Juremir Machado da Silva*
Pierre Lévy
Considerado um dos maiores especialistas mundiais em internet,
ciberespaço, virtual e novas tecnologias de comunicação, o filósofo
francês Pierre Lévy, nascido na Tunísia, professor no Canadá, esteve em
Porto Alegre para falar no ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento e
na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Nesta entrevista para o
Caderno de Sábado, ele indica o que vem por aí e prevê o fim de muitas
profissões.
Caderno de Sábado. Por toda parte, inclusive em Porto Alegre,
o Uber provoca polêmica. Trata-se de uma grande e benéfica mudança
civilizacional ou de uma vitória da desregulamentação do mercado?
Pierre Lévy – Na última vez que eu vim ao Brasil,
faz uns seis meses, havia um enorme manifestação de motoristas de táxi,
que tocavam tambor, nas imediações do aeroporto de Otawa. Ao chegar ao
Rio de Janeiro, encontrei algo muito parecido. Cada um acredita que é um
problema da sua cidade, mas é global. No longo termo, Uber e outros
aplicativos semelhantes vencerão, pois os clientes estão do lado deles
por ser mais simples, confortável e seguro. No curto termo, há uma
injustiça, pois para quem investiu em táxi como meio de vida, pagando
taxas e licenças, enfrentando testes e revisões, submetendo-se a
regulamentações, não é aceitável ver surgir uma concorrência que, em
certos aspectos, é desleal. Os taxistas convencionais têm mais
obrigações do que seus concorrentes. Será preciso encontrar meios de ser
justo com os taxistas de hoje sem impedir o novo. No futuro, os táxis
convencionais vão desaparecer. É inevitável. Os hotéis também vão passar
por transformações. Sempre haverá hotéis, mas os convencionais perderão
espaço. O sistema de aluguel de quartos em residências privadas ou de
apartamentos por aplicativos vai se expandir. As agências de viagem
também estão com dias contados, salvo, talvez, para viagens em grupo.
Intermediários serão eliminados. Cada um faz e fará tudo por conta
própria na internet.
Caderno de Sábado – Muitas profissões vão desaparecer?
Lévy – Sim. A economia inteira está em
transformação. Os corretores de imóveis, por exemplo, se não
desaparecerem, vão ter menos o que fazer. Aplicativos farão o que hoje
eles possibilitam. Jornalistas sempre existirão para apurar notícias e
contar histórias, pois isso exige tempo, dinheiro e profissionalismo,
mas os jornais passarão por muitas mudanças ainda. Editores de revistas
científicas desaparecerão. Cada um publicará seu artigo científico num
site pessoal ou coletivo e as avaliações serão feitas depois. Isso já
existe. O importante é a circulação de ideias, não o controle prévio da
publicação. É mais democrático, aberto e é gratuito. As bibliotecas
universitárias gastam fortunas inutilmente para assinar publicações que
podem e devem estar abertas a todos. Esse é o futuro.
"Internet não é responsável por tudo,
mas é verdade que ela tende para o
liberalismo,
para a desregulamentação."
Caderno de Sábado – Como a justiça de cada país deve se
comportar em relação a aplicativos como whatsapp, que trabalham com
dados criptografados, ou redes sociais como facebook? É direito bloquear
esses serviços quando eles não aceitar colaborar com investigações?
Lévy – Não é por alguma coisa estar na internet que
passa a ter o direito de escapar à justiça e às leis de um país. As
novas tecnologias da comunicação não anulam as leis votadas
democraticamente nem os procedimentos judiciais que podem servir para
proteger as populações, por exemplo, de atos terroristas. Em
contrapartida, bloquear serviços que servem a todos não parece ser a
maneira mais inteligente de resolver o problema. É preciso negociar.
Facebook e twitter já costumam colaborar em certas situações. Essas
empresas falam para seus clientes prometendo preservar a privacidade de
cada um e dos seus dados. Mas elas também enfrentam litígios e recorrem à
justiça. Nesse sentido, precisam respeitá-la. Não podem ficar na
contradição ou na conveniência dos seus interesses.
Caderno de Sábado – Internet e os aplicativos ajudam a criar
uma utopia de liberdade e de inteligência coletiva ou o triunfo de um
ultraliberalismo com a desregulamentação das leis trabalhistas?
