenças linguísticas, culturais e religiosas “num modelo homogeneizante, neutro e racional”. As pessoas precisam de crenças e mitos que “permitem construir laços, regular a convivência e controlar as emoções”. Ele vai direto ao ponto: “A necessidade de pertencimento comunitário é para o animal humano primordial. Isso passa por comer junto com os outros, vestir-se da mesma maneira, compartilhar crenças e ritos cotidianos”. Essa necessidade de solidariedade e proximidade, destaca Maffesoli, tem sido provida na França republicana por vários tipos de instituições, das igrejas à escola, passando pelos clubes esportivos e outras associações.

O problema é que “esse modelo não funciona mais”. O que resta para dar apoio no cotidiano? “Apenas o mito do Bem-Estar Social e do serviço público como espaço de homogeneidade, igualdade e neutralidade”. Michel Maffesoli toca na ferida: “Esses jovens atraídos pelo islamismo, ao contrário de outros mais bem integrados ou mais fortes psicologicamente, não encontraram um ponto de ancoragem comunitário nas formas comuns da sua religião, na geografia de origem nem em outras formas de tribalismo esportivo, musical, festivo ou de solidariedade”. Quando “o ideal democrático desencanta”, um “discurso inflamado e emocional como o do Estado Islâmico” atrai fortemente, ainda mais que não exige “nem cultura nem referências”, mas apenas a capacidade de “odiar os outros, odiar a França e os franceses”. O diagnóstico parece claro e assustador.

Falta vínculo: Michel Maffesoli indica o que pode ainda piorar a situação: “A paixão pelo islamismo radical resulta de uma pulsão tribal não satisfeita”. Conclusão: “Por tudo isso a França é mais atacada do que a Bélgica e a Inglaterra. Corremos o risco de, mesmo oferecendo algumas possibilidades de identificação e participação comunitária a esses jovens, de tribos diversas, continuarmos a empurrá-los para a versão mais bárbara do mito comunitário”.

Terrorismo na França

O Correio do Povo de domingo me proporcionou fazer um painel com intelectuais franceses sobre as razões que levam a França a ser o alvo preferencial do terrorismo islâmico. Fui atrás de Edgar Morin, Michel Maffesoli, Michel Houellebecq, Dominique Wolton, Gilles Lipovetsky, Philippe Joron, Lucien Sfez, Denis Fleurdorge, Pierre Lévy, Bertrand Ricard e Olivier Cathus. Mesmo depois do material fechado, continuei buscando a reposta para essa questão. O sociólogo Patrick Tacussel (Universidade de Montpellier), o escritor Emmanuel Jaffelin, ex-diplomata no Brasil, e Nicola D’Almeida (Universidade Paris IV) entraram em cena para ajudar a abordar o problema.

Nicole vê uma crise em quatro planos: político, social, cultural e moral. Para ela, o Estado, como garantidor da segurança, perdeu credibilidade. Por outro lado, a coesão social faliu. Há recessão, desemprego e falta de perspectiva. Ao mesmo tempo, o marketing político, enquanto canta universos invisíveis, produz raiva e ressentimento ao falar sem parar de um mundo tecnológico paradisíaco. Segundo Nicole Almeida, a crise moral é individual e coletiva, solapando o princípio de responsabilidade: “O Estado Islâmico atinge uma comunidade imaginária presente por toda parte. O problema é ocidental”. É a cultura democrática que se busca ferir.

Emmanuel Jaffelin precisa que desde 1980 os principais alvos do terrorismo estão no mundo árabe muçulmano. O Estado Islâmico ataca mais na Síria e no Iraque. Na Síria, numa vala comum, em 18 de dezembro de 2014, foram encontrados corpos de 230 pessoas. No Iraque, 150 mulheres foram executada naquele mesmo mês. Não se pode, porém, negar que a França é alvo dos terrorista. Contribui para isso o papel francês nas operações militares em territórios do islamismo e a laicidade francesa como princípio de organização social e visão de mundo. Jaffelin lembra que o Estado Islâmico concorre com outras organizações terrorista como Boko Haram e Alcaida. Precisa mostrar serviço. Nada se faz, contudo, sem dinheiro: “A Força do Estado Islâmico está no petróleo. Quando ele não puder mais extraí-lo, o seu poder se enfraquecerá grandemente”. Antes disso, quantos morrerão?

O professor Patrick Tacussel prefere refletir mais. Por fim, diz: “A França, depois de 1789, encarna a secularização do sagrado do que a laicidade é a tradução político-jurídica mais completa em termos de moda de vida garantidor da liberdade de consciência. O Estado Islâmico situa-se no polo oposto, o da sacralização absoluta das formas seculares do espaço público. A França representa, portanto, o inimigo total em todos planos, sem concessão possível”.

A questão é complexa. Ela pode até perder sentimento rapidamente. A Alemanha já vem sendo alvo de ataques. Na sexta-feira, Frankfurt foi ensanguentada. A Europa pode se tornar um continente explosivo. O que buscam mesmo esses terroristas? Talvez, mais do que tudo, aparecer. Ter a satisfação, mesmo póstuma, de chamar atenção. No fundo, são egocêntricos. A causa que abraça não passa de um pretexto para o que realmente procuram: brilhar tenebrosamente. O desejo de existir – no sentido de uma existência como protagonista – é capaz de tudo. O pecado mortal da nossa época pode ser este: fomentar em cada espírito pobre o desejo irrealizável de ser o centro de tudo. Essa hipertrofia egocêntrica impossível de ser satisfeita vai buscar na atrocidade um alimento. Na sociedade das celebridades, há quem não suporte ser anônimo e resolva existir pela morte.
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* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário.
A pátria das Luzes como alvo do obscurantismo
(reportagem publicada no + Domingo do Correio do Povo)
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/ 25/07/2016

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