Lévy – A tendência à desregulamentação não começou
com a internet. O liberalismo data do século XVIII. Há fases mais
protecionistas e outras menos. São ciclos políticos e econômicos.
Internet não é responsável por tudo, mas é verdade que ela tende para o
liberalismo, para a desregulamentação. É possível estabelecer fronteiras
para bens materiais, mas não para ideias e informações, que possuem
enorme valor econômico. Existem espaços cooperativos de produção de
softwares: todo mundo participa, cada um dá uma contribuição e todos
ganham. Nada se perde e todos avançam. Esse é ganho irreversível. Não há
fronteiras. A circulação é livre. Os marxistas acham que é uma vitória
do neoliberalismo. Podemos ver tudo isso como vitória da inteligência
coletiva. Depende da grade de leitura de cada um. A realidade é que a
informação não respeita fronteiras. Tudo circula.
CS – No começo, sobre internet, o senhor era acusado de ser
muito otimista. Passados tantos anos, qual o seu balanço? Há quem
sustente que as redes sociais, por exemplo, são a ditadura da estupidez.
Lévy – A ditadura da estupidez começou antes da
internet. A democracia, para os seus opositores, é a ditadura da
estupidez e da asneira, pois dá direito de voto a todo mundo. Para quem
não aprova isso, só deveriam votar aqueles que têm curso superior, algo
assim. A espécie humana é assim. Certas pessoas são imbecis em certos
momentos e inteligente em outros. A vida da espécie humana melhorou. Na
Idade Média, a expectativa de vida era de 35 anos, a cada dez anos uma
epidemia dizimava multidões, havia servidão, no Brasil, a escravidão
durou até o final do século XIX… Preciso contradizer quem diz que os
ricos estão cada vez mais ricos e os pobres, mais pobres. Não, os ricos
estão cada vez mais ricos, e os pobres, menos pobres. Quando eu era
jovem, havia muita gente que passava fome. Hoje, não. Só uma minoria. O
problema é a obesidade. A realidade contraria o discurso catastrófico da
mídia. As manchetes só falam do que não funciona.
CS – Internet vai dar um salto de qualidade nos próximos anos?
Lévy – A internet ainda está na sua pré-história.
Hoje, 50% das pessoas estão conectadas. Em 2000, era 1%. Rapidamente
atingiremos 80 ou 90% de conectados. Então, a internet passará por
inovações de qualidade: tradução automática, inteligência artificial,
inteligência coletiva, reflexiva. Eu trabalho nisso. Vou lançar, em
2017, um aplicativo, que se chamará Intelect, de gestão coletiva de
dados. Vai permitir a troca de informações sobre um assunto específico
de maneira a ampliar o uso. Vamos pegar hastags, transformá-las em
linguagem IML e calcular as proximidades semânticas. A internet do
futuro será mais sofisticada e menos atrelada aos meios convencionais.
Ainda não usamos todas as possibilidade da internet. Caminharemos para
uma nova forma de escrita, mais ideográfica, uma escrita linguagem de
programação, mais potente e de comando.
CS – Vivemos numa nova civilização?
Lévy – Cada vez mais. Essa nova civilização se baseará nessa nova
forma de escrita, concebida para os meios feitos de algoritmos e dados.
Isso vai possibilitar novas formas de educação e até de organização
política. Assim como existiram os grandes Estados baseados no alfabeto e
no impresso, teremos o que chamo de Estado-enxame, como de abelhas,
feito de colaboração densa. O território será apenas a base de operação
dos enxames. A democracia representativa continuará, mas terá menos
importância. As grandes cidades serão mais importantes, com decisões
coletivas. Não falo em democracia direta porque existe o problema das
reações emocionais.
CS – Como no caso do Brexit?
Lévy – Não quero tomar partido. Não é o papel de um
filósofo. Mas os ingleses não mediram as consequências. É um tiro no pé.
Foi um voto afetivo. A inteligência coletiva é a decisão com base em
dados, cálculos, consequências, projeções, simulações e racionalidade.
Penso que teremos uma democracia esclarecida. Não supriremos os
representantes eleitos, mas a burocracia que os acompanha.
MAIS:
http://jornalggn.com.br/noticia/pierre-levy-e-o-papel-da-internet-na-educacao
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* Sociólogo. Escritor. Cronista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/
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